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Era perto da meia-noite, mas a boa disposição de Smiley tinha vindo a aumentar a cada nova heresia. Parece um Pai Natal folgazão, pensei eu, a distribuir panfletos sediciosos juntamente com os presentes. 

– Às vezes penso que a coisa mais vulgar que a Guerra Fria teve foi a maneira como nos habituámos a engolir a nossa própria propaganda – disse ele, com o sorriso mais benigno deste mundo. – Palavra que não quero assumir ares didáticos, e claro que de certo modo o fizemos ao longo de toda a nossa história. Mas na Guerra Fria, quando os nossos inimigos mentiam, faziam-no para esconder o mau estado do sistema. Ao passo que, quando éramos nós que mentíamos, escondíamos as nossas virtudes. Mesmo a nós próprios. Escondemos as próprias coisas que nos davam a razão. O nosso respeito pelo indivíduo, o nosso amor à diversidade e à discussão, a nossa crença de que só se pode governar justamente com o consentimento dos governados, a nossa capacidade de ver o ponto de vista dos outros – mais notoriamente nos países que explorámos, quase até à morte, para os nossos próprios fins. Na nossa suposta retidão ideológica, sacrificámos a compaixão ao grande deus da indiferença. Protegemos os fortes contra os fracos e aperfeiçoámos a arte da mentira pública. Fizemos inimigos de reformadores decentes e amigos dos potentados mais repugnantes. E mal parámos para perguntar a nós próprios por quanto mais tempo podíamos defender a nossa sociedade por esses meios e mantermo-nos uma sociedade merecedora de ser defendida. – Novo relance na minha direção. – Portanto não é de admirar que tenhamos aberto as portas a todo o vigarista e charlatão da trupe anticomunista, pois não, Ned? Apanhámos com os vilões que merecíamos. O Ned sabe. Perguntem ao Ned. 

Nisto, para deleite geral, Smiley largou uma gargalhada – e eu, após uma hesitação momentânea, fiz coro com ele e garanti aos meus alunos que um dia lhes havia de falar disso. 

 

 

Talvez o leitor tenha apanhado o espetáculo, como dizem nos States. Talvez fizesse parte da apreciativa assistência numa das muitas vibrantes atuações que tiveram no seu incansável trilhar pelo Centro-Oeste americano, castigando a carne e suportando os almoços de frango de borracha do circuito das palestras, a cem dólares o prato e não havendo prato que não esgotasse. Nós chamávamos-lhe o espetáculo Teodor-Latzi. Teodor era o primeiro nome do professor. 

Talvez se me tenha associado numa das inúmeras ovações de pé aos nossos heróis humildemente postados no centro do palco, o professor alto e resplandecente, envergando um dos vários e dispendiosos fatos novos comprados para a digressão, e o minúsculo Latzi a fazer de gorducho compère silencioso, com os olhos pouco fundos a transbordar de ideais. Havia palmas antes de principiarem a falar e palmas depois de acabarem. Não havia aplausos suficientemente sonoros para «dois grandes húngaro-americanos que, sozinhos e a pontapé, tinham conseguido abrir uma brecha na Cortina de Ferro». Estou a citar o Herald de Tulsa. 

Talvez a sua filha vestisse o apropriado traje de camponesa húngara e pusesse flores no cabelo para a ocasião: também aconteceram coisas assim. Talvez o leitor tenha enviado um donativo à Liga para a Libertação, Caixa Postal tantos, Wilmington. Ou terá lido coisas sobre os nossos heróis no Reader’s Digest, na sala de espera do seu dentista? 

Ou talvez, como Peter Guillam, que na altura estava baseado em Washington, tivesse a honra de assistir à sua grandiosa estreia mundial, conjuntamente encenada pelos nossos primos americanos, pela polícia da cidade de Nova Iorque e pelo FBI, nem mais nem menos que no santuário do bem pensar que era o austero e almofadado Hotel Hay-Adams, na praça mesmo em frente da Casa Branca. Se assim foi, o leitor devia ser tido por uma pessoa com grande influência na opinião dos outros. Tinha de ser-se um jornalista ou intriguista político de primeira linha para ser admitido na sussurrante sala de conferências onde cada palavra eufemística tinha a autoridade de uma tabuleta gravada, e homens de blazers com chumaços a aparecer velavam tensamente pelo conforto e bem-estar de cada um. Pois fosse lá saber-se quando voltaria o Kremlin a atacar! Ainda esse tipo de época. 

Ou talvez tenha lido o livro deles, feito chegar pelos «primos» a um obediente editor da Madison Avenue e lançado com uma fanfarra de dócil aplauso crítico antes de ocupar o lugar mais baixo dos livros mais vendidos de não ficção durante o espetacular espaço de duas semanas. Espero que o tenha lido, pois, embora haja sido publicado com o nome de ambos, o facto é que eu próprio escrevi uma porção dele, apesar de os «primos» terem posto objeções ao meu título original. O título registado foi O Assassino do Kremlin. Adiante direi qual era o meu. 

 

 

Como de costume, o Pessoal enganara-se. Para quem quer que tenha vivido em Hamburgo, Munique não tem nada que ver com a Alemanha. Nunca senti a menor ligação entre as duas cidades, mas, no que se refere a espionagem, Munique, como Hamburgo, era uma das capitais da Europa injustamente ignoradas. Até Berlim se situava num mísero segundo lugar no que tocava à dimensão e visibilidade da comunidade invisível de Munique. A maior e mais sórdida das nossas organizações era uma instituição mais conhecida pelo lugar que a albergava, Pullach, onde muitíssimo pouco tempo a seguir a 1945 os Americanos tinham instalado uma repelente assembleia de velhos oficiais nazis sob a chefia de um ex-general do serviço de informações militar de Hitler. As suas instruções eram cortejar outros velhos nazis da Alemanha Oriental e, por meio de suborno, da chantagem e do apelo aos sentimentos de camaradagem, adquiri-los para o Ocidente. Parece nunca ter ocorrido aos Americanos que os Alemães de Leste pudessem fazer a mesma coisa ao contrário, embora o fizessem mais e melhor. 

Portanto o serviço alemão estava instalado em Pullach, e os americanos estavam instalados com eles, incentivando-os, a seguir assustando-se e desincentivando-os. E onde os americanos se instalavam, ninguém mais se instalava. De vez em quando rebentavam escândalos assustadores, normalmente quando um ou outro desta companhia de palhaços se esquecia literalmente do lado para o qual estava a trabalhar ou fazia uma lacrimosa confissão com os copos ou dava um tiro na amante ou no namorado ou em si próprio, ou aparecia embriagado do outro lado da Cortina para declarar a sua lealdade a quem quer que até então não contava com ela. Nunca na minha vida conheci semelhante bordel de informações. 

A seguir a Pullach vinham os decifradores de códigos e artistas de segurança, e a seguir a estes vinham a Rádio Liberdade, a Rádio Europa Livre e a Rádio Tudo o Resto Livre, e inevitavelmente, dado que se tratava em grande medida da mesma gente, os conspiradores emigrados, que por essa altura já estavam a sentir-se um pouco infelizes mas não se atreviam a dizê-lo. E passava-se muito tempo no meio desses agregados de gente exilada a discutir minúcias sobre quem seria chefe da Casa Real quando a monarquia fosse restaurada; e a quem seria conferida a Ordem de S. Pedro e do Ouriço-Cacheiro; ou quem sucederia na casa de verão do grão-duque uma vez removidos os frangos comunistas das suas salas de visitas; ou quem recuperaria o caco de ouro que tinha sido submergido no fundo do Sei-lá-quantos, esquecendo sempre que o dito lago tinha sido seco trinta anos atrás pelos usurpadores bolcheviques, que haviam erigido uma central hidroelétrica de vinte e cinco hectares no local antes de se lhes esgotar a água. 

Como se isto não bastasse, Munique dava guarida à mais desvairada espécie de aspirações pangermanistas, cujos cultores consideravam até as fronteiras de 1939 como um mero prelúdio das necessidades da Grande Alemanha. Prussianos do Leste, saxões, pomeranianos, silesianos, bálticos e sudetas alemães protestavam todos eles contra a terrível injustiça que lhes fora feita, e recebiam grossas maquias de Bona pelo seu desgosto. Havia noites em que, ao calcorrear as ruas atestadas de cervejas até casa, para junto de Mabel, imaginava ouvi-los a cantar os seus hinos atrás do fantasma de Hitler a marchar. 

Estarão ainda no ativo no momento em que escrevo? Ah, receio bem que sim, e com um ar bem menos louco do que no tempo em que o meu trabalho era mover-me no meio deles. Uma vez, Smiley citou-me Horace Walpole, um nome que de outro modo não me teria vindo naturalmente à lembrança: Este mundo é uma comédia para os que pensam, disse Walpole, e uma tragédia para os que sentem. Bem, para comédia, Munique tem os seus bávaros. E, para tragédia, tem o seu passado. 

Após quase vinte anos, a minha memória é fragmentária quanto aos antecedentes políticos do professor. Ao tempo, imaginei que os compreendia... e de facto devia compreender, pois a maior parte dos meus serões com ele foram passados a ouvir as suas recitações de história húngara entre as guerras. E tenho a certeza de que também as pusemos no livro: pelo menos o equivalente a um capítulo, pudesse eu deitar a mão a um exemplar. 

O problema era que ele se sentia muito mais feliz a evocar o passado da Hungria que o presente. Talvez tivesse aprendido, numa vida de contínua adaptação, que é assisado limitarmos as nossas preocupações e questões inofensivamente consignadas à história. Havia os legitimistas, recordo, que apoiavam o rei Carlos, o qual regressou subitamente à Hungria em 1921, em grande parte para consternação dos Aliados, que o mandaram inteligentemente sair do palco. Acho que o professor não teria mais de cinco anos de idade quando este comovente acontecimento se deu, mas falava dele com lágrimas nos seus olhos iluminados e havia muita coisa no seu porte que sugeria o contacto transitório com a monarquia. E, quando se referia ao Tratado de Irianon, a requintada mão branca que segurava o vinho tremia de reprimida afronta. 

– Foi um Diktat, Herr Ned – protestou comigo numa censura palaciana. – Foi-nos imposto por vocês, os vitoriosos. Vocês roubaram-nos dois terços da nossa terra sob a coroa! Deram-nos à Checoslováquia, à Roménia e à Jugoslávia. A que bela escumalha os deram, Herr Ned! E nós, húngaros, éramos um povo culto! Porque foi que nos fizeram isso? Para quê? 

Eu só podia desculpar-me pelo mau comportamento do meu país, como só podia desculpar-me pela Liga das Nações, que destruiu a economia húngara em 1931. Nunca percebi exatamente como empreendeu a Liga esta descuidada ação, mas lembro-me de que teve qualquer coisa que ver com o mercado do trigo e com a rígida política de ortodoxa deflação da Liga. 

Contudo, ao abordarmos questões mais contemporâneas, o professor tornava-se estranhamente reticente nas suas opiniões. 

– É outra catástrofe – era tudo quanto dizia. – É tudo consequência de Trianon e dos Judeus. 

