O ESCRAVO

 

 

 

 

J’ai plus de souvenirs que si j’avais mille ans.

Baudelaire

 

A grande Morte que cada um traz em si.

Rilke

 

 

Quando a tarde veio o vento veio e eu segui levado como uma folha

E aos poucos fui desaparecendo na vegetação alta de antigos campos de batalha

Onde tudo era estranho e silencioso como um gemido.

Corri na sombra espessa longas horas e nada encontrava

Em torno de mim tudo era desespero de espadas estorcidas se desvencilhando

Eu abria caminho sufocado mas a massa me confundia e se apertava impedindo meus passos

E me prendia as mãos e me cegava os olhos apavorados.

Quis lutar pela minha vida e procurei romper a extensão em luta

Mas nesse momento tudo se virou contra mim e eu fui batido

Fui ficando nodoso e áspero e começou a escorrer resina do meu suor

E as folhas se enrolavam no meu corpo para me embalsamar.

Gritei, ergui os braços, mas eu já era outra vida que não a minha

E logo tudo foi hirto e magro em mim e longe uma estranha litania me fascinava.

Houve uma grande esperança nos meus olhos sem luz

Quis avançar sobre os tentáculos das raízes que eram meus pés

Mas o vale desceu e eu rolei pelo chão, vendo o céu, vendo o chão, vendo o céu, vendo o chão

Até que me perdi num grande país cheio de sombras altas se movendo…

 

Aqui é o misterioso reino dos ciprestes…

Aqui eu estou parado, preso à terra, escravo dos grandes príncipes loucos.

Aqui vejo coisas que mente humana jamais viu

Aqui sofro frio que corpo humano jamais sentiu.

É este o misterioso reino dos ciprestes

Que aprisionam os cravos lívidos e os lírios pálidos dos túmulos
E quietos se reverenciam gravemente como uma corte de almas mortas.

Meu ser vê, meus olhos sentem, minha alma escuta

A conversa do meu destino nos gestos lentos dos gigantes inconscientes

Cuja ira desfolha campos de rosas num sopro trêmulo…

Aqui estou eu pequenino como um musgo mas meu pavor é grande e não conhece luz

É um pavor que atravessa a distância de toda a minha vida.

É este o feudo da morte implacável…

Vede — reis, príncipes, duques, cortesãos, carrascos do grande país sem mulheres

São seus míseros servos a terra que me aprisionou nas suas entranhas

O vento que a seu mando entorna da boca dos lírios o orvalho que rega o seu solo

A noite que os aproxima no baile macabro das reverências fantásticas

E os mochos que entoam lúgubres cantochões ao tempo inacabado…

É aí que estou prisioneiro entre milhões de prisioneiros

Pequeno arbusto esgalhado que não dorme e que não vive

À espera da minha vez que virá sem objeto e sem distância.

 

É aí que estou acorrentado por mim mesmo à terra que sou eu mesmo

Pequeno ser imóvel a quem foi dado o desespero

Vendo passar a imensa noite que traz o vento no seu seio

Vendo passar o vento que entorna o orvalho que a aurora despeja na boca dos lírios

Vendo passar os lírios cujo destino é entornar o orvalho na poeira da terra que o vento espalha

Vendo passar a poeira da terra que o vento espalha e cujo destino é o meu, o meu destino

Pequeno arbusto parado, poeira da terra preso à poeira da terra, pobre escravo dos príncipes loucos.