7
Smiley tinha-se interrompido – uma história qualquer acerca de um diplomata da América Central com a paixão por modelos de comboios britânicos de uma certa geração e de o Circus ter comprado a fidelidade vitalícia do homem com uma locomotiva de manobra Horny Double-O roubada a um museu de brinquedos de Londres pela equipa de Monty Arbuck. Toda a gente se ria antes daquele súbito silêncio reflexivo, enquanto o olhar perturbado de Smiley se fixava num qualquer ponto fora da sala.
– E uma vez quando o rei faz anos… deparamos com a realidade com a qual andámos a brincar – disse ele tranquilamente. – Enquanto isso não acontece, somos espetadores. Os agentes vivem os nossos sonhos por nós, e nós, os funcionários encarregados, ficamos muito sossegadinhos atrás dos nossos espelhos de ver só para um dos lados, dizendo a nós mesmos que ver é sentir. Mas, quando soa o momento da verdade… se alguma vez soar para nós, bem, daí em diante tornamo-nos um pouco mais humildes no que pedimos às pessoas para fazerem por nós.
Nem uma só vez me lançou um olhar ao dizer isto. Não revelou qualquer pista sobre quem tinha em mente. Mas eu sabia, e ele também. E cada um de nós sabia que era o coronel Jerzy.
*
Vi-o e não disse nada a Mabel. Talvez estivesse demasiado surpreendido. Ou talvez os velhos hábitos de dissimular levem tanto tempo a desaparecer que ainda hoje a minha primeira resposta a qualquer acontecimento inesperado seja reprimir a reação espontânea. Estávamos a ver o noticiário das nove horas da televisão, que nesse tempo se tinha tornado para Mabel e para mim uma espécie de Vésperas, não me pergunte o leitor porquê. E em lugar de saltar da cadeira e gritar «Meu Deus! Mabel! Olha, aquele fulano lá atrás! É o Jerzy!» – que seria a reação saudável de um homem vulgar –, continuei a olhar para o ecrã e a beberricar o meu uísque com água gasosa. Depois, assim que fiquei a sós, enfiei uma fita nova no gravador de vídeo de modo a ter a certeza de apanhar a repetição quando aparecesse outra vez no noticiário da noite. Depois disso – o incidente conta já seis semanas – devo-o ter visto uma dúzia de vezes mais, porque há sempre qualquer matiz adicional a saborear.
Mas terei de deixar essa parte da história para onde pertence. O melhor é revelar os acontecimentos ao leitor à medida que sucederam, pois Munique tinha mais que se lhe dissesse que o professor Teodor, e a espionagem tinha mais que se lhe dissesse na esteira do desmascaramento de Haydon do que a espera pelo sarar das feridas.
O coronel Jerzy era polaco e nunca percebi por que razão tantos polacos têm um fraquinho por nós. As nossas repetidas traições ao seu país sempre me pareceram tão infames que, se fosse polaco, havia de cuspir em cada sombra britânica que passasse, quer tivesse sofrido às mãos dos nazis quer às dos Russos – uma vez que a seu tempo os britânicos abandonaram os pobres polacos a ambos. E sentir-me-ia decerto tentado a colocar uma bomba debaixo do chamado «departamento competente» do Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico. Céus, que frase! Na altura em que escrevo, os Polacos estão mais uma vez entalados entre o imprevisível Urso russo e o bastante mais previsível Touro alemão. Mas o leitor pode ter a certeza absoluta de que, se alguma vez precisarem de um bom amigo para os ajudar, o mesmo «departamento competente» do Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico há-de enviar as suas mais melífluas desculpas e pretextar uma função mais atraente noutro lado qualquer.
Não obstante, os registos do meu Serviço alardeiam uma desproporcionada taxa de êxitos na Polónia e um número quase embaraçante de polacos e polacas que, com uma descuidada coragem muito sua, arriscaram o pescoço e o das famílias a fim de espiar para «a Inglaterra».
Não admira, pois, que, na sequência de Haydon, a percentagem de baixas no seio das nossas redes polacas fosse correspondentemente elevada. Graças a Haydon, os Britânicos tinham somado mais uma traição ainda à sua longa lista. À medida que cada nova perda se seguia à anterior com doentia inevitabilidade, o ar de luto no nosso posto de Munique tornou-se quase palpável e a nossa sensação de vergonha era exacerbada pela nossa impotência. Nenhum de nós tinha qualquer dúvida do que se passara. Até ao outono, a Segurança polaca – competentemente dirigida pelo respetivo chefe de Operações, o coronel Jerzy – tinha trazido a traição de Haydon junto ao peito, contentando-se com penetrar as nossas redes existentes e utilizá-las como canais de desinformação – ou, quando conseguiam virá-las, servir-se habilmente delas contra nós.
Depois do outono, porém, o coronel não sentiu necessidade de mais delicadezas e no decurso de poucos dias silenciou barbaramente aqueles dos nossos agentes leais que até então permitira que se mantivessem no local. «A lista de alvos de Jerzy», chamávamos-lhe nós à medida que o rol aumentava quase diariamente, e, na nossa frustração, desenvolvemos um ódio pessoal pelo homem que tinha assassinado os nossos bem-amados agentes, por vezes nem se incomodando com as formalidades de um julgamento, mas deixando os seus inquiridores gozar até ao fim.
Pode parecer estranho imaginar Munique como trampolim para a Polónia. Contudo, Munique tinha sido durante décadas o centro de comando para uma série de operações polacas. Do telhado do nosso anexo consular, num subúrbio frondoso, as nossas antenas tinham passado dia e noite à escuta das mensagens dos nossos agentes – muitas vezes um simples bip comprimido entre palavras ditas no rádio em claro. E de volta, segundo horários predeterminados, nós tínhamos-lhes transmitido consolo e ordens novas. De Munique tínhamos expedido as nossas cartas polacas, impregnadas de escrita secreta. E se as nossas fontes conseguiam viajar para fora da Polónia, era mais uma vez de Munique que partíamos de avião para lhes fazer o debriefing, banqueteá-los e ouvir as suas preocupações.