Os raios do sol do fim da tarde incidiam obliquamente através da janela do jardim na soberba cabeça branca de Teodor. Era um fulano leonino, pode o leitor crer, de sobrancelhas espessas e socrático, como um grandioso maestro permanentemente próximo do génio, com umas mãos esculpidas, anéis de cabelo caindo soltos e uma curvatura de profundidade intelectual. Ninguém com um ar tão venerável podia ser superficial – nem sequer quando os olhos sabedores pareciam um tudo-nada pequenos para as órbitas ou deslizavam furtivamente para o lado à maneira de um comensal num restaurante que distingue uma refeição melhor a passar. 

Não, não, era um grande e bom homem, e fora nosso agente ao longo de quinze anos. Se um homem é alto, possui claramente autoridade. Se tem uma voz de ouro, as suas palavras são de ouro. Se parece Schiller, tem de sentir como Schiller. Se o sorriso é distante e espiritual, também o é certamente o homem que há lá dentro. Daí a sociedade visual. 

Com a diferença de que, muito de vez em quando, Deus se diverte a distribuir-nos um homem completamente diferente no interior do invólucro. Alguns desmoronam-se e são desmascarados. Outros desenvolvem-se até corresponder ao desafio do seu aspeto. E há uns poucos que não fazem uma coisa nem outra, antes usando os seus esplendores como uma graça concedida do alto, aceitando suavemente a homenagem que lhes não é devida. 

A história operacional do professor conta-se depressa. Demasiado depressa, porquanto tem o seu quê de banal. Nasceu em Debrecen, perto da fronteira romena, filho único de pais indulgentes da pequena nobreza que mudavam de opinião consoante o vento que soprava. Por intermédio deles, herdou dinheiro e ligações, coisa que acontecia com mais frequência nos chamados países socialistas, mesmo nesse tempo, do que se poderia supor. Era um homem de letras, autor de artigos para revistas eruditas, tinha fumos de poeta e era um temperamento apaixonado, com vários casamentos. Usava os casacos como capas, pelas costas. Podia bem permitir-se todos estes luxos, em razão dos seus privilégios e discreta riqueza. 

Em Budapeste, onde ensinava uma lânguida versão de filosofia, tinha adquirido um modesto número de partidários entre os alunos, que discerniam mais fogo nas palavras de Teodor do que era sua intenção, pois nunca fora talhado para orador, sendo a retórica uma coisa para a ralé. Não obstante, tinha erguido uma certa distância relativamente às necessidades deles. Observara a sua paixão e, como conciliador natural, tinha correspondido a ela dando-lhe voz – bastante moderada, por certo, mas uma voz fosse como fosse, e que eles respeitavam, juntamente com as suas belas maneiras e ar de representar uma ordem mais antiga e melhor. Estava em idade, por essa altura, de ser acalentado pela adulação juvenil, e era sempre vaidoso. E por via da vaidade deixava-se ser arrastado na maré contrarrevolucionária. De modo que, quando os tanques soviéticos regressaram da fronteira e cercaram Budapeste na terrível noite de 3 de Novembro de 1956, não lhe restava outro remédio senão correr a sete pés, como fez, para os braços dos Serviços de Informações britânicos. 

O primeiro ato do professor ao chegar a Viena foi telefonar a um amigo húngaro em Oxford, reclamando-lhe à sua maneira perentória dinheiro, apresentações e cartas que testemunhassem a sua excelência. Deu-se o caso de esse amigo ser também amigo do Circus e de se estar em maré de recrutamentos. 

Daí a meses, o professor fazia parte de lista de pagamentos. Houve pouca corte, nenhuma abordagem astuta, nada da habitual dança do leque. A oferta foi formulada e aceite como coisa devida. Daí a um ano, com generoso auxílio americano, o professor Teodor tinha sido instalado em Munique, numa casa confortável à beira do rio, com automóvel e a sua devotada embora perturbada esposa Helena, que fugira com ele – era de suspeitar que com certo pesar deste. A partir de então, e durante um extraordinário espaço de tempo, o professor Teodor tinha sido a insuspeitada ponta de lança do nosso ataque húngaro, e nem sequer Haydon o tinha destituído. 

A sua cobertura era a de patrício plenipotenciário da Rádio Europa Livre para questões de história húngara, que lhe assentava como uma luva. Nunca tinha sido muito mais. Além disso, fazia umas palestras e dava aulas particulares – principalmente, notei eu, a raparigas. O seu trabalho clandestino, pelo qual, graças aos americanos, era notoriamente bem pago, consistia em manter as suas ligações aos amigos e antigos alunos que tinha deixado atrás, ser para eles um foco e ponto de reagrupamento e, obedecendo a diretivas, moldá-los numa rede operacional, embora nenhuma, que eu saiba, tenha alguma vez aparecido. Era uma operação visionária, e talvez melhor no papel que no terreno. No entanto, durou que se fartou. Durou cinco anos e a seguir outros cinco e, na altura em que eu peguei no dossiê do grande homem, tinha feito a extraordinária idade de quinze anos. Certas operações são assim, e a estagnação favorece-as. Não são dispendiosas, não são concludentes, não levam necessariamente a lado nenhum – mas a verdade é que o ponto morto político também não – e são isentas de escândalos. E todos os anos, quando a auditoria anual é feita, passa-se por cima delas sem votar, até a respetiva longevidade se tornar a sua justificação. 

Ora, não direi que o professor não tinha realizado nada para nós durante todo esse tempo. Dizer isso seria não só injusto, como depreciativo para Toby Esterhase, ele próprio de origem húngara, que, quando da sua reintegração, depois da Queda se tinha tornado o oficial encarregado do caso do professor. Toby tinha pago um elevado preço pelo seu cego apoio a Haydon e, quando lhe deram a secção da Hungria – que nunca fora o mais exaltado dos lugares da Cortina –, o professor tornou-se rapidamente a peça mais importante no programa de reabilitação pessoal de Toby. 

– O Teodor, diria eu, Ned, o Teodor é pura e simplesmente a nossa estrela – tinha-me assegurado antes de eu partir de Londres, durante um almoço que ele quase pagou. – Velha escola, discrição total, uma data de anos ao leme, leal como uma sanguessuga. O Teodor é absolutamente o nosso ás. 

E uma das proezas mais notáveis do professor tinha decerto sido escapar à limpeza de Haydon – ou porque tivesse tido sorte ou, menos caridosamente, porque o professor nunca tinha apresentado informações suficientes para merecer o interesse de um traidor atarefado. Porque eu não pude deixar de notar, ao preparar-me para a rendição – visto que o meu antecessor tinha morrido de um ataque repentino quando estava de licença em Ibiza – que, enquanto o dossiê pessoal de Teodor abrangia vários volumes, o seu dossiê de produto era invulgarmente magro. Isto podia explicar-se em parte pelo facto de a sua função principal ter sido mais descobrir talentos do que explorá-los, e em parte porque as poucas fontes que ele tinha conduzido à nossa rede durante o longo período em que trabalhara para nós eram ainda relativamente improdutivas. 

– A Hungria, Ned, é realmente um alvo difícil como o diabo, diria eu – assegurou-me Toby quando lhe apontei delicadamente o facto. – É demasiado aberto. É um alvo aberto, apanha-se uma data de porcaria que já se sabe. Quando não se apanham as joias da coroa, apanha-se o que é do conhecimento geral: quem é que o quer para alguma coisa? O que o Teodor produz para os Americanos é fantástico. 

Parecia ser este o sumo da questão. 

– Então o que é que ele produz realmente para eles, ao certo? – perguntei eu. – Para além de apoio incondicional na rádio e artigos que ninguém lê? 

O sorriso de Toby tornou-se desagradavelmente superior. 

– Desculpa, Ned, meu velho. «Necessidade de saber», lamento muito. Não estás na lista. 

Uns dias mais tarde, como o protocolo exigia, fui visitar Russel Sheriton a Grovesnor Square a fim de me despedir. Sheriton era o chefe de posto dos «primos» em Londres, mas era igualmente responsável pelas suas operações da Europa Ocidental. Esperei a minha hora e a seguir deixei cair o nome de Teodor. 

– Ah, bom, isso é com Munique, Ned – disse rapidamente Sheriton. – Já sabe como eu sou. Nunca meto a foice em seara alheia. 

– Mas ele está a servir-vos para alguma coisa? É tudo quanto quero saber. Quero eu dizer, os agentes gastam-se, não gastam? Quinze anos. 

– Ora bem, nós pensávamos que ele vos estava a servir a vocês para qualquer coisa, Ned. Quem ouve o Toby falar, há de pensar que o Teodor andava a aguentar sozinho o mundo livre. 

Não, pensei eu. Quem ouve o Toby falar, há de pensar que ele anda a aguentar sozinho o Toby. Mas não fui assim tão cínico. Na espionagem, como em muito na vida, é sempre mais fácil dizer que não do que sim. Cheguei a Munique preparado para acreditar que Teodor era a estrela que Toby o incensara como sendo. Tudo o que eu queria era certificar-me. 

E certifiquei-me. A princípio. Ele era magnífico. Pensava que o meu casamento com Mabel me tinha livrado desses entusiasmos repentinos, e de certa maneira tinha, até àquela manhã em que ele me abriu a porta e eu concluí que tinha entrado numa daquelas relíquias perfeitamente conservadas da história da Europa Central e que tudo o que podia fazer era sentar-me aos seus pés como o restante dos seus discípulos e beber da sua sabedoria. «É para isto que o Serviço serve!», pensei. Um homem destes merece ser preservado só por si! A cultura, pensei, a envergadura, os anos e anos de serviço! 

Ele recebeu-me cordialmente mas com uma certa distância, como convinha à sua idade e distinção. Ofereceu-me um copo de requintado tocai e presenteou-me com um discurso sobre a sua proveniência. Não, confessei, eu sabia pouco de vinhos húngaros, mas estava ávido de aprender. Falou de música, em relação à qual sou também tristemente ignorante, e tocou uns poucos compassos para mim no seu prezado violino, o mesmíssimo que trouxera consigo quando fugira da Hungria, explicou, e não feito por Stradivarius mas por alguém infinitamente melhor, cujo nome há muito me fugiu. Achei um privilégio maravilhoso estar a dirigir um agente que fugira com o seu violino. Falou de teatro. Havia na altura uma companhia teatral húngara em digressão em Munique com um Otelo extraordinário e, embora Mabel e eu ainda não tivéssemos visto a produção, a sua opinião sobre ela deixou-me encantado. Tinha vestido aquilo a que os alemães chamam um Hausjacke, calças pretas e um par de botas esplendidamente engraxadas. Falámos de Deus e do mundo, comemos o melhor gulache da minha vida, servido pela perturbada Helena, que segredou as suas desculpas e nos deixou. Era uma mulher alta e em tempos devia ter sido bonita, mas preferia envergar os sinais da sua negligência. Terminámos a refeição com um damasco Palinka. 

– Herr Ned, se posso tratá-lo assim – disse o professor –, há uma questão que me pesa imenso no espírito, e que me permitirá que levante no início da nossa relação profissional. 

– Faça o favor – disse eu com generosidade. 

– Infelizmente, o seu mais recente antecessor, um bom homem, claro – interrompeu-se, sendo óbvio que era incapaz de dizer mal de um defunto recente –, e, como o senhor, pessoa culta... 

