VII. A agonia de Quique

— Está acontecendo alguma coisa com você, amor, e é coisa muito séria — disse Marisa. — Sinto muito, mas você tem que me contar.

— Não é nada, gringuinha — tentou tranquilizá-la, esboçando um sorriso. — Estou preocupado com o pesadelo que estamos vivendo neste país, como todo o mundo, só isso.

— Faz tempo que existe terrorismo no Peru — insistiu ela. — Posso ser boba, mas não tanto como você imagina, Quique. Você não come mais, não dorme, está se acabando. Ontem mesmo sua mãe me disse: “Enrique está muito magro, ele não foi ao médico?”. O que está acontecendo? Eu sou sua mulher, não sou? Posso ajudar. Seja lá o que for, você tem que me contar.

Estavam tomando café na varanda da cobertura, em San Isidro, ela de roupão e chinelos e Enrique já de banho tomado, barbeado e vestido, pronto para ir ao escritório. Havia muita neblina e não se divisava o mar ao longe, nem sequer os jardins do Clube de Golfe aos pés do edifício. O suco de laranja, o ovo quente, as torradas com manteiga e geleia que Quintanilla, o mordomo, tinha servido para Quique estavam intactos; só havia tomado a xícara de café. Viu o rosto de Marisa deformado de preocupação; viu que seus olhos azuis brilhavam e sentiu pena de sua mulher. Aproximou-se e beijou-a no rosto. Marisa pôs os braços em volta do seu pescoço.

— Fale comigo, Quique — pediu. — Seja o que for, pode me contar, coração. Deixe eu compartilhar o problema, ajudar. Eu amo você.

— Eu também, Marisa, meu amor. — E a abraçou. — Não queria que ficasse preocupada. Mas, tudo bem, já que insiste tanto, vou contar.

Marisa se afastou um pouco e Enrique viu que sua mulher estava pálida; seus lábios tremiam. Ajeitou maquinalmente o cabelo louro, enquanto o observava de olhos muito abertos, esperando. Em sua confusão, ele chegou a pensar: “Está bonita como sempre, mais do que sempre. Deve ser a primeira vez que passamos dez dias sem fazer amor desde que nos casamos”.

— Ainda não aconteceu nada, mas pode acontecer — enquanto ia falando, muito devagar, tentava laboriosamente inventar alguma coisa. — É que recebi umas ameaças, gringuinha. Anônimas, claro.

— Dos terroristas? — balbuciou ela. — Do Sendero Luminoso? Do MRTA?

— Ainda não sei de quem. Talvez dos terroristas, pode ser. Ou de bandidos comuns. Querem dinheiro, obviamente. Mas não se assuste. Consultei o Luciano, estamos nos mexendo para ver do que se trata. Pelo amor de Deus, não diga uma palavra a ninguém, querida. As coisas podem ficar muito piores se a história se espalhar.

— Quanto dinheiro pediram? — perguntou ela.

— Não me disseram o valor, ainda não. — disse ele. — Por enquanto, só ameaças. Juro que a partir de agora você vai ficar sempre a par de tudo. Além do mais, pode até ser uma brincadeira de mau gosto, algum canalha querendo perturbar a nossa vida.

— Você já foi à polícia? — Marisa estava segurando sua mão e a apertou. — Fez a queixa? Eles têm que nos dar proteção, principalmente a você. Não é possível que se exponha desse jeito, Quique. Meu Deus, eu sabia que mais cedo ou mais tarde íamos passar pelo mesmo que Cachito.

— Agora é você que está assustada — disse ele, fazendo-lhe um carinho no rosto. — Viu por que não queria lhe dizer nada por enquanto, gringuinha?

Olhou o relógio: oito e quinze da manhã. Levantou-se.

— Tenho uma reunião com Luciano, para falar justamente disso — explicou, beijando-a no cabelo. — Por favor, não se preocupe, Marisa. Não vai acontecer nada, juro. Eu mantenho você informada de tudo, prometo.

