X. Os Três Piadistas

Quando abriu os olhos, a primeira coisa que viu foi a silhueta de Serafín desenhada no vão da única janelinha do seu quarto no Hotel Mogollón, que deixava sempre destrancada para que o gato pudesse ir ou voltar quando quisesse. “Ah, você voltou, sem-vergonha”, disse, abrindo os braços; o gato imediatamente pulou da janela para a cama e veio se aconchegar ao seu lado. Juan Peineta coçou seu cangote e a barriguinha, sentindo que o bichano se espreguiçava, feliz. “Você ficou fora três dias, seu ingrato”, ralhou. “Ou foram quatro, ou cinco? Quantas trapalhadas deve ter feito por aí.” Será que o gato olhava mesmo para ele como se estivesse arrependido e se encolhia pedindo perdão? “Vamos tomar café mais tarde, Serafín. Estou com preguiça, quero ficar mais um pouquinho na cama.”

A experiência com os Três Piadistas tinha sido, dependendo do ponto de vista, um grande sucesso ou o pior erro da sua vida. Um sucesso porque ganhou mais dinheiro que nunca. Ele e Atanasia se deram vários luxos, entre os quais tirar férias em Cuzco incluindo uma viagem a Machu Picchu, e ficou mais conhecido do que em todos os seus anos de recitador. No Peru inteiro! Sua foto saía nos jornais, as pessoas o reconheciam na rua e vinham lhe pedir autógrafos. Jamais tinha imaginado que pudesse acontecer algo assim com ele. Mas foi uma catástrofe porque nunca se sentiu à vontade trabalhando como palhaço, mas sim infeliz, e carregava para sempre um pesado sentimento de culpa: por ter traído a poesia, a arte, sua vocação de declamador.

O pior é que no programa dos Três Piadistas até que o faziam recitar. Quer dizer, começar a recitar a qualquer pretexto, só para que os outros dois piadistas o silenciassem com bofetadas que o derrubavam no chão e faziam rolar de rir o público que assistia à gravação do programa e, pelo visto, a miríade de telespectadores que eles tinham em todo o Peru. Eram os momentos em que Juan Peineta pior se sentia nos programas: ridicularizando a divina poesia. “Voltarão as escuras andorinhas” e, paf, “Cala a boca, babaca”, bofetada, cai no chão e risos. “Verde que te quero verde, verde vento” e, paf, “Lá vem de novo o Pelópidas com seus versinhos”, bofetada, estatelado no chão e risos estentóreos.

Tinham lhe ensinado todos os truques para as palhaçadas e ele aprendeu sem dificuldade. Bater palmas quando levava um tabefe para parecer que tinham batido muito mais forte e cair no chão dobrando as pernas e os braços como para-choques para atenuar o impacto. Dar gargalhadas estrondosas com a boca totalmente aberta ou gemer como uma criança e até chorar de verdade, quando as exigências do roteiro assim exigiam. Aceitava tudo e fazia o melhor que podia, como bom profissional. Mas nunca se acostumou com o momento, em todos os programas dos Três Piadistas, em que ele, a qualquer pretexto, começava a recitar um poema em voz alta — “Posso escrever os versos mais tristes esta noite…” — e seus parceiros, já fartos, o derrubavam no chão com um tapa. Achava aquilo indigno, sentia que estava cometendo um crime contra a poesia, dando uma punhalada traiçoeira no melhor que havia nele.

Não conseguiu fazer amizade com seus dois colegas do grupo Os Três Piadistas. Eles jamais o aceitaram como um igual, ficavam o tempo todo falando de Tiburcio, o falecido, soltando indiretas, repetindo que ele não era nem nunca seria um cômico tão bom, nem uma pessoa tão boa, nem um companheiro tão bom como o outro. Mas talvez, o próprio Juan às vezes reconhecia, ele não tenha se esforçado muito para conquistar a simpatia e a amizade dos outros dois. Na verdade, desprezava-os por serem incultos e grossos, por não saberem o que era a arte e não terem o menor respeito pelo ofício com que ganhavam a vida. Eloy Cabra tinha sido palhaço em circos de província antes de se incorporar ao programa Os Três Piadistas. Vivia e trabalhava para encher a cara e ir aos bordéis onde, gabava-se, as meninas lhe davam um desconto porque aparecia na televisão e era famoso. O outro “piadista”, Julito Ceres, tinha sido violonista de música folclórica e vencedor do Concurso de Imitadores da América Televisión, no qual embolsou dois mil soles imitando o presidente da República, Chabuca Granda e dois artistas de Hollywood. Não era tão tosco e primitivo como Eloy Cabra, mas, apesar de ter melhor educação que este, sentia um enorme desprezo pela profissão de Juan Peineta; considerava a declamação uma coisa de fresco, de boiola, e fazia Juan se lembrar disso o tempo todo, com cacos ferinos que acrescentava ao roteiro na hora de gravar o programa.