– Faça favor – repeti. 

– É acerca do meu passaporte britânico. 

– Não sabia que tinha um passaporte britânico! – exclamei, surpreendido. 

– A questão é essa. Não tenho. Compreende-se que haja problemas. Acontece em todas as burocracias. As burocracias são a pior das instituições humanas, Herr Ned. Entesouram o que temos de pior e deitam abaixo o que temos de melhor. Um húngaro exilado residente em Munique ao serviço de uma organização americana não está naturalmente em condições de obter a cidadania britânica. Eu compreendo isso. No entanto, depois dos meus muitos anos de colaboração com o seu departamento, sou credor desse passaporte. Um documento de deslocação temporária não é uma alternativa digna. 

– Mas eu julgava que os Americanos lhe davam um passaporte! Não foi esse o acordo logo de princípio? Os Americanos serem responsáveis pela sua cidadania e reinstalação? Isso inclui decerto um passaporte. Tem de incluir! 

Estava transtornado por negarem aquela simples dignidade a um homem que dera tanto da sua vida. Mas o professor tinha-se afeito a uma atitude mais filosófica. 

– Os Americanos, Herr Ned, são um povo jovem e mercenário. Depois de utilizarem o melhor de mim, dificilmente podem encarar-me como o homem do futuro. Para os Americanos, eu já pertenço ao monte de lixo da obsolescência. 

– Mas eles não prometeram... desde que os serviços fossem satisfatórios? Tenho a certeza que prometeram! 

Ele fez um gesto que nunca esquecerei. Ergueu as mãos da mesa como se estivesse a levantar uma pedra prodigiosamente pesada. Levou-as quase até ao nível dos ombros, antes de deixá-las abaterem-se fragorosamente com toda a força sobre a mesa, com a pedra imaginária entre elas. E lembro-me dos olhos dele, indignados com o esforço, a acusarem-me no seu silêncio. Aí tem o que valem as vossas promessas, dizia ele. Vossas e dos Americanos, de ambos. 

– Arranje-me o passaporte, e pronto, Herr Ned. 

 

 

Como leal funcionário responsável, preocupado com fazer o melhor possível pelo meu agente, atirei-me ao problema. Conhecendo Toby há muito, decidi assumir desde o início um tom oficial: comigo nada de meias promessas, nada de vaporosas tranquilizações. Informei Toby do pedido de Teodor e solicitei diretivas. No fim de contas ele era o oficial da minha secção, a minha âncora em Londres. Se fosse verdade que os Americanos estavam a esquivar-se do compromisso de dar a cidadania ao professor, o assunto teria de ser tratado em Londres ou Washington, disse eu, e não em Munique. E se, por razões que ultrapassavam o meu conhecimento, acabasse por ser concedido um passaporte britânico, também isso exigiria o enérgico aval do Quinto Andar. Já lá ia de vez o tempo em que o Ministério do Interior distribuía a cidadania britânica gratuita a todo o Tom, Dick e Teodor que tivessem pertencido ao Circus. A Queda tinha-se encarregado disso. 

Não enviei o meu pedido por mensagem, mas pelo correio, o que na ciência do Circus confere maior formalismo. Escrevi uma carta combativa e passadas umas semanas fiz seguir-se-lhe outra a lembrar o assunto. Porém, quando o professor pediu um relatório de progressos, usei de prudência. Está a andar, assegurei-lhe; Londres não leva a bem ser empurrada. Mas mesmo assim continuava a perguntar a mim mesmo por que razão demorava Toby tanto a responder. 

Entretanto, nos meus encontros com Teodor, empenhava-me em desvendar o que fazia ele ao certo para nós que o tornava a estrela do subpovoado firmamento de Toby. As minhas investigações não eram facilitadas pela suscetibilidade do professor, e a princípio perguntei a mim mesmo se ele não estaria a reter a sua colaboração até que o assunto do passaporte estivesse resolvido. Apercebi-me a pouco e pouco de que, no concernente ao nosso trabalho secreto, era essa a sua atitude normal. 

Um dos seus trabalhos mais enfadonhos era manter um apartamento de estudante de um quarto só no distrito de Schwabing, que utilizava como endereço seguro para receber correspondência de determinados contactos húngaros. Persuadi-o a levar-me lá. Ele abriu a porta e devia haver uma dúzia de envelopes no tapete, todos eles com selos húngaros. 

– Meu Deus, há quanto tempo cá não vem, professor? – perguntei-lhe ao vê-lo juntá-los laboriosamente. 

Ele encolheu os ombros, de forma deselegante, pareceu-me. 

– Quantas cartas calcula que recebe normalmente por semana, professor? 

Tirei-lhe os envelopes e percorri os carimbos do correio. O mais antigo tinha sido expedido há três semanas e o mais recente há uma. Passámos à pequena escrivaninha, que estava coberta de pó. Com um suspiro, ele instalou-se na cadeira, abriu uma gaveta e tirou de um recesso oculto uma série de frascos e um pincel. Pegando no primeiro envelope, examinou-o lugubremente e a seguir abriu-o com um canivete de bolso. 

– De quem é? – perguntei, com mais curiosidade do que ele parecia considerar justificada. 

– Do Pali – retorquiu ele lugubremente. 

– O Pali do Ministério da Agricultura? 

– O Pali de Debrecen. Esteve de visita à Roménia. 

– Para quê? Não foi para a conferência das armas tóxicas, não? Podia ser um furo! 

– Veremos. Uma conferência académica qualquer. O campo dele é a cibernética. Ele não dá nas vistas. 

Vi-o mergulhar o pincel no primeiro frasco e pintar o verso da carta manuscrita com ele. Passou o pincel por água e aplicou o segundo produto químico. E pareceu-me que estava decidido a demonstrar o seu desdém por tão subalterno emprego. Repetiu aquele processo com todas as cartas, alterando por vezes a rotina ao abrir completamente o envelope e tratar o interior, ou pintando entre as linhas da caligrafia visível. Com o mesmo movimento vagaroso, sentou-se a uma Remington vertical e dactilografou penosamente a tradução dos textos que tinham aparecido: deficiências minerais e energéticas previstas nas novas indústrias... quotas de bauxite de minas dos montes Bakony... baixo teor metálico de minério de ferro recentemente extraído nas regiões de Miskole... colheita projetada de milho e de cana-de-açúcar na região de outro sítio qualquer... boatos de um plano quinquenal para revitalizar a rede ferroviária estatal... ação desagregadora contra funcionários do Partido em Sopron... Quase conseguia ouvir os bocejos dos analistas do Quinto Andar patinhando através daquela palha tão empolada. Lembrei-me de Toby se vangloriar de que Teodor só estava interessado em informações da melhor qualidade. Se aquela era a melhor, o que seria, em nome dos céus, a pior? Paciência, disse de mim para mim. Não se pode contrariar os grandes agentes. 

No dia seguinte recebi uma resposta à minha carta acerca do passaporte. O problema, explicava Toby, era que tinha havido uma porção de mudanças na Secção Húngara dos «primos» nos últimos anos. Estava a ser feito atualmente um esforço, disse ele – empregando suspeitamente a voz passiva – para estabelecer os termos de quaisquer compromissos dos Americanos para connosco. Entretanto eu devia evitar discutir a questão com Teodor, acrescentou ele – como se fosse eu, e não o professor, quem estava a determinar o andamento das coisas. 

Três semanas mais tarde, quando almocei com Milton Wagner no Cosmos, a questão ainda estava no ar. Wagner era um fulano batido e o meu homólogo americano. Agora estava a terminar a carreira como chefe das Operações Orientais dos «primos» em Munique. O Cosmos era o tipo de local que os Americanos fazem em todo o lado, com cascas de batatas estaladiças e molho de alho e sanduíches de três andares empaladas em enormes ganchos de plástico. 

– Como é que te estás a dar com o nosso distinto amigo académico? – perguntou ele, com o seu arrastado sotaque do Sul, depois de termos arrumado o nosso outro assunto. 

– Às mil maravilhas – respondi. 

– Um ou outro dos nossos parece pensar que o Teodor tem andado à boleia de graça durante estes anos todos – disse preguiçosamente Wagner. 

Desta vez eu não disse nada. 

– Os rapazes lá na terra têm estado na posse de uma retrospetiva do trabalho dele. Não é boa, Ned. Nada boa. Parte daquela coisa do «Olá, Hungria» que ele tem andado a impingir pela rádio já foi dita antes. Encontraram um trecho que encaixa perfeitamente num artigo publicado no Der Monat em 48. O autor original reconheceu as suas próprias palavras mal as ouviu no ar e até deu saltos. – Serviu-se prodigamente do ketchup. – De um dia para o outro somos capazes de sacá-lo para uma troca de impressões completa e franca. 

– Provavelmente anda em maré de azar – disse eu. 

– Quinze anos é um ror de tempo para andar em maré de azar, Ned. 

– Ele sabe que andas a investigá-lo? 

– Na Rádio Europa Livre, Ned? Entre húngaros? Mexericos? Deves estar a brincar. 

Não pude conter a minha ansiedade por mais tempo. 

– Mas porque é que ninguém avisou Londres? Porque é que não os avisaste tu? 

– Consta-me que avisámos, Ned. Consta-me que a mensagem caiu em saco roto. É uma ocasião má para os vossos rapazes. E se nós o sabemos! 

Por essa altura eu já me tinha dado conta da momentosa força da novidade que ele me dera. Se o professor andava a fazer batota com as suas emissões, com quem mais não andaria a fazer batota? 

– Posso fazer-te uma pergunta parva, Milt? 

– Por quem és, Ned. 

– O Teodor fez alguma vez bom trabalho para vocês? Durante todo o tempo? Trabalho secreto? Trabalho muito secreto, mesmo? 

Wagner meditou, decidido a conceder o benefício da dúvida ao professor. 

– Não posso dizer que não tenha feito, Ned. Nós pensámos mesmo a certo ponto em utilizá-lo como intermediário para o nosso peixe graúdo, mas não gostávamos lá muito das maneiras do velho. 

– Posso acreditar nisso? 

– Eu alguma vez te mentia, Ned? 

Com que então é este o trabalho fantástico que ele anda a fazer para os Americanos, pensei eu. Com que então isto é que são os anos de leais serviços de que ninguém é capaz de se lembrar bem. 

 

 

Mandei imediatamente uma mensagem a Toby. Demorei-me a redigir diferentes textos porque a minha fúria não parava de se meter de permeio. Compreendia perfeitamente a razão pela qual os Americanos se recusavam a dar o passaporte ao professor e por que motivo ele tinha recorrido antes a nós. Compreendia o seu ar de últimas coisas, a sua indiferença, a sua falta de urgência: estava à espera de ser posto na rua. Repeti a informação de Wagner e perguntei se ela era do conhecimento da Sede. Se não o era, os «primos» estavam em falta relativamente ao seu acordo de partilha connosco. Se, por outro lado, os «primos» nos tinham mesmo avisado, porque não fora eu também avisado? 

