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– Está a dizer que podíamos albergar outro Haydon agora? – exclamou um aluno chamado Maggs por entre os murmúrios dos colegas. – Qual é a motivação dele, Mr. Smiley? Quem lhe paga? O que é que ele ganha com o quiosque?
Desde que Maggs entrara que eu tinha as minhas dúvidas acerca dele. Estava indigitado para uma carreira de cobertura no jornalismo e já possuía as piores características da sua futura profissão. Mas Smiley ficou tranquilo.
– Ora bem, estou certo de que retrospetivamente temos para com o Bill uma grande dívida de gratidão – retorquiu calmamente. – Ele administrou a injeção a um serviço que já estava há demasiado tempo a morrer. – Franziu leve e rebuscadamente a testa de perplexidade. – Pelo que toca a novos traidores, estou certo de que a nossa actual dirigente há-de ter semeado os seus descontentes, não? Talvez eu seja um deles. O que é certo é que verifico que, com a velhice, estou a tornar-me bem mais radical.
Mas, creia-me o leitor, na altura não agradecemos a Bill.
Houve o Antes da Queda e o Depois da Queda e a Queda era Haydon, e de um momento para o outro não havia um homem nem uma mulher no Circus que não pudesse dizer-nos onde ele se encontrava e o que estava a fazer quando soubemos da terrível notícia. Há pessoas batidas que ainda hoje falam umas às outras do silêncio nos corredores, dos rostos paralisados que se desviavam no refeitório, dos telefones por atender.
A maior perda foi a confiança. Só aos poucos, como pessoas desorientadas após um ataque aéreo, começámos a sair, timidamente, um por um, das nossas casas desfeitas, e nos lançámos à reconstrução da cidadela. Considerou-se necessária uma reforma fundamental, de forma que o Circus abandonou a sua antiga alcunha e a coelheira de corredores dickensianos e escadas tortuosas em Cambridge Circus que tinham albergado a sua vergonha e construiu em seu lugar uma coisa abjeta de aço e vidro relativamente perto de Victoria, onde as janelas ainda rebentam quando há ventania e os corredores cheiram a couves cediças do refeitório e a líquido corretor de máquinas de escrever. Só os ingleses se punem com prisões assim tão terríveis. Da noite para o dia transformámo-nos, na linguagem formal, no Serviço, embora o nome «Circus» ainda nos venha de quando em quando aos lábios da mesma maneira que falamos de libras, xelins e dinheiros muito tempo depois da conversão ao sistema decimal.
A confiança quebrara-se porque Haydon fazia parte dela. Bill não era um adventício com sete pedras na mão e pistola no bolso. Era exatamente aquilo que sempre se descrevera zombeteiramente: todo respeitador das instituições, igreja e espionagem, com tios que tinham assento em comissões do Partido Conservador e uma propriedade estafada em Norfolk com rendeiros que lhe chamavam «Mr. William». Era um fio da bem urdida teia das classes influentes inglesas, cujo centro descobrimos ser ocupado por nós. E tinha-nos apanhado nela.
No meu caso pessoal – ainda reivindico uma certa distinção por isso – consegui de facto saber da notícia da prisão de Bill vinte e quatro horas depois de ela ter chegado ao resto do Circus, pois estava encarcerado numa cela medieval desprovida de janelas por detrás de uma fiada de grandiosos apartamentos no Vaticano. Comandava uma equipa de escutas furtivas do Circus sob a orientação de um frade de olhos encovados que nos fora fornecido pelos próprios serviços secretos do Vaticano, o qual mais depressa se dirigiria aos próprios russos do que procuraria a ajuda dos seus colegas seculares meia milha adiante, em Roma. E a nossa missão era enfiar um microfone-sonda na sala de audiências de um bispo católico corrupto que se envolvera num negócio de drogas a troco de armas com uma das nossas colónias em desintegração... Bem, para quê fazer caixinha? Era Malta.
Com Monty e os seus rapazes deslocados por via aérea para a ocasião, tínhamos andado em bicos de pés por calabouços abobadados e subido por escadas subterrâneas até atingirmos aquele ponto estratégico, a partir do qual nos propúnhamos abrir um estreito furo através de uma camada de cimento velho que se estendia entre os blocos de uma parede divisória de um metro. O buraco, segundo o acordo estabelecido, não devia ter mais de dois centímetros de diâmetro, suficientemente largo para enfiarmos a alongada palhinha de refresco de plástico que conduziria o som da sala-alvo até ao nosso microfone e suficientemente pequeno para poupar a santificada alvenaria do palácio papal. Hoje teríamos utilizado equipamento mais sofisticado, mas os anos sessenta eram o estrebuchar final da era do vapor e a moda ainda eram as sondas. Além disso, nem com a melhor vontade deste mundo uma pessoa mostra as suas engenhocas de primeira a um elemento de ligação do Vaticano, quanto mais a um frade de hábito negro que parece acabadinho de sair da Inquisição.