Era também de Munique, quando a necessidade era suficientemente grande, que os nossos oficiais de posto atravessavam para a Polónia, sempre sozinhos e normalmente sob o disfarce de um homem de negócios de visita a caminho de uma feira ou exposição comercial. E em qualquer local de piquenique à beira da estrada ou café numa rua das traseiras, os nossos emissários encontravam-se brevemente cara a cara com os nossos preciosos agentes, faziam a transação que tinham a fazer e partiam, sabendo que tinham alimentado a chama. Porque ninguém que não tenha levado a vida de um agente pode imaginar a solidão de fé que ela traz. Uma chávena de bom café na altura certa compartilhada com um bom funcionário responsável pode elevar o moral de um agente durante meses.
Foi assim que aconteceu, num dia de inverno pouco tempo depois da segunda metade da minha comissão em Munique (e da bem-vinda partida do professor Teodor e dos seus apêndices para a América), dar por mim em viagem para Gdansk num voo das Linhas Aéreas Polacas LOT de Varsóvia, com um passaporte holandês no bolso que me descrevia como Frans Joost, de Nijmegen, nascido havia quarenta anos. De acordo com o meu pedido de visto de homem de negócios, a minha missão consistia em inspecionar construções agrícolas prefabricadas ao serviço de um consórcio agrícola alemão-ocidental. Porque eu tenho umas certas bases de engenharia, e sem dúvida as suficientes para trocar cartões de visita com funcionários do Ministério da Agricultura deles.
A minha outra missão era mais complicada. Procurava um agente chamado Oskar, que tinha regressado à vida seis meses depois de ser dado como morto. Caído do céu, Oskar tinha-nos mandado uma carta para um velho endereço de cobertura, utilizando o seu equipamento de escrita secreta e descrevendo tudo o que tinha e o que não tinha feito desde o dia em que soubera pela primeira vez das prisões até agora. Tinha mantido o sangue-frio. Conservara-se na sua missão. Denunciara anonimamente qualquer inocente apparatchik da sua secção de arquivos a fim de desviar suspeitas. Esperara e, passadas umas semanas, o apparatchik desaparecera. Encorajado, voltara a esperar. Chegou-lhe aos ouvidos que o apparatchik tinha confessado. Dado o terno tratamento do coronel Jerzy, não era de admirar. Com o correr das semanas, começou a sentir-se novamente em segurança. Agora estava pronto para reatar o trabalho se alguém lhe dissesse o que fazer. Em penhor disto, enfiara micropontos nos terceiro, quinto e sétimo parágrafos da carta, que eram as posições previamente combinadas. Ampliados, cifravam-se em dezasseis páginas de ordens muitíssimo secretas do Ministério da Defesa polaco para o departamento do coronel Jerzy. Os analistas do Circus declararam-nas «prováveis e consideradas fidedignas», o que, vindo deles, era uma extática declaração de fé.
O leitor há-de imaginar agora a excitação que a carta de Oskar ateou no posto, e mesmo em mim, embora eu nunca o tivesse conhecido. Oskar!, exclamavam os crentes. O velho demónio! Vivinho da costa debaixo das ruínas! Não há como o Oskar para se safar! Oskar, o nosso endurecido funcionário do almirantado polaco, baseado no quartel-general da defesa costeira de Gdansk, um dos melhores que o posto alguma vez tivera!
Só os mais empedernidos ou mais próximo da reforma rechaçaram a carta como engodo. Dizer «não» em casos que tais é fácil. Para dizer «sim» é preciso fibra. Contudo, os mais distintamente escutados são sempre os que dizem que não, particularmente depois de Haydon, e por uns tempos houve um impasse em que ninguém tinha coragem de saltar para um lado ou para o outro. Para fazer tempo, escrevemos a Oskar pedindo mais garantias. Ele respondeu encolerizadamente exigindo saber se confiavam nele, e desta vez insistiu num encontro. «Um encontro ou nada», dizia ele. E na Polónia. Depressa ou nunca.
Enquanto a Sede continuava a vacilar, eu implorei que me deixassem ir ter com ele. Os descrentes do meu posto disseram que eu era doido e os crentes disseram que era a única coisa decente a fazer. Não me deixei convencer por nenhuma das fações, mas queria ver claro. Talvez o quisesse também para mim, porque Mabel tinha mostrado recentemente indícios de pôr ponto final na nossa relação e eu não estava disposto a ter-me em demasiada conta. A Sede alinhou com os do não. Recordei-lhes os meus antecedentes navais. A Sede vacilou e disse «não, mas talvez». Recordei-lhes o meu bilinguismo e a força testada da minha identidade holandesa, com a nossa ligação holandesa perdoada a troco de favores noutro campo. A Sede avaliou os riscos e as alternativas e finalmente disse: «Sim, mas só por dois dias.» Talvez tivessem concluído que, depois de Haydon, fosse como fosse, eu não tinha tido assim tantos segredos para revelar. Apressadamente, compus a minha cobertura e pus-me a caminho antes que eles pudessem mudar novamente de ideias. A temperatura era de seis graus negativos quando o meu avião aterrou no aeroporto de Gdansk; as ruas estavam cobertas de um espesso manto de neve e a quietude transmitiu-me uma sensação de segurança exagerada para o que era prudente. Mas não ia correr riscos, pode o leitor acreditar. Podia estar à procura de ver claro, mas já não era nenhum inocente.