Na manhã seguinte tinha a escorregadia resposta de Toby. Assumia um tom régio. Desconfiei que tinha arranjado alguém que a escrevesse por ele, pois vinha isenta de sotaque. Os «primos» tinham feito um «aviso não específico» a Londres, explicava ele, de que o professor podia ser confrontado com «um inquérito disciplinar em data futura relativamente às suas emissões». A Sede – com o que eu desconfiava que queria dizer ele próprio – tinha «adotado o ponto de vista» de que a relação do professor com os seus patrões americanos não era do interesse direto do Circus. A Sede também «assumia o ponto de vista» – quem senão Toby podia tê-lo exprimido? – de que, com tanto trabalho operacional a ocupá-lo, o professor podia ser desculpado por quaisquer «pequenas faltas» no seu trabalho de cobertura. Se fosse preciso arranjar outro trabalho de cobertura para o professor, a Sede «faria diligências na ocasião propícia». Uma solução seria colocá-lo numa das revistas dóceis para as quais ele contribuía já esporadicamente. Mas isso era para o futuro. O professor já tinha tido problemas com os seus patrões anteriormente, lembrava-me Toby, e passara a tempestade a salvo. Era verdade. Uma secretária queixara-se dos seus avanços e havia elementos da comunidade húngara que tinham levantado objeções às suas opiniões antissemitas. 

Quanto ao resto, Toby aconselhava-me a ter calma, dar tempo ao tempo e – sempre uma máxima de Toby – agir como se nada se tivesse passado. E era neste pé que as coisas estavam uma semana e doze horas depois, quando o professor me telefonou às dez da noite, utilizando a palavra de código de emergência e pedindo-me com uma voz estrangulada mas imperiosa que passasse imediatamente por casa dele, entrando pela porta do jardim. 

A minha primeira ideia foi que ele matara alguém, possivelmente a mulher. Não podia estar mais enganado. 

 

 

O professor abriu a porta das traseiras e fechou-a rapidamente atrás de mim. As luzes no interior da casa estavam amortecidas. Algures na obscuridade, um relógio Biedermeier dos avós fazia tiquetaque como uma grande bomba antiga. À entrada da sala de estar encontrava-se Helena, com as mãos na boca, abafando um grito. Tinham-se passado vinte minutos desde o telefonema de Teodor, mas o grito ainda parecia a ponto de se lhe escapar. 

Havia duas cadeiras de braços diante de uma fogueira moribunda. Uma estava vazia. Imaginei que fosse a do professor. Na outra, um tanto obscurecida em relação à minha linha de visão, estava sentado um homem melífluo e roliço dos seus quarenta anos, com um capacete de cabelo preto macio e uns olhos redondos cintilantes que diziam que éramos todos amigos, não éramos? A sua poltrona de orelhas tinha espaldar alto e ele encaixara-se no canto dela como um passageiro de avião preparado para a aterragem. Os seus sapatos bastante circulares não chegavam bem ao chão, e ocorreu-me que eram sapatos da Europa de Leste: jaspeados, de um couro incerto e solas moldadas, muito gastas. O seu felpudo casaco castanho assemelhava-se a uma farda militar remodelada. Diante dele estava uma mesa com uma jarra de jacintos cor de malva e ao lado dos jacintos via-se um mostruário de objetos que reconheci como os instrumentos de morte silenciosa: dois garrotes feitos de cavilhas de madeira e pedaços de cordas de piano; uma chave de fendas tão afiada que era um estilete; um revólver Charter Arms 38 Undercover com um tambor de seis munições, juntamente com duas espécies de balas, seis de ponta romba e seis estriadas, com pó coagulado comprimido nas estrias. 

– É cianeto – explicou o professor, em resposta à minha muda perplexidade. – É uma invenção do demónio. Basta a bala atingir a vítima de raspão para a destruir por completo. 

Surpreendi-me a perguntar a mim próprio como podia o pó venenoso sobreviver ao calor intenso de um cano de pistola. 

– Este cavalheiro chama-se Ladislaus Kaldor – continuou o professor. – Foi enviado pela polícia secreta húngara para nos matar. É um amigo. Queira sentar-se, Herr Ned. 

Cerimoniosamente, Ladislaus Kaldor ergueu-se da cadeira e sacudiu-me a mão como se tivéssemos concluído um rendoso negócio. 

Sir! – exclamou alegremente, em inglês. – Latzi. Desculpe, senhor. Não preocupar nada. Toda a gente chamar Latzi a mim. Herr Doktor. Meu amigo. Sentar, faça favor. Sim. 

Recordo que a fragrância do jacinto parecia condizer às mil maravilhas com o seu sorriso. Só lentamente comecei a aperceber-me de que não experimentava qualquer sensação de perigo. Há pessoas que transmitem perigo a todo o momento; outras só se revestem dele quando estão zangadas ou são ameaçadas. Mas Latzi, quando consegui consultar os meus instintos, transmitia apenas uma enorme vontade de agradar. O que é talvez tudo aquilo de que se precisa quando se é um assassino profissional. 

 

 

Não me sentei. Tinha um coro de sentimentos antagónicos a gritar na cabeça, mas a fadiga não se contava entre eles. As chávenas de café vazias, estava eu a pensar. Os pratos vazios com migalhas de bolo. Quem come bolo e bebe café quando a sua vida está a ser ameaçada? Latzi estava novamente sentado, a sorrir como um prestidigitador. O professor e a mulher estudavam-me o rosto, mas de locais diferentes da sala. Discutiram, pensei; a crise conduziu-os aos seus cantos separados. Um revólver americano, pensei. Mas não o cano sobressalente que os artistas sérios habitualmente traziam. Sapatos da Europa de Leste, e com solas que deixam uma marca perfeita em cada tapete ou chão encerado. Balas de cianeto cujo cianeto arderia no cano. 

– Há quanto tempo está ele cá? – perguntei ao professor. 

Encolheu os ombros. Eu detestava aquele seu gesto. 

– Há uma hora. Nem tanto. 

– Há mais de uma hora – contradisse-o Helena. O seu olhar indignado estava fixo em mim. Até essa noite tinha feito questão de ignorar-me, deslizando por mim como um fantasma, sorrindo ou franzindo o cenho, de olhos no chão, a fim de mostrar o seu desagrado. De repente precisava do meu apoio. – Tocou à campainha exatamente às oito e quarenta e cinco. Eu estava a ouvir rádio. O programa mudou. 

Deitei um olhar a Latzi. 

– Fala alemão? 

Jawohl, Herr Doktor! 

Voltei a Helena. 

– Que programa? 

– O Serviço Internacional da BBC – disse ela. 

Dirigi-me ao rádio e liguei-o. Uma voz de cana rachada de algum académico de Oxford de sexo indeterminado balia acerca de Keats. Obrigado, BBC. Desliguei-o. 

– Ele tocou à campainha... Quem é que foi abrir? – perguntei. 

– Fui eu – disse o professor. 

– Foi ele – disse Helena. 

– Por favor – disse Latzi. 

– E depois? 

– Ele estava na soleira da porta, de sobretudo – disse o professor. 

– Gabardina – corrigiu-o Helena. 

– Perguntou se eu era o professor Teodor, e eu disse que sim. Declinou o nome e disse: «Desculpe, professor, vinha matá-lo com um garrote ou uma bala de cianeto mas não quero, sou seu discípulo e admirador. Quero entregar-me a si e ficar no Ocidente.» 

– Falou em húngaro? – perguntei. 

– Claro. 

– De forma que o senhor o convidou a entrar? 

– Claro. 

Helena não concordou. 

– Não! Primeiro o Teodor chamou por mim – insistiu. Antes dessa noite nunca a tinha ouvido corrigir o marido. Agora tinha-o feito duas vezes noutros tantos minutos. – Chama-me e diz: «Helena, temos um hóspede.» Eu digo: «Ótimo.» Depois convida o Latzi a entrar em casa. Eu pego-lhe na gabardina, penduro-a no vestíbulo, faço café. Foi exatamente assim que aconteceu. 

– E bolo – disse eu. – Fez um bolo. 

– O bolo já estava feito. 

– Teve medo? – perguntei eu, porque o medo, como o perigo, era outra coisa que faltava. 

– Fiquei chocada, fiquei escandalizada – respondeu ela. – Agora estou com medo... Sim, estou com muito medo. Estamos todos com medo. 

– E o senhor? – perguntei ao professor. 

Ele voltou a encolher os ombros, como que a dizer que eu era o último homem da terra ao qual confidenciaria os seus sentimentos. 

– Que tal se levasse a sua mulher para o escritório? – disse eu. 

Ele estava na disposição de altercar, mas a seguir mudou de ideias. Estranhos de braço dado, saíram da sala. 

Fiquei a sós com Latzi. Eu de pé, ele sentado. Munique tem dias em que é uma cidade muito silenciosa. Mesmo em repouso, o rosto dele sorria-me insinuantemente. Os seus olhinhos ainda bruxuleavam, mas não havia nada que eu pudesse ler neles. Dirigiu-me um aceno de encorajamento e o sorriso alargou-se-lhe. Disse «por favor» e instalou-se mais confortavelmente na cadeira. Eu fiz o gesto que qualquer pessoa da Europa Central compreende. Estendi a mão, com a palma para cima, e passei o polegar pela ponta do indicador. Ainda a sorrir, ele rebuscou no bolso interior do casaco e estendeu-me os documentos. Estavam em nome de Egon Braubach, de Passau, nascido em 1933, profissão artista. Compreendiam um passaporte alemão-ocidental, uma carta de condução e um documento de segurança social. Nenhum deles, ao que me pareceu, tinha nada de convincente. Nem os sapatos dele o tinham. 

– Quando foi que entrou na Alemanha? 

– Esta tarde, Herr Doktor, esta tarde às cinco. Por favor. 

– Vindo donde? 

– Viena, por favor, Viena – repetiu, num ímpeto esbaforido, como se estivesse a dar-me a cidade inteira de presente, e fez outro movimento coleante com o traseiro, aparentemente para alcançar maior subserviência. – Apanhei o primeiro comboio para Munique esta manhã, Herr Doktor. 

– A que horas? 

– Às oito, senhor. O comboio das oito. 

– Quando foi que entrou na Áustria? 

– Ontem, Herr Doktor. Estava a chover. Por favor. 

– Que documentos apresentou na fronteira austríaca? 

– O meu passaporte húngaro, Excelência. Em Viena deram-me documentos alemães. 

Estava a formar-se transpiração no seu lábio superior. O seu alemão era fluente mas inconfundivelmente balcânico. Tinha feito a viagem de comboio, disse: Budapeste, Gyor, Viena, Herr Doktor. Os patrões tinham-lhe dado frango frio e uma garrafa de vinho para a jornada. Com picles dos melhores, Senhoria, e paprica. Mais sorrisos. Ao chegar a Viena, tinha-se inscrito no Hotel Altes Kaiserreich, perto da estação ferroviária, onde lhe tinham reservado um quarto. Um quarto humilde, um hotel humilde, Excelência, mas eu sou um homem humilde. Fora no hotel, a altas horas da noite, que tinha sido visitado por um cavalheiro húngaro que nunca vira – «Mas desconfio que era um diplomata, Herr Doktor. Era uma pessoa distinta como o senhor!». Esse cavalheiro tinha-lhe dado o dinheiro e os documentos que trazia, explicou... e o arsenal que estava na mesa à nossa frente. 