Desceu para a garagem, o chofer estava esperando, entrou no carro e quando chegaram à rua se deparou com um desses dias cinzentos, cor de burro-quando-foge, do inverno limenho; a umidade embaçava os vidros do Mercedes-Benz, molhava a roupa, e Enrique tinha a impressão de que entrava por todos os poros do seu corpo. Em Zanjón, o tráfego já estava intenso. Será que tinha feito bem contando aquelas mentiras a Marisa? Bom, talvez não fosse tudo mentira. Talvez esse jornalista palerma estivesse mesmo de conchavo com o Sendero Luminoso ou com o MRTA. Tudo era possível. Agustín, o motorista, dirigia com a prudência de sempre, enquanto ele, com a mente perdida, continuava hipnoticamente concentrado no seu problema. Estava assim desde a visita de Rolando Garro ao seu escritório. O pior era a incerteza. Continuar na espera. O que estava esperando? Queria que aquele filho da puta se manifestasse de uma vez: quanto pediam? Ele ou os seus cúmplices. Porque aquilo não podia ser coisa só desse pobre-diabo. Quem estaria por trás dele, cacete? Aquele iugoslavo? Seria possível? Foi ele quem armou a cilada de Chosica. Mas por que só abria o jogo dois anos depois? Sem saber o que queriam, sem saber o que esperar, estava com os nervos à flor da pele desde aquela maldita visita. Dez dias, já. Dez dias sem tocar em Marisa. Nunca tinha acontecido, desde que se casaram. “Como eu pude ser tão imbecil, tendo uma mulher tão bonita, tão sensível?”, pensou, pela centésima vez. “Marisa nunca me perdoaria.” Toda vez que pensava naquela bacanal sentia as mesmas ânsias de vômito de então, no meio daquelas putas gordas e mais pintadas que papagaios. “Só sendo muito estúpido, Quique, um estúpido ao quadrado, para fazer o que você fez.”

Agustín dirigia com segurança, e agora Quique dava espiadas nervosas em torno com medo de que acontecesse alguma coisa, pensando que, de fato, por que não, podiam sequestrá-lo como fizeram com Cachito. Esse sequestro havia assustado toda a sociedade limenha. Seria verdade que pediam um resgate de seis milhões de dólares? Pelo visto, o homem da seguradora que veio de Nova York para negociar com os sequestradores era duríssimo e não cedia às exigências. O resultado podia ser que Cachito terminasse como cadáver. Podia ter acontecido com qualquer empresário, inclusive com ele. Desde que o terrorismo começou essa ideia lhe passava pela cabeça de vez em quando e, desde a visita de Garro com aquelas fotos, muito mais.

Luciano estava à sua espera e no gabinete dele já havia duas xícaras de café recém-servidas.

— Calma, Quique — cumprimentou o amigo. — Você parece arrasado, rapaz. A pior atitude é entregar os pontos assim, antes da batalha.

— Estou com os nervos em frangalhos, Luciano — concordou ele, desabando numa poltrona. — Não é por mim, nem por Marisa, nem pelo que venha a me custar. É que se essas fotos forem publicadas, minha mãe morre. Você sabe como minha velhinha é conservadora e católica. Garanto que se ela vir essas fotos tem uma parada cardíaca, ou enlouquece, sei lá. Bem, mas vamos ao assunto. O que disseram seus dois criminalistas?

— Antes de mais nada, calma, Quique. Vamos fazer o possível e o impossível para impedir que as fotos sejam publicadas — disse o advogado. — Os dois concordam que é preferível esperar o tiro. O que eles querem? Quanto pedem? Você vai ter que negociar, em último caso. O mais importante é a garantia de recuperar os negativos. E, enquanto isso, naturalmente, negar categoricamente que seja você o homem das fotos.

— Eles conhecem esse Garro? O que sabem dele?

— Conhecem muito bem — assentiu Luciano. — Um jornalista marrom, especializado no mundo do espetáculo. Um puxa-saco, parece, a princípio de baixo escalão, pelo que se viu, mas que fez carreira. Ganha uns troquinhos fazendo chantagem ou oferecendo propaganda a artistas, roteiristas, locutores, apresentadoras de programas. Vive de escândalos. Respondeu a vários processos por difamação e calúnia, mas as associações de jornalistas o protegem e, em nome da liberdade de imprensa, quase sempre os juízes mandam arquivar os processos ou o absolvem. Correm muitas lendas sobre ele, inclusive de que seria um dos jornalistas a soldo do Doutor para enxovalhar os críticos do governo, destruindo sua reputação, inventando escândalos. Os dois criminalistas lá do escritório não acreditam que Garro seja o cabeça dessa operação. É só um cúmplice menor, um mensageiro, um instrumento dos verdadeiros chefes. Acharam estranho ele ter ido pessoalmente chantagear um empresário conhecido como você. Já pedimos uma audiência ao Doutor. Vamos levar os presidentes da Confederação de Empresários e da Sociedade de Mineração para impressioná-lo. Para que ele saiba que não é só você, todo o setor empresarial se sente ameaçado com essa chantagem. Concorda, Quique?