Os hotéis de Gdansk são de um horror uniforme, e o meu não constituía exceção. O átrio fedia como um urinol desinfetado; a inscrição era tão complicada como adotar um bebé e demorava mais. O meu quarto revelou-se ser o de outra pessoa e ela não falava nenhum idioma conhecido. Quando descobri outro quarto e uma criada para retirar os vestígios mais grosseiros do seu habitante anterior, já estava escuro e eram horas de dar a conhecer a minha chegada a Oskar.
Todo o agente tem a sua caligrafia. No verão, dizia a ficha, Oskar gostava de pescar, e o meu antecessor tinha mantido conversas bem-sucedidas com ele ao longo da margem do rio. Tinham até pescado alguns peixes juntos, embora a poluição os tornasse incomestíveis. Mas estávamos no pino do gelado inverno, altura em que só as crianças e os masoquistas pescavam. No inverno os hábitos de Oskar alteravam-se e gostava de jogar bilhar num clube para funcionários subalternos perto das docas, clube esse que tinha telefone. A fim de iniciar um encontro, o meu antecessor, que falava polaco, só tinha de telefonar-lhe para lá e conduzir uma conversa jovial construída à volta da ficção de que era um velho amigo da marinha chamado Lech. Nessa altura Oskar dizia: «Muito bem, encontro-me consigo amanhã em casa da minha irmã para uma bebida», o que queria dizer: «Venha buscar-me no seu carro à esquina da rua tal daqui a uma hora.»
Mas eu não falava polaco. E, além disso, as regras do ofício pós-Haydon ditavam que nenhum agente devia ser reativado por meio dos processos do passado.
Na sua carta, Oskar tinha fornecido os números de telefone de três cafés, e as horas a que tentaria estar disponível em cada um deles – três, porque havia sempre a probabilidade de um dos telefones estar avariado ou ocupado. Se nenhum dos telefonemas resultasse, recorreria a uma recolha de automóvel, e Oskar dissera-me em que paragem de elétrico devia estar e a que horas. Tinha fornecido o número de matrícula do seu novo Trabant azul.
E se tudo isto parece colocar-me num papel passivo, é porque a regra férrea para tais encontros é que o agente no campo é rei e senhor e é ele que decide qual a linha de rumo mais segura para si, e mais natural para o seu estilo de vida. O que Oskar estava a sugerir não era o que eu teria sugerido, nem tão-pouco percebi por que razão tínhamos de falar pelo telefone antes de nos encontrarmos. Mas talvez Oskar percebesse. Talvez temesse uma armadilha. Talvez quisesse experimentar a tranquilização da minha voz antes de dar o passo.
Ou talvez houvesse algum esclarecimento fortuito do qual eu ainda tivesse de tomar conhecimento: traria um amigo com ele; queria ser evacuado imediatamente; tinha mudado de ideias. Porque há uma segunda regra do ofício tão rígida como a primeira, que diz que o extravagante deve ser constantemente encarado como norma. O bom funcionário responsável espera que todo o sistema de telefones falhe no momento em que inicia a chamada. Espera que a paragem de elétrico seja no meio de trabalhos rodoviários, ou que Oskar tenha colidido nessa manhã com o carro contra um candeeiro ou ficado com quarenta graus de febre ou que a mulher o tenha persuadido a exigir um milhão de dólares em ouro antes de reatar contacto connosco ou que o bebé tenha resolvido ser prematuro. A arte toda – como eu dizia aos meus alunos até eles me detestarem por isso – está em confiar na lei do lixanço e fora isso em mais nada.
Foi com esta máxima em mente que, depois de ter passado uma infrutífera hora a telefonar para os três cafés, me postei na paragem de elétrico combinada às nove e dez dessa noite, e esperei que o Trabant de Oskar aparecesse, vacilante, pela rua na minha direção. Porque, embora por essa altura a neve já tivesse parado de cair, a rua ainda não passava de um par de sulcos negros de um e outro lado das linhas do elétrico, e os poucos carros que passavam tinham a cautela de sobreviventes regressando da frente.
Há a velha Danzig, o imponente porto hanseático, e há Gdansk, o pardieiro industrial polaco. A paragem do elétrico ficava em Gdansk. À minha esquerda e à minha direita, enquanto esperava, acotovelavam-se austeras e mal iluminadas casas de apartamentos sob o céu alaranjado de fogo lento. Olhando para um e outro extremo da rua, não vi o menor sinal de amor ou prazer humano. Nem um café, nem um cinema, nem uma luz bonita. Até os dois bêbedos acachapados no vão de uma porta do outro lado da rua pareciam receosos de falar. Uma gargalhada, um grito de sociabilidade ou prazer teria sido um crime contra a monotonia daquela prisão ao ar livre. Um carro passou furtivamente, mas não era azul nem era um Trabant. Tinha os vidros laterais empastados de neve, e, mesmo depois de ter passado, eu não saberia dizer quantas pessoas iam lá dentro. Parou. Não na berma da rua, nem no passeio, numa curva ou estacionamento lateral, pois todos eles estavam bloqueados por montículos de neve. Parou simplesmente nos negros sulcos gémeos do caminho e desligou o motor e a seguir as luzes.
Pombinhos, pensei. Se assim era, tratava-se de pombinhos cegos ao perigo, porque a rua tinha dois sentidos. Apareceu um segundo carro, deslocando-se na mesma direção do anterior. Estacionou também, mas não chegando à minha paragem de elétrico. Mais pombinhos? Ou pura e simplesmente um condutor sensato a guardar espaço suficiente entre ele e o carro estacionado à sua frente, para a eventualidade de derrapar? O efeito era o mesmo; havia um carro a cada lado de mim e, ali parado à espera, vi que os dois bêbedos silenciosos estavam afastados do seu portal e pareciam bem sóbrios. Depois ouvi passos solitários atrás de mim, suaves como um chinelo de quarto na neve, mas perto. E percebi que não devia fazer qualquer movimento repentino, e muito menos qualquer movimento inteligente. Não havia salto libertador, não havia golpe de antecipação que me salvasse, porque aquilo que eu começava a temer na minha imaginação ou não era nada ou era tudo. E, se era tudo, não havia nada que eu pudesse fazer.
