XVII. Estranhas operações em torno de Juan Peineta

Juan Peineta saiu bem cedinho do Hotel Mogollón, perguntando-se de novo onde estaria Serafín, pois fazia três dias que ele não aparecia. Ou eram quatro? Ou mais de uma semana? É muito esquecimento, puta que pariu. Foi para a avenida Abancay. Ainda bem que Willy Rodrigo, o Ruletero, estava residindo nos Bairros Altos. Antes, quando morava no Callao, visitá-lo era uma verdadeira aventura. Tinha que andar até a praça San Martín, onde tomava o ônibus para o Callao. Era o único veículo em que embarcava, todo mês ou mês e meio, para visitar seu compadre e amigo, o rei da jogatina. Ninguém sabia de onde vinha esse apelido, Ruletero, até que um dia Willy lhe contou que era de um mambo de Pérez Prado, o inventor desse ritmo, uma música que, na juventude, passava o dia todo cantando e dançando. Mas nem ele, nem ninguém em Lima, sabia o significado da palavrinha cubana ruletero: cafetão?, taxista?, vendedor de loterias?

Por que será que Willy o chamava com tanta urgência? Esquisita aquela ligação da véspera, para o Hotel Mogollón: “Preciso ver você urgentissimamente, Juanito. Não posso dizer mais nada pelo telefone. Vamos almoçar juntos amanhã? Bacana. Até manhã, então”. De que se tratava? Por que Willy não lhe dera ao menos uma pista? Juan Peineta começou a remontar a avenida Abancay; na altura do Congresso viraria no sinuoso e estendido largo Junín, ao fim do qual chegaria a Cinco Esquinas, onde morava Willy: esse percurso, pelo menos, recordava muito bem. Em determinados momentos tinha a sensação de que dia a dia evaporavam mais coisas da sua memória, de que em breve ele seria um fantasma sem passado.

Ele e Willy eram amigos desde o tempo em que Juan Peineta praticava a nobre arte da declamação e o Ruletero, que administrava um auditório no bairro de Cantagallo, no Rímac, costumava contratá-lo para recitar seus poemas entre os números de dança e canções andinas. O auditório de Willy também apresentava noites de cachascán ou luta livre, mas ele não chamava Juan Peineta para esses espetáculos (chamou uma vez, e as vaias e gritos de “Boiola!” e “Bicha!” das arquibancadas para o pobre Juan o dissuadiram de repetir a dose). O Ruletero tinha vendido o auditório fazia tempo; agora tinha uma casa de jogo em Cinco Esquinas, não muito distante do monumento a Felipe Pinglo, o grande compositor de valsas da velha guarda. Antes, quando morava no Callao, havia outro monumento pertinho de sua casa: o de Sarita Colonia, a padroeira dos ladrões. Ninguém podia ser mais diferente de Juan Peineta que Willy, com sua vida notívaga e sua espelunca onde iam tentar sorte os jogadores mais famintos e infames, muitos deles assaltantes e ex-presidiários que conviviam na noite com bêbados, cafetões e vagabundos que muitas vezes costumavam dirimir suas divergências a navalhadas ou pontapés. Também havia entre os fregueses de Willy muitos tiras e informantes da polícia que iam lá filar uma cerveja e obter informações.

Apesar de tudo isso, eles mantinham uma amizade acima das diferenças abismais entre suas vidas. Durante muito tempo Juan fazia quatro ou cinco vezes por ano o longo trajeto do centro de Lima até aquele bairro feroz perto do porto de Callao para passar o dia com seu velho amigo. Agora, desde que se mudara para o centro da Lima colonial, era mais fácil, já não precisava fazer a interminável e desconfortável viagem até o porto, só essa cansativa caminhada. Willy sempre o levava para almoçar em alguma taberna onde houvesse mexilhão fresco e cerveja gelada. Enquanto se empanturravam, os dois lembravam os tempos de outrora, quando Juan exercia sua vocação de artista-recitador e tinha um casamento feliz com Atanasia, e Willy administrava seu auditório folclórico, o que lhe permitia levar para a cama algumas das artistas que desfilavam em seu picadeiro, se bem que Juan achava que não tinha comido tantas como se vangloriava. Porque Willy também era muito fanfarrão. Mesmo sabendo que exagerava e mentia, Juan se divertia muito escutando-o. Por que o chamara com tanta urgência? Por que não quis adiantar nada pelo telefone?