– Onde é que está hospedado em Munique? 

– É uma modesta casa de hóspedes na orla da cidade, Herr Doktor – respondeu ele, com um sorriso de quem pede desculpa. – É mais um bordel que outra coisa. Veem-se lá muitos homens, a entrar e a sair a toda a hora. – Disse-me o nome e tive uma vaga impressão de que me ia recomendar também uma rapariga. 

– Disseram-lhe para ficar lá? 

– Por uma questão de discrição, Herr Doktor. De anonimato. Por favor. 

– Tem lá bagagem? 

Fez um encolher de ombros de pobre homem, bem diferente dos do professor. 

– Uma escova de dentes – disse. – Alguma roupa. Uma mala, senhor. Coisas modestas. 

Na Hungria era por vocação jornalista agrícola, disse, mas tinha arranjado um segundo modo de vida trabalhando para a polícia secreta, primeiro como informador e, mais recentemente, pelo dinheiro, como assassino. Tinha desempenhado determinadas tarefas dentro da Hungria mas preferia – que o perdoasse, Excelência – não dizer quais eram enquanto não lhe garantissem que não seria processado no Ocidente. O professor tinha sido a sua primeira «tarefa estrangeira», mas a ideia de o matar tinha ofendido o seu sentido do decoro. 

– O professor é um homem de certa envergadura, Herr Doktor! De reputação! Não é um judeu ou um padre qualquer! Porque havia eu de matar este homem? Eu sou um ser humano respeitável, céus! Tenho a minha honra! Por favor! 

– Diga-me as suas ordens. 

Não eram complicadas. Devia tocar à campainha do professor, tinham eles dito, de forma que ele tocara. O professor estaria decerto em casa, visto que às quartas-feiras dava aulas particulares até às nove, tinham eles dito. O professor estava efetivamente em casa. Devia identificar-se como um amigo de Pali, de Debrecen. Tinha tomado a liberdade de não se identificar nesses termos. Uma vez dentro de casa, devia matar o professor, pelos meios que se afigurassem adequados, preferivelmente o garrote, visto que era seguro e silencioso, embora houvesse sempre o lamentável perigo de decapitação. Devia matar também Helena, diziam eles: talvez matá-la antes, consoante quem lhe abrisse a porta, não eram esquisitos. Era para essa contingência que tinha trazido um segundo garrote. Com um garrote, Herr Doktor, explicou ele prestavelmente, uma pessoa nunca podia ter a certeza de ser capaz de desembaraçar o instrumento depois de o usar. Devia depois telefonar para um número de Bona, perguntar por Peter e comunicar que «Hoje a Susi fica em casa de uns amigos», sendo Susi o nome de código do professor para a operação, Excelência. Era esse o sinal do êxito, embora, nas circunstâncias actuais, Herr Doktor, houvesse que reconhecer que não tinha tido êxito. Uma risadinha. 

– Telefonar daqui? – perguntei. 

– Desta casa, exatamente. Para Peter. Por favor. São homens violentos, Herr Doktor. Ameaçam a minha família. Não tenho por onde escolher, naturalmente. Tenho uma filha. Deram-me instruções estritas: «De casa do professor telefonará a Peter.» 

Isto também me surpreendeu. Uma vez que o professor estava identificado para a polícia secreta húngara como um trunfo ocidental – e há quinze anos que o era –, seria de supor que desconfiassem do seu telefone. 

– Que faz você se falhar? 

– Se a tarefa não puder ser cumprida (se Herr Professor tiver visitas, ou por qualquer razão não estiver disponível), fiquei de telefonar de uma cabina e dizer que Susi vai a caminho de casa. 

– De alguma cabina telefónica em especial? 

– Todas as cabinas telefónicas servem, Herr Doktor, na eventualidade de a missão não ser levada a cabo. Peter pode então dar mais instruções ou não. Se não der, regresso imediatamente a Budapeste. Alternativamente, o Peter pode dizer: «Tente daqui a dois dias.» Neste caso está tudo nas mãos de Peter. 

– Qual é o número de telefone de Bona? 

Recitou-o. 

– Esvazie os bolsos. 

Um lenço cor de caqui, alguns instantâneos mal revelados de família, incluindo uns tantos de uma jovem, presumivelmente a filha, três preservativos da Europa de Leste, um maço aberto de cigarros russos, um periclitante canivete de folha de evidente fabrico de Leste, um toco de lápis não pintado, 960 marcos da Alemanha Ocidental, uns trocos. O bilhete de volta de comboio em segunda classe, Viena-Munique-Viena. Nunca na vida vi bolsos tão miseravelmente equipados. Não teriam os serviços húngaros expedidores? Verificadores? Que diabo esperavam eles? 

– E a gabardina – disse eu, e vi-o ir buscá-la ao vestíbulo. Era novinha em folha. Os bolsos estavam vazios. Era de fabrico austríaco e de boa qualidade. Devia ter custado uma porção de dinheiro ocidental. 

– Comprou isto em Viena? 

Jawohl, Herr Doktor. Estava a chover a cântaros e eu não tinha nenhuma proteção. 

– Quando? 

– Por favor? 

– Com quê? 

– Por favor? 

Descobri que ele era capaz de me irritar com bastante rapidez. 

– Apanhou o primeiro comboio desta manhã, não foi? Ele saiu de Viena antes de as lojas abrirem, não foi? Só recebeu o dinheiro ontem a altas horas da noite quando o diplomata húngaro o visitou. Então quando é que comprou a gabardina e o que foi que utilizou como dinheiro? Ou roubou-a? É essa a resposta? 

Primeiro franziu o sobrolho; depois riu indulgentemente perante o meu abandono das boas maneiras. Era claro que me perdoava. Abriu as mãos para mim em sinal de generosidade. 

– Mas comprei-a ontem à noite, Herr Doktor! Quando cheguei à estação! Com os meus Valuten pessoais que tinha trazido da Hungria para fazer compras, naturalmente! Não sou nenhum mentiroso! Por favor! 

– Guardou o recibo? 

Abanou sensatamente a cabeça, como quem dá um conselho a um homem mais novo. 

– Guardar recibos, Herr Doktor? Dou-lhe este conselho. Guardar recibos é um convite a perguntarem onde arranjou o dinheiro. Um recibo... é como um espião no bolso. Por favor. 

Demasiadas desculpas, pensei, libertando-me do brilho do seu sorriso. Demasiadas respostas num parágrafo. Todos os meus instintos me diziam que não confiasse em ninguém nem em coisa nenhuma acerca da história que estava a ser-me contada. Não era tanto o desleixo do plano de assassínio que violentava a minha credulidade – os documentos nada plausíveis, o conteúdo dos bolsos, os sapatos –, nem sequer a improbabilidade básica da missão. Já tinha visto suficientes operações-satélite soviéticas de baixo nível para encarar semelhantes amadorismos como norma. O que me perturbava em relação àquela gente era a irrealidade do seu comportamento na minha companhia, a sensação de que havia uma história para mim e outra para eles; que tinha sido ali trazido para desempenhar uma função, e a vontade coletiva exigia que calasse a boca e avançasse com ela. 

Ao mesmo tempo, contudo, estava encurralado. Não tinha outro remédio, nem tempo, se não aceitar tudo o que ele me tinha dito pelo valor facial. Estava na posição de um médico que, embora desconfie de que o paciente está a fingir-se doente, não tem por onde escolher a não ser tratar-lhe os sintomas. Pelas leis do jogo, Latzi era uma presa. Não é todos os dias que um assassino húngaro se dispõe a desertar para o Ocidente, por mais incompetente que ele seja. 

Da mesma maneira, o homem corria um perigo considerável, dado ser impensável que uma operação de assassínio desta importância pudesse ser lançada sem vigilância separada. 

Em caso de dúvida, diz o manual, segue-se a linha operacional. Estariam a vigiar a casa? Era necessário partir do princípio de que estavam, embora não se tratasse de uma casa fácil de vigiar, que era o que a tinha recomendado para os controladores de Teodor quinze anos atrás. Situava-se ao fundo de um frondoso beco sem saída e as traseiras ficavam à beira do rio. O acesso ao jardim seguia por um caminho de sirga. Mas o alpendre da frente era visível a quem quer que passasse, e Latzi podia já ter sido observado a entrar. 

Fui ao andar de cima e, da janela do patamar, vigiei a estrada. 

As casas vizinhas estavam às escuras. Não vi sinais de carros ou pessoas desgarrados. O meu carro estava estacionado na rua lateral contígua, junto ao rio. Regressei à sala de visitas. O telefone estava na estante. Estendi o auscultador a Latzi e vi-o marcar o número de Bona. Tinha umas mãos de rapariga e estavam húmidas. Obsequiosamente, inclinou o auscultador na minha direção, e inclinou-se a si próprio juntamente com ele. Cheirava a cobertor velho e tabaco russo. O telefone ressoou e ouvi uma voz de homem, muito mal-humorada, falando alemão. Para quem estava à espera de notícias de um assassínio, pensei eu, estás a fazer um belo papel de quem finge que não o está. 

Um sotaque cerrado, presumivelmente húngaro: 

– Está? Sim? Quem fala? 

Fiz um aceno de cabeça a Latzi para que continuasse. 

– Boa tarde, senhor. Desejava, por favor, falar com o Sr. Peter. 

– Sobre quê? 

– É o Sr. Peter que está a falar, por favor? É um assunto particular. 

– O que quer? 

– É Peter? 

– O meu nome é Peter! 

– É a respeito da Susi, Sr. Peter – explicou Latzi, com uma piscadela enviesada na minha direção. – A Susi não vem esta noite para casa, Sr. Peter. Fica em casa de uns amigos, acho eu. Bons amigos. Hão de tratar bem dela. Boa noite, Sr. Peter. – Estava a ponto de poisar o auscultador, mas eu travei-lhe a mão o tempo suficiente para ouvir um grunhido de desprezo ou incompreensão do outro lado antes de ele desligar. 

Latzi sorriu-me, muito satisfeito consigo próprio. 

– Ele faz bem o papel, Herr Doktor. Um verdadeiro profissional, diria eu. Um belo ator, não concorda? 

– Reconheceu a voz? 

– Não, Herr Doktor. Infelizmente, a voz não me é familiar. 

Abri a porta do escritório de repelão. O professor estava sentado à secretária, com os punhos diante dele. Helena sentava-se no sofá das alunas. Senti necessidade de dar a conhecer o meu ceticismo ao professor. Entrei no compartimento, fechando a porta atrás de mim. 

– Este tal Latzi, como o senhor lhe chama, é um criminoso – disse eu. – Ou é um vigarista qualquer, ou um assassino confesso que veio à Alemanha com documentos falsos para matá-lo e à sua mulher. Seja como for, o senhor está no seu direito de o entregar à polícia alemã-ocidental e ver-se livre dele. Quer fazer isso? Ou quer deixar-nos as decisões? Qual das duas coisas? 