Havia um homem de pé à minha esquerda, suficientemente próximo para me tocar. Vestia um casaco de peles e um chapéu de couro e trazia um guarda-chuva recolhido que podia ser um tubo de chumbo enfiado numa bainha de nylon. Pronto, estava à espera do elétrico, como eu. Um segundo homem estava de pé à minha direita. Cheirava a cavalo. E pronto, como o seu companheiro e eu, estava também à espera do elétrico, mesmo que tivesse vindo a cavalo. Nessa altura uma voz de homem falou comigo num fúnebre inglês polaco, e não vinha da minha direita nem da minha esquerda, mas mesmo de trás de mim, onde eu ouvira os passos de chinelos.
– Receio bem que o Oskar não venha esta noite, senhor. Há seis meses que morreu.
Mas por essa altura já me tinha dado tempo para pensar. Um século inteiro, de facto. Eu não conhecia nenhum Oskar. Oskar quê? Vir onde? Eu era um holandês que só apenas falava um inglês limitado, com um forte sotaque holandês como os meus tios e tias de Nijmegen. Fiz uma pausa enquanto deixava as suas palavras surtirem o seu efeito em mim; depois voltei-me, mas devagar e sem curiosidade.
– Está a confundir-me, senhor, acho eu – protestei, na lenta voz cantante que tinha aprendido nos joelhos da minha mãe. – O meu nome é Frans Joost, da Holanda, e parece-me bem que não estou à espera de ninguém a não ser do elétrico.
E foi então que os homens de cada um dos lados me agarraram como bons profissionais, imobilizando-me os braços e fazendo-me perder o equilíbrio no mesmo instante, após o que me arrastaram e me foram levando aos tombos durante todo o caminho até ao segundo carro. Mas não antes que eu tivesse tempo de reconhecer o homem atarracado que se me dirigira, as suas húmidas mandíbulas cinzentas e os olhos embotados de funcionário noturno. Era o nosso coronel Jerzy em pessoa, o muito propagandeado herói da Proteção da República Popular da Polónia, cuja inexpressiva fotografia tinha abrilhantado as primeiras páginas de vários ilustres jornais polacos nos tempos em que andava galhardamente a prender e torturar os nossos agentes.
Há mortes para as quais nos preparamos inconscientemente, consoante o nosso tipo de ofício. Um agente funerário encara o seu funeral, o rico a sua destituição, o carcereiro a sua prisão e o debochado a sua impotência. O maior medo de um ator, ao que me dizem, é ver o teatro esvaziar-se ao lutar no vazio por que as frases lhe saiam, e que vem a ser isso se não uma visão prematura da sua morte? Para o funcionário público, é o momento em que os muros protetores dos privilégios se abatem à sua volta e não se sente mais seguro que qualquer outra pessoa, exposto ao olhar do mundo aberto, respondendo como um marido mentiroso pelos seus relaxamentos e evasões. E, para ser sincero, a maioria dos meus colegas insere-se nesta categoria: o seu maior medo era acordar uma manhã para lerem o seu próprio nome en clair7 nos jornais; ouvirem falar de si na rádio e na televisão, serem objeto de troça e de riso e, pior ainda, serem questionados pelo público que acreditavam servir. Teriam encarado semelhante escrutínio público como uma calamidade maior do que serem vencidos em esperteza pela oposição, ou expostos a cada serviço congénere do mundo inteiro. Seria a sua morte.
Quanto a mim, a pior morte, e por conseguinte a maior prova, aquela para a qual me preparara desde que entrara a porta secreta, era aquela que agora se abatia sobre mim: ver a minha incerta coragem posta à prova sob tortura; ser mental e fisicamente reduzido ao meu último componente de resistência, sabendo que possuía dentro de mim o poder de deter a morte com uma palavra – que aquilo que se passava dentro de mim era um combate mortal entre o espírito e o corpo e que aqueles que estavam a aplicar-me a dor eram pura e simplesmente os mercenários contratados nessa secreta guerra no interior de mim mesmo.
De forma que, a partir da primeira ofuscante explosão de dor, a minha reação foi o reconhecimento: Olá, pensei, chegaste finalmente: o meu nome é Joost, qual é o teu?
Não houve qualquer cerimónia, entenda-se. Ele não me sentou a uma mesa segundo a provada tradição cinematográfica dizendo: «Ou falas comigo ou levas pancada. Aqui está a tua confissão. Assina-a.» Não os mandou encerrar-me numa cela deixando-me cozer por uns dias enquanto eu resolvia que a confissão era a melhor porção da coragem. Limitaram-se a arrastar-me para fora do carro e através dos portões daquilo que podia ser uma casa particular e a seguir para um pátio onde as únicas pegadas eram as nossas, de forma que tiveram de me levar de rojo pela neve espessa, fazer-me girar nos calcanhares, os três, agredindo-me entre si, ora na cara, ora nas virilhas e no estômago, ora de novo na cara, desta feita com um cotovelo ou um joelho. Depois, enquanto eu ainda estava dobrado, impeliram-me ao pontapé como um porco meio atordoado pela calçada escorregadia como se não conseguissem esperar até estarem dentro de casa para se ocupar de mim.