Demorava quase uma hora para chegar a essa encruzilhada labiríntica que era Cinco Esquinas, no coração dos Bairros Altos. Quando Juan era jovem, esse lugar era cheio de saraus de música criolla e lá moravam muitos boêmios, artistas, músicos, e até branquinhos de Miraflores e San Isidro amantes da música nativa vinham ouvir os melhores cantores, violonistas e tocadores de cajón e dançar com os cholos e os pretos. Ainda havia sinais da grande época dos Bairros Altos, o tempo de La Palizada, Felipe Pinglo e todos os grandes compositores e divulgadores da música criolla.

Agora o bairro estava degradado e suas ruas eram perigosas. Mas nele Willy estava no seu elemento, presidindo a jogatina. Ganhava bem, aparentemente, mas Juan Peineta receava que um dia o apunhalassem. Ia andando, em seu ritmo lerdo e suportando as dores das suas varizes inchadas, pelo serpeante, extenso e sempre movimentado largo Junín. A cidade ia empobrecendo e envelhecendo à medida que ele avançava entre as bancas das vendedoras que ofereciam flores, comida, frutas, todo tipo de quinquilharias, as velhas casas coloniais que pareciam prestes a desmoronar, as crianças esfarrapadas, pedintes ou desocupadas, ainda dormindo nos saguões ou debaixo dos postes de luz. Além de igrejas coloniais, havia muitas confrarias e cruzes em volta das quais, às vezes, uma corte de devotos acendia velas para o Santo Cristo ou para os santos, rezando ajoelhados e tocando em sua imagem. Por ali, depois de passar o convento das Descalças e a Quinta Heeren, num beco de terra, ficava a casa de jogo de Willy Ruletero.

Geralmente encontrava o amigo de bom humor, e ele sempre o recebia com a mesma piada: “Que bom ver que está vivo, que ainda não bateu as botas, Juanito!”. Mas dessa vez Willy estava sério e tenso e o abraçou sem dizer nada. “Fiquei preocupado com seu telefonema de ontem à noite, velho”, disse Juan, “o que houve?” Willy limitou-se a cobrir os lábios e sugerir com um gesto que se afastassem dali. Ele tinha o rosto marcado por várias pintas e era um homem grisalho e ainda forte para seus setenta e poucos anos; estava com um macacão desbotado, um pulôver cinza sem mangas e um mocassim velho sem meias. Quase abraçando Juan Peineta, empurrou-o para longe da casinha de madeira e adobe e teto de zinco onde funcionava sua jogatina e onde ele morava, sozinho ou, como costumava dizer, “com mulherzinhas ocasionais”.

— Por que não entramos na sua casa para descansar um pouquinho, Willy? — sugeriu Juan Peineta. — Você está muito misterioso, compadre, eu fiquei exausto de tanto andar.

— Vamos conversar longe daqui, Juanito — respondeu o Ruletero em voz baixa, olhando em volta. E acrescentou, piscando: — Este lugar ficou muito perigoso. Não só para mim. Para você também, compadre. Eu vou lhe explicar.

Em silêncio, de cara fechada e com um ar de preocupação que deixou Juan Peineta muito mais preocupado do que estava, Willy o fez andar vários quarteirões por um mar de ruelas de terra batida e casinhas inacabadas de um ou dois andares, todas elas cheias de gente pobre, descalça ou de chinelos, os homens de camiseta e muitas mulheres com lenço na cabeça como faziam as devotas de algumas seitas evangélicas.

Juan notou que seu amigo estava mancando do pé esquerdo: tinha tropeçado?

— Parece que é reumatismo e que isso não tem solução — respondeu o Ruletero fazendo uma careta mal-humorada. — Uma mulher lá do bairro, uma espécie de feiticeira que cura com ervas, está me dando uns banhos, por enquanto sem resultados. Provavelmente já estou com os achaques de velhice, Juanito. Assim como você está fodido da memória, eu estou das minhas pernas.

O que estava acontecendo com Willy? Não parecia o mesmo de sempre, o homem sorridente e brincalhão que Juan conhecia havia mais de trinta anos, que não se abalava com coisa nenhuma e não perdia o bom humor por nada no mundo. Estava inquieto, desconfiado e assustado. Juan viu que hesitava antes de entrar em alguns dos bares onde pararam para que Willy os farejasse antes. Em vários decidiu não entrar sem dar qualquer explicação a Juan Peineta.