Furámos todos, incluindo Monty, e o frade observava. Vertemos águas nas brocas em brasa e nas nossas mãos e caras suadas. Abafámos o zumbir dos berbequins com espuma líquida e de tantos em tantos minutos fazíamos medições para nos certificarmos de que não tínhamos aberto um furo direito ao apartamento do santo homem por engano. Porque o objetivo era parar a ponta da broca a um centímetro da entrada e escutar através da membrana constituída pelo papel de parede ou pela fina cobertura de gesso.
De repente tínhamos atravessado a divisória, mas demasiado: estávamos já em pleno éter. Uma apressada amostra por vácuo revelou apenas exóticos fios de seda. Abateu-se sobre nós um silêncio estarrecido. Teríamos atingido mobília? Cortinados? Uma cama? Ou a bainha da veste de algum prelado insuspeito? Teria a sala de audiências sido modificada desde que tiráramos as fotografias de reconhecimento?
Momento de depressão este em que o frade teve a inspiração de se lembrar, num sussurro aterrado, que o bom do bispo era colecionador de bordados preciosos, e apercebemo-nos de que os farrapos de tecido para os quais estávamos a olhar embasbacados não eram pedaços de sofá ou cortinado, nem tão-pouco os arrebiques de algum frade, mas sim fragmentos de tapeçaria de tipo gobelino. Pedindo desculpa, o frade escapuliu-se.
Agora a cena muda para a velha vila kentiana de Rye, onde duas irmãs, as Misses Quayle, dirigem um negócio de restauro de tapeçarias e que por sorte – ou, pode o leitor dizer, pelas leis inelutáveis dos vínculos sociais ingleses – têm um irmão, Henry, que era um ex-membro do Serviço, reservado. Lá desencantaram Henry, as irmãs foram arrancadas da cama, um jato da RAF levou-as de escantilhão até ao aeroporto militar de Roma, de onde um carro as transportou à desfilada até junto de nós. Nessa altura Monty regressou calmamente à frontaria do edifício e acendeu uma bomba de fumo que evacuou metade do Vaticano e deu à nossa reforçada equipa quatro horas desesperadas na sala-alvo. A meio da tarde do mesmo dia, o gobelino estava toleravelmente remendado e o nosso microfone-sonda aconchegadamente instalado.
A cena muda mais uma vez para o grandioso jantar dado pelos nossos anfitriões do Vaticano. Há guardas suíços ameaçadoramente postados junto das portas. Monty, com um guardanapo branco ao pescoço, está sentado entre as serenas Misses Quayle e a rapar o resto dos seus cannelloni do prato com um pedaço de pão ao mesmo tempo que as regala com a narração das últimas proezas da filha na escola de equitação.
– Ora bem, você não deve saber, Rosie, e não havia razão para que soubesse, mas a minha Becky tem as melhores mãos para a idade em todo o South Croydon...
Nessa altura Monty para repentinamente a meio. Está a ler o bilhete que eu lhe passei, que me fora entregue em mão por um mensageiro do nosso posto de Roma: Bill Haydon, diretor de operações clandestinas do Circus, confessou ser espião do Centro de Moscovo.
Às vezes pergunto a mim mesmo se não foi esse o maior crime de Bill: roubar de uma vez por todas a boa disposição que tínhamos compartilhado.
Ao regressar a Londres, foi-me comunicado que a coisa tinha mais que se lhe dissesse do que aquilo que me diriam. Umas manhãs mais tarde o Pessoal informou-me de que eu tinha sido classificado como «alfaiate meia-tinta», o que correspondia na gíria do Circus a «incolocável em quaisquer países a não ser amigos». Era o mesmo que dizerem-me que passaria o resto da vida numa cadeira de rodas. Não tinha feito nada de mal. Não caíra em desgraça, bem pelo contrário. Mas, na nossa profissão, o disfarce é uma virtude, e o meu tinha sido desmascarado.
Arrumei o que tinha na secretária e concedi a mim mesmo o resto do dia livre. Fui de carro até ao campo e ainda não me lembro da viagem, mas recordo-me de passear pelas dunas do Sussex, através de colinas de cré em forma de dorso de baleia, com escarpas de cento e cinquenta metros de altura.
Foi preciso mais um mês para ouvir a minha sentença.
– Receio bem que vá voltar para os emigrados – disse o Pessoal com o desagrado do costume. – E é novamente na Alemanha. De qualquer maneira, as ajudas de custo são perfeitamente decentes e o esqui também não é mau, desde que procure uma altitude suficiente.