Seguidamente, uma vez dentro de casa, tornaram-se mais sistemáticos, como se a elegância do velho compartimento nu instilasse neles uma sensação de ordem. Encarregaram-se de mim à vez, como homens civilizados, agarrando-me dois deles enquanto o outro me batia, numa rotação democrática como manda a lei, com a diferença de que, ao chegar a quinta ou sexta vez do coronel Jerzy, este me bateu tão pesarosamente e com tanta força que eu cheguei a desfalecer por um bocado e, ao voltar a mim, encontrávamo-nos os dois sozinhos. Ele estava sentado a uma mesa articulada, com os cotovelos sobre ela, apoiando a cabeça desconsolada entre as mãos arranhadas como se estivesse com a ressaca e a recapitular desapontadamente as respostas que eu tinha dado às perguntas que me formulara entre as arremetidas, primeiro levantando a cabeça a fim de examinar desaprovadoramente a minha aparência alterada e abanando-a dolorosamente e suspirando a seguir como quem diz que a vida não era lá muito justa para com ele, que não sabia o que mais podia fazer para me ajudar a ver a luz. Comecei a aperceber-me de que tinha passado mais tempo do que eu julgava, talvez várias horas.
Foi também esse o momento em que a cena começou a adquirir semelhanças com aquela que eu sempre imaginara, com o meu torturador comodamente sentado a uma mesa, refletindo a meu respeito com uma preocupação profissional, e eu amarrado de pernas e braços abertos a um cano de água a escaldar, com os braços algemados de um e outro lado de um irradiador preto tipo concertina, cujos cantos me mordiam a base da espinha como dentes ao rubro. Tinha sangrado da boca e do nariz e, pensei, de um ouvido também, e o peitilho da minha camisa parecia o avental de um carniceiro. Mas o sangue tinha secado e já não estava a sangrar, o que constituía outra maneira de calcular a passagem do tempo. Quanto tempo leva o sangue a coagular numa grande casa vazia em Gdansk quando a pessoa está amarrada a uma fornalha e a olhar para a cara de cachorro do coronel Jerzy?
Era tremendamente difícil odiá-lo e, com o ardor nas costas, mais difícil se tornava a cada instante. Ele era o meu único salvador. Agora o seu rosto permanecia continuamente em mim. Mesmo quando ele inclinava a cabeça para baixo sobre a mesa numa oração privada, ou se levantava e acendia um infecto cigarro polaco e desentorpecia as pernas à roda do quarto, o seu olhar lúgubre parecia manter-se sobre mim independentemente do lugar para onde o resto dele fora. Virou-me as costas atarracadas. Deu-me uma perspetiva da sua maciça cabeça calva e do cachaço picado das bexigas. Porém os seus olhos – a negociarem comigo, a argumentarem comigo e por vezes, ao que parecia, a implorarem-me que lhe aliviasse a angústia – não me deixavam nem por um segundo. E havia uma porção de mim que na realidade o queria ajudar e, com o ardor, se tornava cada vez mais estridente. Porque o ardor já não era ardor, era pura dor, uma dor indivisível e absoluta, a aumentar como uma escala que não tivesse limite máximo. De tal forma que eu teria dado quase o que quer que fosse para o fazer sentir-se melhor – exceto a minha pessoa. Exceto aquela porção de mim que me dissociava dele, e era por conseguinte a minha sobrevivência.
– Como é que se chama? – perguntou-me ele, sempre no seu inglês polaco.
– Joost. – Teve de se curvar para me ouvir. – Frans Joost.
– De Munique – alvitrou ele, utilizando o meu ombro como apoio ao mesmo tempo que punha a orelha mais perto da minha boca.
– Nascido em Nijmegen. Trabalho para agricultores do Taunus, perto de Frankfurt.
– Esqueceu-se do seu sotaque holandês. – Abanou-me um pouco para me acordar.
– O senhor é que não o ouviu. É polaco. Quero falar com o cônsul holandês.
– Você quer dizer é o cônsul britânico.
– Holandês. – E nessa altura acho que repeti várias vezes a palavra «holandês», continuando a repeti-la até ele me atirar com água fria, após o que me despejou um pouco na boca para me deixar bochechar e cuspir. Apercebi-me de que me faltava um dente. No maxilar inferior, da parte frontal esquerda. Talvez dois dentes. Era difícil dizer.
– Acredita em Deus? – perguntou-me ele.
Quando baixava o olhar fixamente sobre mim daquela maneira, as bochechas caíam-lhe para a frente como as de um bebé e os seus lábios comprimiam-se como que num beijo, de tal sorte que parecia um querubim intrigado.
– Neste momento não – disse eu.
– Porquê?
– Tragam-me o cônsul holandês. Enganou-se na pessoa.
Vi que ele não queria que lhe dissessem isto. Não estava habituado a que lhe dessem ordens ou o contradissessem. Passou as costas da mão direita pelos lábios, coisa que fazia por vezes antes de me bater, e fiquei à espera do golpe. Começou a dar palmadinhas nos bolsos, supus que à procura de um instrumento qualquer.
– Não – observou, com um suspiro. – Está equivocado. Acertei na pessoa.
Ajoelhou sobre mim e pensei que estava a preparar-se para me matar, porque reparara que era quando parecia mais desconsolado que se tornava mais sanguinário. Mas estava a abrir-me as algemas. Uma vez feito isso, enfiou-me os punhos cerrados por baixo dos braços e içou-me – quase pareceu que me ajudava – até uma espaçosa casa de banho com uma velha banheira de pés cheia de água quente.
– Dispa-se – disse ele, e olhou-me desanimadamente enquanto eu arrancava o que restava da roupa, demasiado exausto para me importar o que ele faria depois de eu estar dentro de água: afogar-me, cozer-me, congelar-me ou enfiar um fio elétrico lá dentro.
Tinha a minha mala do hotel. Enquanto eu estava deitado no banho, tirou de lá roupa lavada e atirou-a para cima de uma cadeira.
– Parte no avião de amanhã para Frankfurt, via Varsóvia. Houve um engano – disse ele. – Pedimos desculpa. Vamos cancelar os seus compromissos comerciais e dizer que foi vítima de um atropelamento e fuga.
– Vou precisar de mais que um pedido de desculpas – disse eu.