— Concordo, claro — assentiu ele. — Detesto a ideia de que tanta gente tome conhecimento, mas, de fato, é melhor ir direto lá em cima. O Doutor pode acabar com isso, assustando Garro e obrigando-o a delatar seus cúmplices.

— Segundo os criminalistas, trata-se de uma operação de alto nível. Talvez uma máfia internacional.

Sorriu afetuosamente, mas Enrique não lhe devolveu o sorriso. Aquela bobagem era a única coisa que os criminalistas do seu escritório podiam dizer? Que havia alguém por trás de Garro, isso ele já sabia desde o primeiro momento.

— Qual é a pior coisa que pode me acontecer, Luciano?

Luciano ficou muito sério antes de responder.

— O pior dos mundos, meu irmão, seria descobrir que quem está por trás dessa operação é a pessoa que você está imaginando.

— Não estou imaginando ninguém, Luciano. Fale claramente, por favor.

— O sinistro Doutor, ele mesmo — disse Luciano, abaixando a voz. — Ele é bem capaz de tramar uma coisa assim, tão escusa. Principalmente se achar que há muito dinheiro em jogo.

— O próprio assessor de Fujimori? — surpreendeu-se Quique.

— O homem forte deste governo, aquele que manda e desmanda, o verdadeiro chefão do Peru — lembrou Luciano. — Os nossos advogados têm absoluta certeza de que o sujeito faz coisas desse tipo. É ganancioso, tem uma sede desmesurada de dinheiro. Há indícios de que muitas chantagens a empresários menores parecem ser obra dele. Mas acham estranho que também faça uma coisa dessas contra alguém importante como você. Por isso é bom que os dirigentes da Confiep e da Sociedade de Mineração venham conosco. A presença deles pode assustá-lo um pouco, se estiver envolvido. Por outro lado, como já lhe disse, correm boatos de que um dos escribas que o Doutor utiliza para destruir a reputação dos seus inimigos políticos é o tal Garro. Você sabe que ele financia boa parte dessas publicações imundas, cheias de palavrão e mulher nua, que ficam jogando merda nos críticos do governo. Está me ouvindo, Quique?

Porque Enrique começou a pensar que, se era o chefe do Serviço de Inteligência do regime quem estava por trás dessas fotos, não havia escapatória. Estava perdido. Como podia enfrentar um homem tão poderoso, o maquiavélico assessor do presidente? Lembrou a única vez que o tinha visto, num jantar de empresários em que o famoso Doutor apareceu de repente, sem ser convidado. Muito gentil, um pouco pegajoso e servil com todos eles, usando um terno azul muito justo e com uma barriguinha que pugnava para ser notada, veio dizer-lhes que a empresa privada estaria segura no país enquanto o engenheiro Fujimori continuasse no governo. E que o regime precisava de pelo menos uns vinte anos para completar o programa de reformas que estava tirando o Peru do subdesenvolvimento e levando o país à condição de país do Primeiro Mundo. Sobre o terrorismo, discorreu justificando a política de “mão pesada” com um exemplo que deixou alguns dos presentes de cabelo em pé: “Não importa que morram vinte mil pessoas, das quais quinze mil sejam inocentes, se matarmos cinco mil terroristas”. Quando ele foi embora, os empresários fizeram piadas sobre a pose daquele personagenzinho, um bajulador cafoninha e meio mafioso que usava sapatos amarelos com um terno azul.

— Se for ele o cabeça de tudo isso, eu estou simplesmente fodido, Luciano — murmurou.

— Ninguém disse que é ele, fique calmo — tranquilizou-o o amigo. — É uma simples conjetura, entre muitas outras. Não se assuste antes da hora. E não creia que o Doutor tem tanto poder como ele imagina.

— O que devo fazer, então?