Para minha surpresa, ele pareceu genuinamente alarmado pela primeira vez nessa noite. Talvez não estivesse à espera de ser intimado. Talvez se tivesse apercebido de repente da proximidade da sua própria morte. Fosse como fosse, tive a impressão de que ele atribuía demasiada importância à minha pergunta para que eu compreendesse. Helena tinha desviado os olhos de mim e observava-o também. Criticamente. Uma mulher à espera de ser paga. 

– Faça o que tem a fazer – murmurou ele. 

– Nesse caso terão de fazer o que eu pedir. Ambos. 

– Nós somos colaborantes. Seremos... sim, colaborantes. Há muitos anos que somos... colaborantes. Demasiados. 

Lancei um olhar a Helena. 

– A responsabilidade será do meu marido – disse ela. 

Não tive tempo de meditar nos mistérios daquela sinistra declaração. 

– Nesse caso façam o favor de reunir algumas coisas para passar a noite e estejam prontos no jardim daqui a cinco minutos – disse eu, regressando à sala de visitas e a Latzi. 

Acho que ele tinha estado de pé junto à porta, pois recuou prontamente quando eu entrei, após o que entrelaçou as mãos junto do queixo e me dirigiu um olhar radioso, perguntando-me o que me era gefallig: em que podia ser-me agradável? 

– Alguma vez tinha visto o professor antes desta noite? 

– Não, senhor. Só fotografias. Uma pessoa admirá-lo-ia em qualquer lado. Um verdadeiro aristocrata. 

– E a mulher? 

– É minha conhecida, senhor. Naturalmente. 

– Como? 

– Foi atriz, Herr Doktor, uma das melhores de Budapeste. 

– E viu-a no palco? 

Nova pausa. 

– Não, senhor. 

– Então onde foi que a viu? 

Ele tentava ler em mim. Tive a impressão de que se interrogava sobre se ela me teria dito alguma coisa, e estava a modelar as respostas em consonância. 

– Cartazes de teatro, Excelência. Quando era nova, o seu rosto famoso estava em todas as esquinas. Todos os jovens a amavam... e eu não era exceção. 

– E onde mais? 

Viu que eu não tinha nada. E eu vi que ele tinha visto. 

– É uma pena a beleza das mulheres, Herr Doktor. Um homem pode conservar-se interessante até aos oitenta. A mulher... – Suspirou. 

Deixei-o reunir as armas e a seguir tomei posse delas. Carreguei o revólver com as balas de ponta romba. Enquanto o fazia, ocorreu-me uma ideia. 

– Quando aqui entrei, o tambor estava vazio e as balas estavam espalhadas na mesa. 

– Correto, Excelência. 

– Quando é que tirou as balas do tambor? – perguntei. 

– Antes de entrar na casa. Para poder demonstrar as minhas intenções pacíficas. Claro. 

– Claro. 

À medida que nos deslocávamos para o vestíbulo, enfiei o revólver no cinto. 

– Se lhe passar pela cabeça fugir, alvejo-o pelas costas – expliquei-lhe, e tive a satisfação de ver-lhe os olhinhos girarem, alarmados. Ao que parecia, os assassinos profissionais não se habituavam de boa mente ao seu próprio remédio. 

Atirei-lhe a gabardina e lancei uma olhadela pelo compartimento à procura de outros vestígios seus. Não os havia. Ordenei silêncio e comandei os três pelo jardim e ao longo do caminho de sirga até ao meu carro. Uma atriz famosa, pensei, e nem uma palavra sobre ela no dossiê. Pus o professor e Helena atrás e Latzi à frente ao meu lado. Depois ficámos quietos durante cinco minutos enquanto eu esperava o mais leve sinal de que estivéssemos a ser vigiados. Nada. Levei o carro até à estrada principal e voltei a parar. Nada. Nesta altura já era meia-noite e tinha nascido uma lua nova entre as estrelas. Contornei a cidade, mantendo a vigilância pelo retrovisor, e a seguir tomei a autobahn para sueste em direção a Starnbergersee, onde tínhamos uma casa segura para fazer os briefings e debriefings dos agentes de passagem. Ficava perto da orla do lago e era guarnecida por duas mortíferas maravilhas guedelhudas deixadas lá pela secção de lampianistas do posto de Londres. Chamavam-se Jeffrey e Arnold. Arnold rondava à porta na altura em que lá chegámos. Tinha uma mão no bolso do cafetã. A outra pendia ameaçadoramente ao longo do flanco. 

– Sou eu, palerma – disse eu baixinho. 

Jeffrey conduziu o professor e a mulher ao quarto enquanto Arnold se sentava com Latzi na sala de visitas. Desci o jardim até à casa dos barcos, onde consegui finalmente falar com Toby Esterhase pelo telefone seguro. Estava espantosamente calmo. Dir-se-ia que esperava o meu telefonema. 

 

 

Toby chegou a Munique no primeiro avião de Londres na manhã seguinte, vestindo um casaco de pelo de carneiro e um chapéu mole de couro, e mais parecendo um empresário que um espião sitiado. 

– Nedike, meu Deus! – exclamou ele, abraçando-me como um pai pródigo. – Escuta, estás esplêndido, palavra. Parabéns, hem! Nada como um pouco de entusiasmo para dar rubor às faces. Como é que está mesmo a Mabel? Um casamento é uma coisa que a pessoa tem de regar, exatamente como uma flor. 

Conduzi devagar e falei, tanto quanto pude, desapaixonadamente, comunicando-lhe os frutos das minhas pesquisas através da longa noite. Queria que ele soubesse tudo o que eu sabia quando chegássemos à casa do lago. 

Nem os Americanos nem os Alemães Ocidentais tinham qualquer vestígio de Latzi, disse eu. Nem tão-pouco, soube por Toby, Londres. 

– Esse Latzi é uma página por escrever, Ned. Completamente – concordou Toby, vigiando a paisagem que ia passando com todos os sinais de aprovação. 

Também não havia vestígios do seu nome de cobertura bávaro, ou de nenhum dos nomes de cobertura que Latzi sustentava ter usado nas suas «tarefas» no interior da Hungria, disse eu. 

Toby abriu a janela a fim de gozar a fragrância dos campos. 

O passaporte alemão-ocidental de Latzi era falso, continuei eu com determinação, pertencente a um lote recentemente atamancado por um falsificador de meia-tigela de Viena e vendido no mercado privado. 

Toby ficou levemente indignado. 

– Sempre gostava de saber quem é que compra essa fancaria, por amor de Deus! – protestou, ao passarmos por um par de cavalos Isabel a pastar num cercado. – Em matéria de passaportes, hoje em dia, uma pessoa obtém realmente aquilo por que paga. Quando se obtém uma fancaria dessas, são seis meses num xilindró fedorento. – E abanou tristemente a cabeça como um homem cujos avisos caem em saco roto até ser demasiado tarde. 

Continuei a falar à toa. O número de telefone de Bona pertencia ao adido militar húngaro, disse eu, cujo primeiro nome figurava realmente na lista como Peter. Era um oficial identificado das Informações húngaras. Permiti-me uma ironia contida: 

– Essa é nova para nós, não é, Tobe? Um espião utilizando o seu próprio nome como nome de cobertura? Quer dizer, para que havemos de nos ralar mais? Tu és o Toby, de modo que vamos mantê-lo em segredo e chamar-te antes Toby. Esplêndido. 

Mas Toby estava demasiado concentrado em gozar o seu dia na Baviera para se deixar perturbar pelas implicações das minhas palavras. 

– Podes crer, Nedike, que esses tipos do exército são uns idiotas chapados. As informações militares húngaras são como a música militar húngara, percebes o que eu quero dizer? Sopram tudo cá para fora que é uma beleza. 

Continuei o meu recitativo. A Segurança alemã-ocidental tinha uma escuta permanente ao telefone do adido húngaro, disse eu. Uma cassete da conversa de Latzi com Peter vinha a caminho do meu gabinete. Por aquilo que percebi, não continha surpresas a não ser sublinhar que Peter parecia genuinamente não estar preparado para o telefonema. Peter não fizera nem recebera chamadas a noite passada, disse eu, nem tinha havido nenhum surto de tráfego de mensagens diplomáticas do telhado da embaixada húngara em Bona. Peter tinha-se, porém, queixado ao departamento de protocolo do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Alemanha Ocidental de perseguição telefónica na sua linha de casa. Isso não era, alvitrei eu, ato de conspirador. Toby tinha menos certezas. 

– Pode ser uma coisa, Ned, e pode ser outra – disse ele, recostando-se no banco e inclinando languidamente as palmas das mãos para um lado e para outro. – Um homem pensa que foi comprometido? Então talvez não seja assim tão estúpido apresentar queixa formal uma vez, apagar os vestígios... Porque não? 

Contei-lhe o resto. Estava decidido a isso. A descrição de Latzi do putativo diplomata de Viena condizia com a de Leo Bakocs, secretário comercial, e com Peter, oficial identificado das Informações húngaras, disse eu. O «primo» Wagner ia arranjar-nos uma fotografia para mostrar ao Latzi mais lá para o fim do dia. 

O nome de Bakocs trouxe um sorriso afetuoso aos lábios de Toby. 

– Arrastaram o Leo para isto? Escuta, o Leo é tão vaidoso que só espia duquesas. – Riu-se, com uma descrença jovial. – O Leo num hotel manhoso qualquer, a entregar garrotes a um assassino mal-cheiroso? Conta-me outra, Ned, palavra. 

– Não sou eu que estou a contar-te – disse eu. – É o Latzi. 

Finalmente, disse eu, tinha enviado Jeffrey à casa de passe de Munique a fim de pagar a conta de Latzi e recolher o seu saco de pernoita. O único artigo com interesse da sua bagagem era uma série de fotografias pornográficas. 

– É a tensão, Ned – explicou magnanimamente Toby. – Num país estrangeiro, quando se vai matar uma pessoa que não se conhece, precisa-se de um pouco de companhia particular... Estás a perceber onde eu quero chegar? 

Em contrapartida, Toby não me tinha trazido absolutamente nada, fosse particular ou não. Eu tinha-o imaginado toda a noite ao telefone, e talvez tivesse estado. Mas não em apoio das minhas investigações. 

– Talvez tenhamos uma festa hoje à noite – propôs ele. – O Harry Palfrey, do departamento jurídico, vem cá com um grupo de tipos do Ministério dos Negócios Estrangeiros. É boa pessoa, o Harry. Muito inglês. 

Eu fiquei desconcertado. 

– Que secção dos Negócios Estrangeiros? – perguntei. – Quem? Porquê o Palfrey? 

Mas, como diria Toby, as perguntas nunca são perigosas até se lhes responder. Chegámos à casa do lago para deparar com Arnold a fazer ovos com bacon. O professor e Latzi estavam sentados a um extremo da mesa. Helena, vegetariana, estava sentada no outro, a comer uma tablete de chocolate com avelãs do seu saco de mão. 

Arnold era loiro e esgalgado. Tinha o cabelo apanhado atrás com um nó. 

– Tiveram um pequeno desaguisado, Ned – confidenciou-me com ar desaprovador enquanto Toby se atirava ao pescoço do professor. – O professor e a patroa, uma verdadeira sessão de vale-tudo. Não sei quem foi que começou nem a respeito de que foi, não quis perguntar. 