O banho não estava a fazer-me bem. Receava que, a manter-me mais tempo deitado, voltasse a desfalecer. Icei-me até ficar agachado. Jerzy estendeu o antebraço. Eu agarrei-me a ele e pus-me de pé, oscilando perigosamente. Jerzy ajudou-me a sair da banheira e depois estendeu-me uma toalha e ficou a olhar-me melancolicamente enquanto eu me limpava e enfiava a roupa lavada que ele tinha preparado para mim.
Conduziu-me à saída e ao pátio, levando a minha mala numa mão e amparando o meu peso com a outra, porque o banho, além de me aliviar as dores, me tinha debilitado. Perscrutei em redor à procura dos homens de confiança mas não vi nenhum.
– O ar fresco vai fazer-lhe bem – disse ele, com a confiança de um perito.
Conduziu-me a um carro estacionado, que não se parecia com nenhum dos carros que tinham tomado parte na minha prisão. No banco de trás estava um volante de brincar. Seguimos por ruas desertas. Por vezes eu dormitava. Alcançámos um par de portões de aço guardado por homens da milícia.
– Não olhe para eles – ordenou-me, mostrando-lhes os documentos enquanto eu voltava a dormitar.
Saímos do carro e postámo-nos no cimo de um penhasco. O vento do mar gelava-nos o rosto. O meu parecia do tamanho de duas bolas de futebol. A minha boca tinha-se deslocado para a face esquerda. Um olho tinha-se fechado. Não havia luar e o mar era um rugido por detrás da névoa salgada. A única luz vinha da cidade à nossa retaguarda. De quando em quando deslizavam por nós faíscas fosforosas ou borrifos de espuma branca que se perdiam, girando, na escuridão. É aqui que está previsto eu morrer, pensei, de pé ao lado dele; primeiro bate-me, depois dá-me um banho quente e agora prega-me um tiro e deita-me pelo penhasco abaixo. Mas as mãos dele pendiam taciturnamente ao longo do corpo e não havia nelas nenhuma pistola, e os seus olhos – o que eu conseguia distinguir deles – estavam fitos na escuridão sem estrelas, e não em mim; de forma que talvez fosse outra pessoa qualquer que me ia alvejar, alguém que esperasse já na escuridão. Se tivesse energias para isso, poderia ter matado Jerzy primeiro. Mas não tinha e não sentia necessidade de o fazer. Pensei em Mabel, mas sem qualquer sensação de perda ou ganho. Perguntei a mim mesmo como conseguiria ela viver da pensão, quem é que arranjaria. A Fräulein Stefanie não está em casa, recordei... Então talvez tivesse sido a Stefanie a atender, dizia Smiley... Tantas orações por escutar, pensava eu. Mas tantas nunca rezadas, tão-pouco. Sentia-me muito tonto.
Jerzy falou por fim, com uma voz não menos desalentada que antes.
– Trouxe-o aqui porque não há um microfone na terra que nos possa ouvir. Quero espiar para o seu país. Preciso de um bom profissional para servir de intermediário. Resolvi escolhê-lo a si.
Voltei a perder a minha sensação de tempo e espaço. Mas talvez ele também tivesse perdido a sua, pois voltara costas ao mar e, com a mão agarrada ao chapéu de couro a fim de segurá-lo contra o vento, tinha empreendido uma fúnebre inspeção das luzes de terra, franzindo o sobrolho a coisas que não o justificavam e por vezes limpando das faces com os grandes punhos as lágrimas causadas pelo vento.
– Porque há de alguém espiar para a Holanda? – perguntei-lhe?
– Muito bem, eu proponho-me espiar para a Holanda – respondeu ele fatigadamente, como quem faz a vontade a um pedante. – Por conseguinte preciso de um bom profissional holandês que possa manter a boca fechada. Conhecendo os tontos que vocês, os holandeses, utilizaram contra nós no passado, sou compreensivelmente seletivo. No entanto, você passou no teste. Parabéns. Escolho-o a si.
Achei melhor não dizer nada. Provavelmente não acreditava nele.
– No compartimento falso da sua mala encontrará um maço de documentos secretos polacos – continuou ele, com um tom de desânimo. – No aeroporto de Gdansk não terá problemas com a Alfândega, naturalmente. Dei ordens para não lhe examinarem a bagagem. Tanto quanto eles sabem, nesta altura você é meu agente. Em Frankfurt, estará em casa. Trabalharei para si e para mais ninguém. O nosso próximo encontro será em Berlim no dia 5 de Maio. Assistirei às comemorações do 1.° de Maio para assinalar a gloriosa vitória do proletariado.
Estava a tentar acender um novo cigarro, mas o vento não parava de lhe apagar os fósforos. De forma que tirou o chapéu e acendeu o cigarro dentro da copa, baixando a cara sobre ele como se estivesse a beber água de um regato.
– A sua gente há de querer saber a minha motivação – continuou ele, depois de inalar um longa fumaça do cigarro. – Diga-lhes que... – Subitamente atrapalhado, enterrou a cabeça nos ombros e perscrutou em redor como se implorasse conselho sobre a maneira como lidar com idiotas. – Diga-lhes que estou farto. Diga-lhes que estou cheio do trabalho. Diga-lhes que o Partido é uma súcia de trapaceiros. De qualquer maneira eles já sabem isso, mas diga-lhes. Sou católico. Sou judeu. Sou tártaro. Diga-lhes o que muito bem lhes apeteça ouvir.
– Podem querer saber por que razão optou por se dirigir aos Holandeses – disse eu. – Em lugar dos Americanos ou dos Franceses, ou de quem quer que fosse.
Ele pensou também naquilo, aspirando o cigarro na escuridão.
– Vocês, os holandeses, tinham alguns agentes bons – disse ele meditativamente. – Cheguei a conhecer bastante bem alguns. Fizeram um bom trabalho até aparecer aquele filho da mãe do Haydon. – Ocorreu-lhe uma ideia. – Diga-lhes que o meu pai foi piloto na Batalha de Inglaterra – alvitrou. – Foi abatido sobre Kent. Isso deve agradar-lhes. Conhece Kent?