— Assim me deixa preocupado, Willy — disse afinal, enquanto continuavam andando em busca de um lugar onde pudessem sentar e conversar tranquilamente. — Que diabo está acontecendo com você, irmão, por que está tão desconfiado, tão nervoso?

Em vez de responder, Willy, muito sério, levou um dedo à boca indicando que fechasse o bico: silêncio. Mais tarde teriam tempo para falar.

Finalmente Willy encontrou o que estava procurando. Um boteco cheio de moscas, com meia dúzia de mesinhas vazias que, apesar de ser pleno dia, estava com uma lâmpada tênue acesa. Sentaram perto da porta e Willy pediu uma cerveja bem gelada — Pilsen Callao, naturalmente — e dois copos limpinhos.

— Afinal vai me dizer que merda está acontecendo, Willy? Por que diabo você está tão estranho, irmão?

Willy cravou um olhar cheio de apreensão em seus olhos grandes e amarelados.

— Estão armando alguma coisa que não me cheira nada bem, irmão — disse, abaixando a voz e dando uma espiada suspicaz no entorno que Juan tampouco conhecia. Fez uma longa pausa antes de continuar: — Vou lhe contar tudo, porque desconfio que você também esteja metido nessa encrenca. É que…

Mas se calou porque o homem descalço que atendia as mesas chegou com a cerveja e os copos. Serviu-os, com muita espuma, e Willy só continuou quando ele já estava longe, atrás do pequeno balcão: — É sobre o jornalista que mataram, aquele que você odiava tanto, Juanito.

— Rolando Garro? — Juan Peineta teve um sobressalto e se benzeu. — Quer saber de uma coisa, Willy? Eu fiquei muito feliz quando o mataram, para que vou mentir. Porque ele ferrou minha vida, você sabe. Mas depois me arrependi. A gente não deve se alegrar com as desgraças alheias, por mais que se trate de um sujeito ruim como Garro. Fui me confessar, e o padre puxou minha orelha. Não o odeio mais. Só tenho pena. Deus lá em cima vai saber o que fazer com ele. Teve uma morte horrível, parece.

Parou de falar porque Willy Ruletero parecia não estar mais escutando. Quando viu Juan Peineta calado, ele voltou da abstração ou do sonho em que estava imerso para a realidade.

— Você leu que foi encontrado morto aqui neste bairro, não leu?

Juan Peineta confirmou.

— Pertinho do monumento de Felipe Pinglo, quase chegando a Cinco Esquinas. Sim, li sim. Mas por que está me perguntando, Willy?

— Porque não é verdade — disse o Ruletero, abaixando ainda mais a voz. — Não o encontraram. Foi trazido num carro que só podia ser da polícia. Ou da Segurança do Estado. Só eles se atrevem a entrar neste bairro à noite. Tiraram o cadáver do carro, destroçado como estava, e o deixaram na porta da minha casa de jogo. Não acha estranho, Juanito? Não é muita coincidência escolherem esse lugar para deixar o cadáver do jornalista? Pode-se saber com que intenção fizeram isso?

— Você tem certeza do que está me contando, Willy? — perguntou Juan Peineta.

— Eu os vi — confirmou seu amigo, dando uma pancadinha na mesa. — Na minha rua não entra carro de noite, irmão. Todo mundo se caga de medo de ser assaltado. Os que entraram só podiam ser tiras ou milicos. Da polícia ou da Segurança do Estado. Quando ouvi o motor do carro, fiquei espiando pela janela. E vi tudo, com estes olhos.

— Então não foi o milionário que está preso que mandou matá-lo, Willy? — surpreendeu-se o ex-recitador.

— Só estou dizendo o que vi — afirmou o Ruletero, tamborilando nervoso no tampo da mesa, de onde saíram voando várias moscas. — Não sei quem o matou. A única coisa que sei é que não o encontraram morto em Cinco Esquinas, ele foi trazido já morto em um carro e largaram o cadáver em frente à minha casa. Sabe-se lá com que intenção. E os homens que o trouxeram só podiam ser tiras ou milicos da Segurança do Estado, não tenho a menor dúvida disso. A patrulha só apareceu aqui umas duas ou três horas depois. Não fui eu que avisei, claro. Só fiz uma coisa: despachei todos os jogadores pela porta falsa, apaguei as luzes, fui para a minha caminha e fiz de conta que estava dormindo. Não contei a mais ninguém o que estou lhe dizendo. Você entende que isso é muito preocupante, não é, Juanito?