Com o roteirista, Juan Peineta tampouco se dava bem. Era um senhor de sobrenome Corrochano que no canal todo mundo chamava de Mestre, talvez porque estava sempre de gravata e cachecol. Escrevia roteiros para vários programas, com diferentes pseudônimos, e trabalhava numa sala pequena que chamavam de Santuário, porque ninguém podia entrar lá sem autorização do todo-poderoso roteirista. Como podia um homem como ele, advogado, que se vestia bem e era gentil e bem falante com todos, escrever aqueles roteiros tão vulgares e ridículos, tão toscos, grossos e estúpidos? A explicação era que o povo gostava daquilo: a audiência do programa batia recordes, encabeçando as pesquisas desde que foi criado.

Por que não deixou de trabalhar como comediante com os Três Piadistas já que vivia desgostoso por fazer o que fazia? Por razões práticas. Com os dez mil soles por mês, que aumentaram para doze e depois para catorze mil, ele e Atanasia puderam comprar roupa, frequentar cinemas e restaurantes, e até economizar para uma viagem a Miami, o grande sonho da sua mulher, maior até que seu outro sonho: ter um filho. Mas este último não se concretizou; os médicos disseram que era impossível. O aparelho reprodutivo de Atanasia tinha uma conformação que desintegrava os óvulos assim que se constituíam. Apesar desse diagnóstico, ela fez questão de se submeter a um tratamento. Custou caríssimo e não adiantou nada.

Juan chegou a chorar de impotência e frustração depois de gravar alguns programas dos Três Piadistas particularmente humilhantes para ele. E nunca perdeu a saudade dos seus bons tempos de declamador. Às vezes recitava alguns versos que sabia de cor — eram muitíssimos — na frente de um espelho (“— Me escreva uma carta, senhor padre/ — Já sei para quem é”, de Campoamor) ou da mulher, e seu coração encolhia de tristeza pensando em como tinha se rebaixado como artista ao passar de declamador a comediante.

Com esses antecedentes, deveria ter ficado satisfeito com a campanha que, sem saber como nem por quê, foi desferida contra ele no Última Hora, uma campanha que, após alguns meses de muita angústia, terminaria com sua carreira de palhaço da televisão. A história dessa campanha era incrível. Apesar de ter passado tanto tempo, ainda continuava tirando o seu sono. Mas, com a perda da memória, não lembrava muito bem e, às vezes, tinha a sensação de que sua cabeça tergiversava as coisas.

O ditado diz “A desgraça nunca vem sozinha”, e Juan Peineta podia afirmar que no seu caso se cumpriu ao pé da letra. Porque os ataques contra ele no Última Hora coincidiram com as dores de cabeça de Atanasia. A princípio eles tratavam com Melhoral, mas como afinal os comprimidos não faziam mais efeito, foram ao Hospital del Seguro. Depois de quase duas horas de espera, o médico que a atendeu disse que era um problema da vista e a encaminhou para um oculista. E este, de fato, diagnosticou presbiopia e lhe receitou uns óculos que, por algum tempo, aliviaram as enxaquecas.

Como começaram os ataques no Última Hora? Juan Peineta se lembrava de maneira confusa. Alguém lhe disse que a coluna de Rolando Garro, que todo o pessoal do rádio e da televisão lia religiosamente, comentou que o programa Os Três Piadistas da América Televisión tinha caído muito desde que Tiburcio morreu e foi substituído por Juan Peineta, um recitador de auditório que era um horror contando piadas e não servia nem para levar as bofetadas que seus dois companheiros lhe davam (“merecidamente”) toda vez que ameaçava recitar no programa.

Ele não leu essa coluna, nem as outras em que, pelo visto, o jornalista continuou criticando-o, até que um dia Eloy Cabra veio adverti-lo, no final de uma gravação: “Esses ataques também nos atingem, podem afetar a nossa audiência. Você tem que fazer alguma coisa para que eles parem”. E o que podia fazer Juan Peineta para que aquele sujeito parasse de atacá-lo?

— Uma visita simpática e um presentinho para o sr. Garro — sussurrou-lhe Eloy Cabra, piscando um olho.

— Ah, caramba — assombrou-se ele. — É assim que as coisas funcionam?

— É assim que as coisas funcionam com jornalistas propineiros — explicou Eloy Cabra. — É melhor ir logo. Esse sr. Garro é muito influente e pode fazer a nossa audiência cair. E nós não vamos permitir isso, nem nós, nem o produtor do programa, nem a emissora. Tome nota, companheiro.

A ameaça de Eloy Cabra o irritou tanto que, em vez de dar o presentinho que seu colega dos Três Piadistas tinha aconselhado, Juan Peineta escreveu uma carta ao diretor do Última Hora queixando-se dos ataques “injustos e injustificados” de que era vítima por parte do colunista de espetáculos. E avisou que, se essa campanha não parasse, iria à justiça.