– Porque havia um holandês de conhecer Kent?
Se eu tivesse fraquejado, poderia ter-lhe dito que, antes da nossa separação dita «amigável», Mabel e eu tínhamos comprado uma casa em Tunbridge Wells. Mas não disse, e ainda bem, porque, quando a Sede foi verificar a história, não havia registos de o pai de Jerzy ter pilotado nada maior do que um papagaio de papel. E quando o disse a Jerzy vários anos mais tarde – muito depois de a sua lealdade aos pérfidos britânicos estar demonstrada sem margem para dúvidas –, ele limitou-se a rir e disse que o pai era um velho tonto que não ligava a coisa nenhuma a não ser à vodca e às batatas.
Então porquê?
Durante cinco anos Jerzy foi a minha universidade secreta de espionagem, mas o seu desprezo pelas motivações – particularmente as suas – nunca abrandou. Somos uns idiotas, que começamos por fazer aquilo que queremos fazer, dizia ele, e depois andamos à procura de justificações para tê-lo feito. Todos os homens eram para ele idiotas, e nós, os espiões, os maiores idiotas de todos.
Inicialmente desconfiei que ele espiava por vingança, e sondei-o em relação aos seus superiores hierárquicos que pudessem tê-lo desconsiderado. Detestava-os todos, e mais ainda a sua própria pessoa.
Depois concluí que espiava por razões ideológicas, e que o seu cinismo era um disfarce para os anseios mais refinados que tivesse descoberto na meia-idade. Porém, quando tentei utilizar os meus ardis para lhe quebrar o cinismo – «A sua família, Jerzy, a sua mãe, Jerzy. Reconheça que sente orgulho em ter sido avô» –, só encontrei mais cinismo por baixo. Não sentia nada por nenhum deles, retorquia, mas de um modo suficientemente glacial para eu concluir que, conforme sustentava, odiava mesmo toda a raça humana e que a sua ferocidade, e talvez a sua traição também, eram a simples expressão desse ódio.
Quanto ao Ocidente, era governado pelos mesmos idiotas que governavam tudo no mundo e, portanto, qual era a diferença? Quando eu lhe disse que não era pura e simplesmente assim, tornou-se tão defensivo do seu credo niilista como qualquer outro fanático e eu tive de refrear-me por medo de o encolerizar a sério.
Então porquê arriscar o pescoço, a vida, a subsistência e a família que detestava, para fazer qualquer coisa por um mundo que desprezava?
A Igreja? Também lhe perguntei isso e, significativamente, penso eu hoje, ele empertigou-se. Cristo era um maníaco-depressivo, retorquiu. Cristo precisava de suicidar-se em público, de forma que provocara as autoridades até elas lhe fazerem esse favor.
– Esses tipos que batem no peito são todos iguais – disse ele com desdém. – Eu já os torturei, portanto sei.
Como a maioria dos cínicos, era puritano, e este paradoxo repetia-se nele de várias formas. Quando nos propusemos dar-lhe dinheiro, abrir-lhe uma conta num banco suíço, o costume, teve uma fúria e declarou que não era nenhum «informador barato». Quando escolhi um momento – de acordo com as instruções da Sede – para lhe garantir que, se alguma vez as coisas dessem para o torto, não pouparíamos esforços para o safar e fornecer-lhe uma nova identidade no Ocidente, o seu desdém foi absoluto:
– Eu sou um patife polaco, mas preferia enfrentar um pelotão de fuzilamento a morrer como traidor em qualquer pocilga capitalista.
Quanto às outras comodidades da vida, não podíamos oferecer-lhe nada que ele não tivesse. A mulher era uma rabugenta, dizia ele, e maçava-o ir para casa depois de um dia cansativo no gabinete. A amante era uma jovem tonta e, depois de uma hora com ela, preferia um jogo de bilhar à sua conversa.
Então porquê? – não parava eu de me interrogar uma vez exausta a minha lista de motivos regulamentares do Serviço.
Entretanto, Jerzy continuava a encher-nos os cofres. Estava a virar o seu Serviço do avesso tão primorosamente como Haydon tinha alguma vez feito ao nosso. Quando o Centro de Moscovo lhe dava ordens, tínhamos conhecimento delas antes de ele as transmitir aos seus agentes subalternos. Fotografava tudo quanto lhe vinha à mão; corria riscos que eu lhe suplicava que não corresse. Era tão descuidado que por vezes me deixava a perguntar a mim mesmo se, como o Cristo que estava tão determinado a negar, não estaria a procurar uma morte pública. Era apenas a infatigável eficiência daquilo a que nos agradava chamar o seu trabalho de cobertura que o protegia de suspeitas. Porque era esse o lado escuro do seu número de equilibrista: Deus ajudasse o agente ocidental, real ou imaginário, que tivesse sido convidado a fazer a sua confissão voluntária às mãos de Jerzy.
Só uma vez nos cinco anos que eu o dirigi pareceu deixar escapar a pista que eu procurava. Estava mortalmente fatigado. Tinha estado a assistir a uma conferência dos chefes das Informações do Pacto de Varsóvia em Bucareste, rejeitando acusações de brutalidade e corrupção que impendiam sobre o Serviço do seu país natal. Encontrámo-nos em Berlim Oeste, numa pension no Kurfurstendamm que albergava os representantes mais categorizados. Era realmente um torturador fatigado. Estava sentado na minha cama, a fumar e a responder às minhas perguntas de acompanhamento sobre o seu último lote de material. Tinha os olhos vermelhos. Quando terminámos, pediu um uísque, e a seguir outro.