— Mas por quê, irmão? — tentou tranquilizá-lo Juan Peineta. — Para que vai se preocupar com uma coisa que não tem nada a ver com você.

— Por que você acha que escolheram a porta da minha espelunca para deixar o cadáver de Garro? Foi por acaso? O acaso não existe, irmão. Tudo o que acontece tem sua razão de ser, principalmente quando se trata de um assassinato.

— Quer dizer, você acha que fizeram isso de propósito, para comprometê-lo com essa morte. Não seja tão desconfiado, Willy. Na certa foi deixado aí sem outras intenções, porque sim, como poderia ter sido em qualquer outro lugar.

— Espere a continuação da história, irmão — disse Willy, olhando-o com compaixão. — Só estamos no começo. Pode acreditar que o corpo foi deixado aqui por uma razão que tem a ver comigo. E também com você, Juanito. Com você, sim, exatamente. Pensei que podia estar enganado quando prenderam aquele Enrique Cárdenas, o minerador, acusando-o de ser o autor intelectual do crime, porque Garro o chantageava ameaçando divulgar as fotos da bacanal de Chosica. Mas, mas…

Fez silêncio e olhou longamente para Juanito, como se estivesse no velório dele contemplando o seu cadáver. Este se preocupou.

— O que foi, Willy? — perguntou. — Por que ficou calado de repente me olhando desse jeito?

— Porque parece que toda essa história tem muito mais a ver com você que comigo, irmão. Lamento muito ter que lhe dar esta má notícia. Isso mesmo. Com você, não comigo. Eu entrei na história por tabela, digamos. Simplesmente por ser seu amigo.

Juan Peineta teve a sensação de que a cadeira onde estava sentado se levantava e caía de súbito no chão, sacudindo todos os seus ossos. Sentiu dor de cabeça, um calafrio lhe correu pelas costas. O que significava tudo aquilo? Ele não estava entendendo nada. Será que tinha esquecido algo importante? Buscou em sua memória e não encontrou nada.

— O que está dizendo, Willy? — murmurou. — Comigo?

— Foi por isso que liguei ontem pedindo que você viesse com tanta urgência — sussurrou Willy, aproximando-se muito do rosto do amigo. — Essas coisas não se falam por telefone. A notícia boa é que eles não sabem que você mora no Hotel Mogollón. Não é incrível? Pois é: não sabem.

— Quem? — balbuciou Juan Peineta. — Quem são essas pessoas de que você está falando?

— Quem pode ser, Juanito — ironizou Willy. — Os tiras ou os milicos da Segurança do Estado. Só podem ser eles, já disse.

Haviam aparecido três ou quatro dias depois da noite em que aquele carro misterioso deixou o cadáver destroçado de Rolando Garro em frente à jogatina de Willy Ruletero. Estavam à paisana e com o cabelo raspado de lado, por isso quando Willy os viu percebeu na hora que eram militares. Os dois lhe estenderam a mão e sorriram com o sorriso um pouquinho falso dos policiais e agentes de segurança quando estão de serviço. Mostraram-lhe umas carteiras plastificadas onde Willy divisou carimbos, uma bandeirinha peruana e umas fotos minúsculas e indetectáveis.

— Isto é uma visita informal, Willy — disse o visitante que parecia mais velho. — Sou o capitão Félix Madueño. Eu não existo, por via das dúvidas. Quer dizer, nós não viemos, não estamos aqui. Você é inteligente e está me entendendo, não é mesmo?

Willy se limitou a sorrir, já preocupadíssimo. Aquilo estava começando mal. Vinham atrás do seu dinheiro, ou o quê?

— Isto aqui parece uma jogatina de mortos de fome — comentou o outro, apontando para as paredes lascadas, os vidros sujos das janelas, as teias de aranha no teto, as mesinhas capengas e o chão de terra batida. — E, no entanto, Willy, nós sabemos que aqui se jogam milhões de soles toda noite.

— Eu não diria tanto — sorriu Willy, com muita prudência. — Em todo caso, não há limite para as apostas, desde que o jogo seja limpo. É a regra da casa.

— Não precisa fazer essa cara de preocupação, Willy — disse o que tinha falado antes. — Nós não viemos perguntar nada sobre seu negócio nem sobre seus clientes, esses jogadores que perdem aqui tudo o que têm.

— E o que não têm, também — disse o outro.