– O Latzi tomou parte? 

– Ia tomar, Ned, mas eu disse-lhe para estar quieto. Não gosto de homens que se metem entre marido e mulher, nunca gostei. 

Em retrospetiva, as nossas discussões daquele dia assemelham-se a um complicado minuete, principiando na nossa humilde cozinha e terminando nas cortes do próprio todo-poderoso – mais precisamente, na sala de conferências enfeitada de bandeiras do Consulado-Geral americano, onde as inspiradas feições do presidente Nixon e do vice-presidente Agnew sorriam benignamente por sobre as nossas diligências. 

Porque Toby, conforme não tardei a perceber, longe de não fazer nada, tinha estabelecido um programa completo para si mesmo, que foi cumprindo fase por fase com a destreza de um diretor de circo. Na cozinha, escutou novamente a história toda da boca de Latzi e do professor, enquanto Helena chupava o seu chocolate. Nunca tinha visto Toby em pleno voo húngaro e ainda consegui assombrar-me com a transformação. Bastou-lhe uma frase para pôr de lado as forçadas peias da sua contenção anglo-saxónica e estar de volta à sua gente. 

Os olhos iluminaram-se-lhe. Arranjou-se e arqueou as costas como se estivesse montado num cavalo de aparato. 

– Dizem que foste mesmo fantástico, Ned – disse, dirigindo-se a mim ao fundo da mesa no meio de tudo isto. – Uma perfeita torre de força, dizem eles. Acho que são capazes de te recomendar para um Prémio Nobel. 

– Diz-lhes que transformem isso num Óscar, que eu aceito – disse eu azedamente, e fui dar um passeio à beira do lago para recuperar a calma. 

Regressei a casa, deparando com Toby e o professor fechados na sala de visitas, falando loquazmente. O elevado respeito de Toby pelo professor parecia, quando muito, ter aumentado. Latzi estava a ajudar Arnold a lavar a loiça e ambos riam à socapa. Latzi tinha estado manifestamente a contar-lhe uma piada indecente. Não se via Helena em parte nenhuma. A seguir, foi a vez de Latzi se sentar a sós com Toby, enquanto o professor e a mulher caminhavam penosamente pela beira do lago, parando a cada passo para se admoestarem um ao outro, até que o professor girou nos calcanhares e voltou a dirigir-se para a casa. 

Aproveitando a ocasião, esgueirei-me e reuni-me a Helena. Tinha os lábios apertados e o rosto de uma palidez doentia – não percebi se de medo, ira ou fadiga. Quando falou, viu-se obrigada a parar e principair de novo antes que as palavras lhe saíssem. 

– Ele é um mentiroso – disse. – São tudo mentiras! Mentira, mentira! É um mentiroso! 

– Quem? 

– São ambos mentirosos. Mentem desde o dia em que nasceram. Mentem no leito de morte. 

– Então qual é a verdade? – perguntei eu. 

– A verdade é esperar. 

– Esperar o quê? 

– Eu avisei-o. «Se fizeres isso, digo aos Ingleses.» De maneira que esperamos. Se ele o fizer, eu conto-vos. Se se arrepender, poupo-o. Sou mulher dele. 

Caminhou até à casa, toda imponente. Quando ela entrou, uma limusina preta encostou ao passeio e Harry Palfrey, o consultor jurídico do Circus, saiu dela, acompanhado por dois outros membros das classes governantes inglesas. Reconheci o mais alto como Alan Barnaby, luminária do incorretamente chamado Departamento de Informação e Pesquisa do Ministério dos Negócios Estrangeiros, que lidava com contrapropaganda comunista da mais reles. Toby apertava-lhe calorosamente a mão enquanto com a outra me fazia sinal para me reunir a eles. Entrámos e sentámo-nos. 

Ao princípio fiquei a ferver interiormente em silêncio. Os atores tinham sido mandados para o andar de cima. Toby fazia as despesas da conversa e os outros escutavam-no com a reverência especial que a sua laia reserva aos indigentes e aos negros. Até dei por mim a sentir-me um pouco protetor relativamente a ele – a Toby Esterhase, valha-me Deus, que não protegia ninguém a não ser a sua própria pessoa! 

– O que temos aqui entre mãos, Alan, sem falar a despropósito, a bem dizer, é uma fonte absolutamente de primeira que presentemente está esgotada – explicou Toby. – Um grande agente, mas os seus dias já lá vão. 

– Refere-se ao professor – disse prestavelmente Barnaby. 

– Andam atrás dele. Conhecem muitíssimo bem o seu valor. A partir de certas pistas que obtive do Latzi, é evidente que os húngaros têm um gordo dossiê sobre as operações do professor. No fim de contas, quer dizer, porque haviam eles de tentar matar um fulano que já não nos serve para nada? Eu diria que uma tentativa de assassínio por parte dos húngaros é um certificado da Good Housekeeping para o alvo. 

– Não podemos ser indefinidamente responsáveis pela segurança do professor – alertou-nos Palfrey com o seu sorriso de derrotado. – Podemos, claro, dar-lhe proteção por uns tempos. Mas não podemos aceitar um interesse vitalício nele. Ele tem de o saber. Podemos ter de o fazer assinar qualquer coisa só para deixar isso assente. 

O segundo homem do Ministério dos Negócios Estrangeiros era roliço e luzidio e tinha uma corrente a atravessar o colete. Senti um impulso infantil de puxar por ela e ver se ele guinchava. 

– Bem, eu cá por mim acho que somos capazes de estar todos a falar de mais – disse sedosamente. – Se os Americanos concordarem em tirar-nos o casal das mãos, o professor e a patroa, não teremos de nos ralar, pois não? O melhor é não darmos nas vistas e mantermo-nos prontos para o que der e vier, que tal? 

Palfrey hesitava. 

– Mesmo assim ele devia assinar uma desobrigação relativamente a nós, Norman. Tem andado a jogar um tanto ou quanto connosco contra os «primos» nestes últimos anos. 

Sempre o protetor da sua própria pessoa, Toby fez um sorriso conhecedor. 

– Eu diria que todos os melhores agentes fazem isto, Harry. Uma mão lava a outra, mesmo ao nível do Teodor. A questão é esta: agora que ele já não é utilizável, que temos nós a perder a não ser mesmo complicações? Isto é, o especialista aqui não sou eu – acrescentou, com um sorriso insinuante dirigido a Barnaby. 

– E o tal assassino? – perguntou o homem chamado Norman. – Também alinha? É perigoso como o raio, não é, ali especado como um pato numa árvore? 

– O Latzi é flexível – disse Toby. – Está assustado e além disso é um perfeito patriota. – Eu não o teria apoiado em nenhum destes aspetos, mas estava demasiado repugnado para interromper. – Estes apparatchiks, quando põem o pé fora do sistema, ficam em estado de choque. O Latzi está a resistir. Tortura-se com a família, mas está reconciliado. Se o Teodor aceitar, o Latzi também aceita. Com garantias, naturalmente. 

– Que espécie de garantias? – perguntou o reluzente homem dos Negócios Estrangeiros, tão depressa que nem sequer Harry Palfrey se lhe antecipou. 

Toby não vacilou. 

– Bem, o habitual, naturalmente. O Latzi e o Teodor não hão de querer ser atirados para o monte do lixo quando isto acabar, com certeza. Nem a Helena. Passaportes americanos, uma boa porção de dinheiro no final de tudo, assistência e proteção... Ou seja, é básico, por assim dizer. 

– É tudo um conto do vigário – disse eu abruptamente. Estava farto. 

 

 

Toda a gente me sorria. Teriam sorrido fosse o que fosse que eu dissesse. Eram esse tipo de malta. Se eu tivesse dito que era um agente duplo húngaro, teriam sorrido. Se eu tivesse dito que era o irmão mais novo de Hitler reencarnado, teriam sorrido. Todos menos Toby, isto é, cujo rosto tinha adquirido o ar inanimado de alguém que sabe que tudo quanto pode ser com segurança neste momento é absolutamente ninguém. 

– Ora por que carga de água diz você isso, Ned? – estava Barnaby a perguntar, terrivelmente interessado. 

– O Latzi não é um assassino adestrado – disse eu. – Não sei o que é, mas não é um assassino. Trazia uma pistola descarregada. Nenhum profissional no seu perfeito juízo faz semelhante coisa. Finge-se um artista bávaro, mas veste roupa húngara e metade da tralha que traz nos bolsos é húngara. Eu estava ao pé dele quando fez o telefonema para Bona. Certo, o primeiro nome do adido é Peter. Vem na lista diplomática como Peter. O Peter não estava à espera daquele telefonema nem no dia de São Nunca. O Latzi apanhou-o de surpresa. Ouçam a gravação alemã da conversa deles. 

– Então e o tipo de Viena, Ned? – disse Barnaby, ainda decidido a ser paternalista para comigo. – O tipo que lhe deu o dinheiro e o material? Hem? Hem? 

– Nunca se encontraram. Mostrámos a fotografia ao Latzi e ele ficou encantado. «É esse», disse ele. Ora obrigado: tinha visto uma fotografia algures. Perguntem à Helena, ela sabe. Para já não diz, mas, se a pressionarmos, tenho a certeza de que há de dizer. 

Toby animou-se por instantes. 

– Pressionar, Ned? A Helena? A pressão é uma coisa que se usa quando sabemos que podemos apertar mais que o outro fulano. A mulher é doida pelo marido. Para dizer a verdade, defende-o até à tumba. 

– O professor teve sarilhos com os Americanos – disse eu. – Eles estão a enrolar-lhe a passadeira vermelha. Está desesperado. Se não foi ele mesmo que montou o assassínio, foi o Latzi. Toda a tramoia é um expediente para ele fechar a loja enquanto é tempo e encetar uma nova vida. 

Esperaram que eu continuasse, todos eles. Era como se estivessem à espera do desfecho da história. Finalmente Toby falou. Tinha redescoberto a sua forma. 

– Há quanto tempo é que não dormes como deve ser, Nedike? – perguntou com um sorriso indulgente. – Diz-nos lá, se fazes favor. 

– Que tem isso para o caso? 

Toby examinava aparatosamente o relógio. 

– Acho que não dormes há trinta horas, Ned. Tomaste algumas decisões importantes como o raio nesse período... Todas boas, diga-se de passagem. Não me parece que te possamos censurar por teres uma reaçãozita. 

Era como se eu nem tivesse chegado a falar. Todas as cabeças se viraram de novo para Toby. 

– Bem, eu cá por mim acho que é bastante importante darmos uma espreitadela ao elenco – dizia Barnaby quando eu me dirigi para a porta. – Podemos mandá-los vir cá abaixo, Toby? A questão é como eles se portarão debaixo dos projetores. 

– Acho que é capaz de ter interesse fazer esta coisa agora mesmo para sacar qualquer novidade, Barnaby – dizia Palfrey, quando eu me dirigia para o jardim e a sanidade. – Malhar enquanto o ferro está quente. Vais por mim? 

– Vou por ti em toda a linha, Harry. Cem por cento. 