– A ausência do perigo é a ausência da vida – disse ele, atirando mais três rolos de fotografias para a colcha. – Na ausência do perigo a pessoa está morta. – Puxou de um sujo lenço castanho e limpou cuidadosamente o rosto maciço com ele. – Na ausência do perigo, o melhor que há a fazer é ficar em casa, a cuidar do bebé.
Preferi não acreditar que era de perigo que ele estava a falar. Do que ele estava a falar, concluí, era do sentimento, e do seu terror de que, deixando de sentir, estivesse a deixar de existir – o que era talvez a razão pela qual tanto se dedicava a instilar sentimento nos outros. Porque, naquele momento, pensei captar um vislumbre da razão pela qual estava ali sentado comigo no quarto a desobedecer a todas as regras do seu manual. Estava a manter vivo o espírito numa altura da vida em que aquele começava a parecer agonizante.
Nessa mesma noite jantei com Stefanie num restaurante arménio a dez minutos a pé da pension onde Jerzy e eu nos encontráramos. Tinha conseguido arrancar o seu número de telefone a uma irmã em Munique. Era tão alta e bonita como eu a recordava e estava apostada em convencer-me de que era feliz. Ah, a vida era perfeita, Ned, declarou. Estava a viver com um académico tremendamente distinto, que já não era bem uma criança – mas, repare, nós também não –, e absolutamente adorável e sensato. Disse-me o nome dele. Não significava nada para mim. Disse que estava grávida dele. Não se percebia.
– E você, Ned, como é que as coisas lhe correram a si? – perguntou, como se fôssemos dois generais a relatar um ao outro campanhas bem-sucedidas, mas diferentes.
Dirigi-lhe o meu sorriso mais confiante, aquele que me granjeou a confiança dos meus agentes e colegas nos anos que haviam transcorrido desde a última vez que tinha estado com ela.
– Oh, acho que correu tudo muito bem, realmente, obrigado – disse eu, usando de um suposto eufemismo britânico. – No fim de contas, não se pode esperar que uma pessoa seja tudo aquilo que desejamos, pois não? Eu diria que é uma associação bastante boa. Uma boa vida paralela.
– E ainda faz aquele trabalho? – perguntou ela. – O trabalho do Ben?
– Faço.
Era a primeira vez que qualquer de nós se lhe referia. Estava a viver na Irlanda, disse ela. Um primo dele tinha comprado uma propriedade em ruínas em County Cork. Ben tomava mais ou menos conta dela quando ele lá não estava, povoando o rio de peixes e olhando pela herdade, etcétera.
Perguntei-lhe se alguma vez estava com ele.
– Não – disse ela. – Ele não quer.
Tê-la-ia levado a casa, mas ela preferiu ir de táxi. Esperámos na rua até ele chegar, e pareceu ter demorado um espaço de tempo tremendo. Quando lhe fechei a porta do táxi, inclinou a cabeça para a frente como se lhe tivesse caído alguma coisa no chão. Fiquei a acenar até ela desaparecer de vista, mas ela não me retribuiu o aceno.
O noticiário das nove estava a mostrar-nos uma reunião ao ar livre do Solidariedade em Gdansk, onde um cardeal polaco exortava uma multidão enorme à moderação. Perdendo o interesse, Mabel poisou o Daily Telegraph no regaço e retomou as palavras-cruzadas. Primeiro a multidão ouviu ruidosamente o cardeal. Depois, com a devoção pela qual os polacos são famosos, calaram-se todos. Após o discurso, o cardeal passeou-se pelo meio do seu rebanho, distribuindo bênçãos e aceitando homenagens. E, à medida que lhe traziam um dignitário atrás de outro, distingui Jerzy pairando ao fundo, qual rapazinho feio excluído da festa. Tinha perdido peso desde que se reformara, e imaginei que as transformações sociais não tinham sido meigas para ele. O casaco caía-lhe como se fosse de outra pessoa; os seus punhos outrora imponentes mal se viam dentro das mangas.
De súbito o cardeal localizou-o, como eu o localizara.
O cardeal imobilizou-se como que em dúvida relativamente aos seus próprios sentimentos e por um momento mostra-se de certo modo ainda mais alinhado, quase em atitude de submissão, metendo os cotovelos para dentro e espetando os ombros para fora, em posição de sentido. Depois, lentamente, os seus braços erguem-se de novo e dá uma ordem a um dos ajudantes, um jovem padre que parece relutante em cumpri-la. O cardeal repete a ordem e o padre abre caminho até Jerzy; os dois homens, o polícia secreto e o cardeal, enfrentam-se. Jerzy estremece, como se tivesse dores digestivas. O cardeal inclina-se para diante e fala ao ouvido de Jerzy. Desastradamente, Jerzy ajoelha para receber a bênção do cardeal.
E todas as vezes que reedito esse momento vejo os olhos de Jerzy cerrarem-se aparentemente de dor. Mas de que se arrepende ele? Da sua brutalidade? Da sua lealdade a uma causa desaparecida? Da sua traição a ela? Ou será o cerrar dos olhos simplesmente a reação instintiva de um torturador ao receber o perdão de uma vítima?
Pesco. Deixo-me cair em devaneios. O meu amor pela paisagem inglesa, se é possível, aumentou. Penso em Stefanie e em Bella e nas minhas outras mulheres meio tidas. Faço pressões políticas sobre o meu deputado a propósito da poluição do rio. É conservador, mas que diabo pensa ele que está a conservar? Aderi a um dos mais sólidos grupos ambientalistas; reúno assinaturas em petições. As petições são ignoradas. Recuso-me a jogar golfe, havia de recusar-me sempre. Mas disponho-me a passear por lá com Mabel numa quarta-feira à tarde, desde que ela jogue sozinha. Encorajo-a. O cão diverte-se. A reforma não é altura para andar a vaguear perdido ou para dar voltas à cabeça sobre a maneira de reinventar a humanidade.
7 Em francês no original. (N. do T.)