— Mas sim sobre seu amigo Juan Peineta.

— É mesmo, Willy? — perguntou o ex-recitador, cada vez mais surpreso e assustado. Não conseguia acreditar no que estava ouvindo, achava que agorinha mesmo Willy ia dar uma gargalhada e dizer: “Era brincadeira, irmão, só para ver como se soltava a sua diarreia”. — Eles sabiam meu nome? Vieram falar de mim?

— Sim, ele mesmo — confirmou o mais velho, que se apresentava como capitão Félix Madueño. — Sabemos perfeitamente que vocês são muito amigos, não é mesmo?

— Claro que ele é meu amigo — assentiu Willy. — Quando eu tinha um auditório, em Cantagallo, Juanito recitava poemas entre os números de música folclórica. E recitava muito bem. Era um artista.

— E também vem visitá-lo aqui de vez em quando e vocês almoçam juntos, não é verdade? — afirmou o outro.

— Sim, de tanto em tanto ele passa aqui para lembrar os velhos tempos — disse Willy. — Não vem há muito tempo, não sei por onde andará. Espero que não tenha morrido.

— Estamos precisando do endereço e do telefone dele — disse o que tinha falado antes, com uma vozinha ácida. — Pode nos fazer este favor, Ruletero?

— Sabe o que mais chamou minha atenção, Juanito? — disse Willy diante da cara atarantada do ex-recitador. — Que esses agentes da Segurança do Estado, que sabiam de tantas coisas, que nós somos amigos, que às vezes almoçamos juntos por aqui, não tivessem a menor ideia de que você mora no Hotel Mogollón há anos. Não acha incrível?

— Não, não acho — replicou Juan Peineta, falando com dificuldade, como se houvesse alguma coisa travando sua garganta. — É o subdesenvolvimento, Willy. E você, o que disse a eles?

— Acho que ele não tem residência conhecida, vive daqui para lá, onde os amigos lhe dão hospedagem, imagino. Ou num albergue de caridade de algum convento. E, claro, seria surpreendente que tivesse telefone.

— Você está querendo nos sacanear, Willy? — disse o mais jovem, com uma vozinha agressiva, mas sempre sorrindo. — Achou que nós temos cara de babacas, reizinho da jogatina?

— Claro que não, chefe — Willy jurou com os dedos em cruz. — Se o Juanito tivesse um endereço fixo eu diria, sem problema. Mas duvido que haja tido algum endereço na vida. E telefone muito menos. Juan Peineta está na pior, não tem onde cair morto, vocês não sabem? Parece um cachorro sem dono. Desde que deixou de ser um dos Três Piadistas a vida dele despencou ladeira abaixo. Chegou ao fundo do poço há muito tempo. Ele vive de caridade, não sei se sabem. Além do mais, está perdendo a memória, às vezes não sabe nem quem é.

— Coitadinho do Juan Peineta — disse com sarcasmo o mais velho dos dois, dando-lhe um papel. — Faça-me um favor, Willy. Descubra o endereço dele e me telefone para este número. Pergunte pelo capitão Félix Madueño ou pelo suboficial Arnilla, às suas ordens.

— Que isto fique como um segredo nosso, Willy — disse o mais jovem. — E, evidentemente, quando nós sairmos daqui você não vai fazer a estupidez de ir contar ao seu amigo que estamos atrás dele.

— Nunca na vida — protestou Willy, batendo na mesa com o punho. — Eu sempre me dei bem com as autoridades.

— Claro que sim, Willy, você é um cidadão exemplar e todo mundo sabe disso — disse o suboficial Arnilla, estendendo-lhe a mão. — Até logo, compadre. Não se esqueça, descubra o endereço do seu amigo. O quanto antes.

— E foram embora — disse Willy. — Eu, naturalmente, fui correndo telefonar para o Hotel Mogollón. Agora você compreende por que eu não podia lhe deixar nenhum recado, por que tinha que contar tudo isso pessoalmente.

O ex-recitador tinha a estranha sensação de que aquilo não estava acontecendo, era um pesadelo e a qualquer momento iria acordar e rir do susto que levou diante do que não tinha ocorrido nem ia ocorrer. Entretanto, ali estava seu amigo Willy Ruletero olhando para ele com tristeza. O homem do bar veio perguntar se queriam que ele fizesse um ceviche de corvina.

— Está fresquinha? — perguntou Willy.