 

 

Recusei-me a estar presente para a primeira entrevista. Fiquei amuado na cozinha e deixei Arnold socorrer-me enquanto fingia ouvir uma história qualquer acerca de a mãe ter deixado o fulano com quem vivia há vinte anos para ir viver com o namorado de infância. Vi Toby esgueirar-se até ao andar de cima para ir buscar os seus campeões e franzi o cenho quando os três homens desceram minutos depois, Latzi com o cabelo preto alisado formando uma risca e o professor com um casaco pelos ombros, a cabeça de vidente atirada para a frente em contemplação e a cabeleira branca a flutuar compostamente. 

Nessa altura Helena entrou na cozinha com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces, de modo que Alfred a abraçou e foi buscar-lhe um cobertor, porque a manhã de Primavera estava fresca e ela tremia. Depois Arnold fez-lhe um chá de camomila e sentou-se com o braço por cima dela até Toby entrar agitadamente para dizer que éramos todos esperados no consulado americano daí a duas horas. 

– O Russell Sheriton vem de avião de Londres e o Pete de May de Bona. São de mão-cheia para isto. Absolutamente de mão-cheia. Washington está que não cabe em si de contente. – Não me lembro se Pete de May era mais importante ou menos importante que Sheriton. Mas era suficientemente importante. – Ned, este Teodor é fantástico – assegurou-me Toby em privado. 

– A sério? Em que aspeto? 

– Sabes o que lhe disseram? «O que o senhor está a fazer é arriscado como o raio, professor. Acha que está à altura?» Sabes o que ele respondeu? «Senhor embaixador, risco é tudo o que fazemos para proteger a sociedade civilizada.» É calmo, digno. O Latzi também. Ned, depois disto dorme um bocado, está bem? Eu telefono à Mabel. 

Fomos em dois carros, Toby com os húngaros e eu com Palfrey e os Negócios Estrangeiros. Ao abrir a porta do carro para eu entrar, Palfrey tocou-me o braço e ofereceu-me um conselho cheio de veneno. 

– Acho que daqui por diante são todas as mãos a puxar juntas, Ned. Estar cansado é uma coisa, mas falar de contos do vigário é outra. Está bem? De acordo? 

 

 

Devíamos somar vinte cabeças. Quem presidia era o cônsul-geral. Tratava-se de um pálido natural do Centro-Oeste, ex-advogado como Palfrey, e não parava de falar ansiosamente de «reprocussões». Milton Wagner estava sentado entre Sheriton e De May. Era para mim claro que, fossem quais fossem os seus pensamentos privados, Sheriton e Wagner tinham ordens no sentido de guardar o respetivo ceticismo para si. Talvez também eles tivessem reconhecido que havia maneiras piores de se verem livres de agentes inúteis do que desembarcá-los nos Serviços de Informações dos EUA, que eram representados por um quarteto de perturbados crentes cujos nomes nunca soube. 

Claro que Pullach estava representado. Embora não envolvidos, tinham mandado o seu próprio observador, de forma que podíamos estar seguros de que as nossas determinações seriam o falatório de Potsdam lá para a tarde. Insistiam também em fazer uma eloquente queixa de Viena. Parecia que Pullach tinha uma guerra em curso com a polícia austríaca a respeito de passaportes falsificados, e desconfiava que ela os vendia aos húngaros. Uma boa parte da reunião foi ocupada por um tal Obert von-und-zu sei lá o quê a resmungar acerca da duplicidade austríaca. 

Os três campeões não assistiram, evidentemente, às nossas deliberações, permanecendo na sala de espera. Quando foram distribuídas sanduíches, foi-lhes enviada uma generosa bandeja delas. E quando finalmente foram chamados, diversos membros leigos da reunião romperam em ovações, o que deve ter sido a primeira das muitas vezes, daí em diante, em que ouviram o ruído de fundo da maquilhagem de cena. 

Mas foram as lágrimas de Helena que conquistaram a assistência. O professor disse as suas poucas palavras e a sua dignidade hesitante surtiu a previsível magia. Seguiu-se-lhe Latzi e um frio estremecimento percorreu a sala quando ele explicou por que razão trouxera dois garrotes, que foram então passados cautelosamente à roda da mesa juntamente com o resto das provas. Mas, quando Helena deu um passo em frente de braço dado com o professor, senti um nó subir-me à garganta e percebi que toda a gente na sala estava a sentir o mesmo. 

– Eu apoio o meu marido – foi tudo quanto a grande atriz conseguiu declamar. 

Mas foi o suficiente para pôr toda a sala de pé. 

 

 

Só ao fim da noite consegui falar com ela a sós. Nessa altura já estávamos estoirados; até o irreprimível Latzi estava exausto. Os capitães e os reis tinham partido e Toby partira também. Eu estava sentado com Arnold na sala de visitas da casa do lago. Uma furgoneta americana, de vidros fumados e dois fuzileiros à paisana lá dentro, esperava no passeio, mas as nossas estrelas estavam a aprender a fazer esperar o público. O dia tinha sido passado a preparar comunicados da tarde à imprensa e a assinar as desobrigações de Palfrey, que calhava ele ter trazido consigo na pasta. 

Ela entrou hesitantemente, como se esperasse que eu a agredisse, mas a ira já se me tinha esgotado. 

– Vamos conseguir os nossos passaportes – disse ela, sentando-se. – É o novo mundo. 

Arnold esgueirou-se diplomaticamente da sala, fechando a porta atrás de si. 

– Quem é o Latzi? – perguntei eu. 

– É um amigo do Teodor. 

– Que mais é que ele é? 

– É um ator. Um mau ator, oh, bem mau, de Debrecen. 

– Alguma vez trabalhou para a polícia secreta? 

Ela fez um gesto de desaprovação. 

– Tinha ligações. Quando o Teodor precisava de chegar a acordo com as autoridades, o Latzi era o intermediário. 

– Quer a senhora dizer, quando o Teodor precisava de dar informações sobre os alunos? 

– Sim. 

– O Latzi forneceu as suas informações ao Teodor quando estavam em Munique? 

– A princípio só um pouco. Mas, como não viesse nenhuma de outras fontes, mais. Depois muito mais. O Latzi preparava o material para o Teodor. O Teodor vendia-o aos Ingleses e aos Americanos. De contrário não teríamos dinheiro. 

– O Latzi obtinha ajuda da polícia secreta para o fazer? 

– Fazia-o particularmente. As coisas estão a mudar na Hungria. Já não é prudente uma pessoa estar envolvida com as autoridades. 

Abri a porta e vi-a fazer a sua saída, de cabeça ereta. 

Umas semanas mais tarde, de regresso a Londres, confrontei Toby com a história dela. Ele não ficou surpreendido nem contrito. 

– As mulheres, Ned, são mesmo uma espécie criminosa. Vale mais comer a sopa do que remexê-la. 

Mais umas semanas e o espetáculo Teodor-Latzi estava nos píncaros. E Toby também. Até que ponto ele fazia parte dele? Até que ponto estava a par da altura certa? Totalmente? Teria ele idealizado toda a peça de teatro a fim de tirar o melhor partido do seu agente em perigo e libertar-se dele? Muitas vezes desconfiei secretamente que a peça era a três, com Helena por relutante assistência. 

– Sabes uma coisa, Nedike? – declarou Toby, passando-me um braço afetuoso pelo ombro. – Se a pessoa não é capaz de montar dois cavalos ao mesmo tempo, o melhor é dizer adeus ao Circus. 

 

 

O leitor lembra-se do pseudónimo Coronel Weatherby no livro? O mestre dos disfarces, à vontade em sete línguas europeias? O Pimpinela dos lutadores da resistência da Europa de Leste? O homem que «passava a Cortina de Ferro para cá e para lá como se fosse da mais frágil gaze»? Era eu. Ned. Não fui eu que escrevi essa parte, graças a Deus. Foi obra de qualquer jornalista desportivo venal de Baltimore recrutado pelos «primos». A minha era o retrato introdutório do grande homem, impresso sob o título: «O Verdadeiro professor Teodor tal como o conheci», e fora-me arrancada por Toby e pelo Quinto Andar. O meu título provisório para o livro era «Truques do Ofício», mas o Quinto Andar disse que isso podia ser mal interpretado. Promoveram-me, em vez disso. 

Mas não antes de eu ter transmitido a minha indignação a George Smiley, que tinha acabado de renunciar ao seu trabalho de chefe interino e estava a ponto de se retirar praticamente pela última vez para as sombras da vida académica. Eu estava de volta a Londres num intervalo a meio da comissão. Era sexta-feira à noite e deparei com ele na Bywater Street, a fazer as malas para o fim de semana. Ouviu-me até ao fim, deu uma pequena risada e depois uma risada maior. Murmurou: «Ah, o Toby», afetuosamente, baixinho. 

– Mas então eles assassinam mesmo, não assassinam, Ned? – objetou ele enquanto dobrava laboriosamente um fato de tweed. – Os húngaros, quero eu dizer. Até pelos cânones da Europa de Leste, são com certeza da gentalha mais reles que há, não? 

Sim, concedi eu, os húngaros matavam e torturavam mais ou menos a seu bel-prazer. Mas isso não modificava o facto de Latzi ser um aldrabão e Teodor cúmplice de Latzi; e, quanto a Toby... 

Smiley cortou-me a palavra. 

– Ora bem, Ned, acho que está a ser um tudo-nada formalista. Todas as igrejas precisam dos seus santos. A igreja anticomunista não é exceção. E os santos, bem vistas as coisas, são uma boa cambada de barretes. Mas ninguém teria a pretensão de dizer que não têm a sua utilidade, uma vez obtido o trabalho. Acha que esta camisa serve, ou tenho de lhe dar outra passadela a ferro? 

Sentámo-nos na sua sala de visitas a beberricar os nossos uísques e a ouvir o clamor dos frequentadores de festas de Bywater Street. 

– E o fantasma da Stefanie perseguiu-o nos passeios de Munique, Ned? – perguntou ternamente Smiley, no preciso momento em que eu começava a perguntar a mim mesmo se ele não teria adormecido. 

Há muito tempo que tinha deixado de me assombrar a capacidade que ele tinha de se pôr no meu lugar. 

– De vez em quando – respondi. 

– Mas não em carne e osso? Que pena. 

– Uma vez telefonei a uma das tias dela – disse eu. – Tinha tido uma discussão parva qualquer com a Mabel e fora para um hotel. Era tarde. Suponho que estava um bocado bêbedo. – Dei por mim a pensar se Smiley já saberia, e resolvi que estava a ser fantasista. – Pelo menos penso que era uma tia dela. Podia ser uma criada. Não, era uma tia. 

– Que disse ela? 

– Fräulein Stefanie não está em casa. 

Um longo silêncio, mas desta vez não cometi o erro de pensar que ele se tinha posto a dormir. 

– Uma voz jovem? 

– Bastante. 

– Então talvez tivesse sido a Stefanie a responder. 

– Talvez. 

Voltámos a escutar as vozes altas na rua. Uma rapariga ria. 

Um homem estava zangado. Houve alguém que fez soar a buzina e arrancou. Os sons extinguiram-se. Stefanie é a minha Ann, pensei eu, ao atravessar o rio de regresso a Battersea, onde tinha conservado o meu pequeno apartamento: a diferença é que nunca tive a coragem de deixá-la desapontar-me.