— Essa espera de dois anos depois que tiraram as fotos significa alguma coisa — disse Luciano. — Tente lembrar todos os detalhes possíveis da sua relação com o iugoslavo que organizou as coisas em Chosica. Encontre todas as cartas e bilhetes dele que houver no seu arquivo. De um jeito ou de outro, esse homem é a origem de tudo. Faça isso por enquanto. E vamos esperar. Os criminalistas recomendam não tomarmos nenhuma iniciativa neste momento, até eles tirarem as máscaras. Acima de tudo, não dar queixa à polícia. Vamos ver o que sai da conversa com o Doutor. E, por favor, não fique dando tantos sinais de nervosismo. Garro trouxe essas fotos para assustar. Para amolecer você. Muito em breve vai abrir o jogo. Quando isso acontecer e soubermos qual é a chantagem, vamos poder entender melhor a situação. Em função disso decidimos um plano de ação.

Conversaram mais um pouco e Luciano lhe sugeriu que fizesse uma viagenzinha com Marisa, por uns dias. Quique descartou qualquer possibilidade. Tinha milhares de coisas para resolver, um trabalho fora do normal com a situação difícil por que passava o país. Em vez de acalmá-lo, sair de Lima o deixaria ainda mais agitado. Combinaram que esta semana sem falta os dois casais almoçariam juntos — domingo, por exemplo, no La Granja Azul? —, e Luciano o acompanhou até a porta.

Quando Quique chegou ao escritório, já estavam à sua espera o chefe de segurança da mina de Huancavelica e uma pilha de mensagens, cartas e e-mails. O sr. Urriola — rugas que pareciam sulcos, um grande bigode, manzorras de lutador e um sorriso estereotipado que não saía do rosto — não lhe deu boas notícias. Tinham ocorrido novos roubos de explosivos no último mês, graças à cumplicidade dos ladrões com funcionários e mineiros e, talvez, com a ajuda dos próprios guardas mandados pela polícia. Sem tiroteios nem vítimas, felizmente. Os vigias não viram nada, claro.

— Posso parecer um disco arranhado — concluiu seu relatório o sr. Urriola —, mas o senhor tem que conseguir que a Guarda Civil retire seus homens das minas. Garanto que meu pessoal acaba com esses roubos de uma vez por todas. Os guardas civis ganham uma miséria e agora, com o terrorismo, têm o álibi perfeito para nos saquear e jogar a culpa no Sendero e no MRTA.

Depois de Urriola, recebeu mais três pessoas e um longo telefonema de Nova York. Quique tinha dificuldade para se concentrar, ouvir, responder. Não conseguia tirar da cabeça aquelas imagens sinistras que o acossavam desde a visita de Garro. Nem sequer se lembrava com muita precisão da maldita festa em Chosica. Será que o iugoslavo lhe dera alguma droga? Recordava o mal-estar, a sensação de aturdimento, as náuseas e os vômitos. Por fim, em torno de meio-dia, quando saiu o último visitante, disse à secretária que não lhe passasse mais telefonemas porque tinha umas coisas urgentes a fazer e precisava se isolar completamente.

Na verdade queria ficar sozinho, parar por alguns momentos de fazer aquele esforço exaustivo de desdobramento, tentando cuidar dos assuntos do escritório quando só tinha cabeça para o seu problema pessoal. Ficou quase uma hora sentado numa das poltronas em que recebia as visitas, olhando sem ver a vasta esplanada de Lima aos seus pés. O que podia fazer? Até quando continuaria a incerteza? Em determinado momento sentiu que o sono o dominava e, apesar de tentar resistir, acabou adormecendo. “É a angústia”, pensou, deixando-se ir. Talvez fosse bom que fizesse o que nunca quis fazer: aprender a jogar golfe, esse esporte de japoneses e de desocupados. Talvez fosse um relaxante para os nervos. Acordou sobressaltado: à uma e quinze tinha um almoço marcado no Clube dos Bancos. Lavou o rosto, penteou o cabelo e chamou a secretária.

Esta lhe passou uma longa lista de recados, que ele mal escutou.

— E também ligou aquele jornalista que o senhor atendeu outro dia — acrescentou. — Garro, não é? Sim, Rolando Garro. Insistiu muito, que era urgentíssimo. Deixou um telefone. O que eu faço? Posso marcar ou vou adiando?