— Chegou esta madrugada do Callao, recém-saidinha do mar.

— Dois ceviches de corvina caprichados, então. E outra cerveja, mas bem, bem geladinha.

— Não estou entendendo nada, Willy — balbuciou Juan, quando o outro se afastou. — Para que esse pessoal da polícia ou do Exército está me procurando?

Willy estendeu a mão, segurou seu braço e apertou-o num gesto solidário.

— Não tenho a menor ideia, irmão — disse, aflito. — Mas isso não está me cheirando nada bem, Juanito. Minha suspeita é de que meteram ou querem meter seu nome numa história muito pesada. Principalmente, porque vieram perguntar por você poucos dias depois que aqueles caras deixaram na minha porta o cadáver do tal jornalista que fodeu sua vida. Todo mundo sabe que você o odiava, que manda cartas contra ele aos jornais há muitos anos. Não vê a conexão que pode existir entre tudo isso?

— O que está querendo dizer, Willy? Que as duas coisas estão ligadas? Mas isso não tem pé nem cabeça. O que o safado do Garro me fez aconteceu há uns dez ou doze anos. Talvez não sejam tantos. Mas no mínimo mais de cinco.

— Eu sei, Juanito — disse Willy; queria acalmá-lo, mas tudo o que ele dizia a Juan o deixava ainda mais preocupado. — Essas coisas da polícia não costumam ter muita lógica. Mas um ponto fica bem claro. Estão armando feio contra você. Não sei o que é, mas não tenha dúvida de que se cair nas mãos desses caras coisa boa não vai lhe acontecer. É muita sorte eles não saberem onde você mora. Você tem que sumir, ficar longe daqui por um tempo, irmão.

— Sumir, Willy? — Juan estava boquiaberto. — Ir para onde? E com quê? Eu não tenho onde cair morto, irmão. Para onde poderia ir?

Willy assentiu e deu outra palmadinha fraternal em seu braço.

— Por mais que eu queira, não posso hospedá-lo, Juanito. Lá na jogatina seria preso na hora. Procure, pense, matute bem, você vai arranjar alguma coisa. Mas, por favor, não me diga onde vai se esconder, se encontrar algum esconderijo. Eu não quero saber para não ter que mentir outra vez para esses tiras, ou seja lá o que forem, se vierem me interrogar sobre o seu paradeiro.

O ex-recitador ficou olhando para o amigo sem saber o que dizer. Aquilo estava mesmo acontecendo com ele? Continuava bem acordado? Uma pessoa forçada pela vida a morar num buraco miserável, que recebia uma pensão ridícula, que precisava frequentar o refeitório das Descalças para não ficar tuberculoso. Será que ainda podia piorar? Procurado pela polícia ou pela Segurança do Estado, ele, Juan Peineta? Era tão absurdo, tão desatinado, que não sabia o que dizer nem o que fazer.

— Não tenho nada a esconder, Willy — disse afinal. — Vai ser melhor me apresentar a esses caras que vieram aqui e perguntar por que estão me procurando, o que querem comigo. Só pode ser uma confusão, um mal-entendido. Você não acha, irmão?

— Eu não lhe recomendaria fazer essa babaquice, Juanito — disse Willy, olhando-o com tristeza. — Se você está sendo procurado, a coisa é perigosa. Havendo alguma confusão ou um mal-entendido, para você, para mim ou para qualquer um que não seja um peixe grande, o caso pode acabar muito mal. Enfim, você sabe o que faz. Eu quis lhe contar porque gosto de você, meu velho amigo, e já não me restam muitos. Acho que é o último. Não gostaria que fosse envolvido numa história pesada ou, até, que o fizessem desaparecer. Você sabe muito bem que aqui as pessoas desaparecem e nada acontece porque a culpa de tudo é dos terroristas. Você sabe o que faz, irmão. Só lhe peço uma coisa, se for preso não diga que eu o procurei e contei isso que contei.

— Claro que não, Willy — disse Juan Peineta. — Você não sabe como estou grato por ter me avisado. Claro que nunca diria que você telefonou para me alertar. Se me perguntarem, vou dizer que não vejo você há muito tempo.

— Isso, isso mesmo — disse Willy Ruletero. — E, do jeito que estão as coisas, é melhor deixarmos de nos ver por um tempinho. Não acha?

— Claro que sim — disse Juan, a cara desfigurada de preocupação. — Você tem toda a razão do mundo, irmão.