Mais tarde ele próprio reconheceria que tinha sido imprudente, que tinha entrado sozinho nas areias movediças que engoliriam sua carreira de comediante. Porque, em vez de parar, os ataques do jornalista contra ele se multiplicaram a partir de então, e não só em sua coluna do Última Hora, mas também num programinha que tinha na Rádio Colonial, no qual dizia diariamente que ele era o “pseudoator” mais inepto da televisão peruana e estava levando à ruína — quer dizer, deixando sem telespectadores — Os Três Piadistas, que era o programa cômico mais popular do país quando “o descartável Juan Peineta substituiu o desventurado e admirado Tiburcio Lanza”.

Nessa mesma época descobriram que Atanasia tinha um tumor no cérebro, a verdadeira causa de suas dores de cabeça periódicas. Porque, de uma hora para outra, ficou muda. Ela abria a boca, movia os lábios — com os olhos cheios de desespero — e emitia sons guturais em vez de palavras. Afinal, o médico que a examinou, e que era um clínico geral, mandou-a consultar um neurocirurgião. Este afirmou que tudo indicava a presença de um tumor cerebral, mas era preciso comprovar com uma ressonância magnética. Como a espera para esse exame na Previdência Social era de várias semanas — ou talvez meses —, Juan levou Atanasia para fazer a ressonância numa clínica particular. Sim, era um tumor, e o neurocirurgião disse que havia necessidade de operar. Mas, antes, era preciso fazer quimioterapia para reduzi-lo. Juan lembrava esse período do tratamento quimioterápico como um lento pesadelo. Depois de cada sessão Atanasia ficava num estado de fraqueza tal que quase não podia se mexer. Não chegou a recuperar a voz e, pouco tempo depois, não conseguia mais se levantar da cama. O neurocirurgião da Previdência disse então que, no estado em que estava aquela senhora, não se arriscava a meter a faca. Tinham que esperar até que ela se recuperasse um pouco.

Estavam nisso quando Juan Peineta foi convocado de novo pelo sr. Ferrero e seus anéis de ouro e seu relógio fluorescente para tomar um cafezinho nos arredores da América Televisión. Era para comunicar-lhe que tinha que sair do programa. E o fez com sua brutalidade característica: a audiência estava caindo, os anunciantes reclamavam, os surveys eram categóricos: Juan tinha perdido os favores do público e era um fardo para os seus colegas. Tentou protestar, dizendo que tudo aquilo era resultado da campanha do sr. Rolando Garro contra ele, mas o sr. Ferrero estava muito ocupado, não queria perder tempo com conversinhas de baixo nível; ele podia passar no caixa hoje mesmo para acertar as contas. A emissora, acrescentou para levantar seu ânimo, ia lhe dar mais um salário além do que lhe cabia, como gratificação extra.

Seis meses depois Atanasia morreu sem ter sido operada e Juan Peineta não conseguiu nenhum trabalho, nem como recitador nem como comediante. Nunca mais teve um emprego regular, só uns bicos miseráveis que às vezes lhe pagavam com trocados. A partir de então costumava dizer aos poucos amigos que lhe restaram — e que iria perdendo junto com a memória, todos menos dois: o Ruletero e Crecilda — que todas as desgraças da sua vida se deviam a um filho da puta chamado Rolando Garro, um jornalista que nunca na vida tinha visto pessoalmente.

Desde então se dedicou à vingança. Quer dizer, a dificultar a vida do causador de todos os seus males. Chegou a se tornar algo semelhante a um vício inextirpável. Acompanhava todos os programas dele no rádio e na televisão e lia tudo o que publicava, para poder criticá-lo com conhecimento de causa. Mandava cartas — assinadas com seu nome — aos donos e diretores dos canais da televisão, rádios, revistas e jornais, acusando-o de tudo, das gafes que cometia às calúnias e infâmias que divulgava, e de mil outras maldades verdadeiras ou imaginadas por ele, às vezes até ameaçando-o com ações legais que não estava em condições de iniciar. Será que essas missivas tinham algum efeito negativo na vida profissional de Rolando Garro? Provavelmente não, a julgar pela popularidade que este ia conquistando com suas revelações, escândalos e vazamentos em meio ao público de classe baixa para o qual direcionava prioritariamente suas colunas e programas. Uma vez Juan Peineta chegou ao extremo de fazer sozinho uma manifestação com um cartaz na frente da América Televisión, acusando Garro de deixá-lo sem trabalho e da morte da sua esposa. Os guardas da emissora o expulsaram aos empurrões. No mundo do espetáculo, onde ninguém mais se lembrava dos seus bons tempos, Juan Peineta começou a ser conhecido, com humor, como “o maluquinho das cartas, o inimigo consuetudinário de Rolando Garro”.