O OUTRO

 

 

 

 

Às vezes, na hora trêmula em que os espaços desmancham-se em neblina

E a gaze da noite se esgarça suspensa na bruma dormente

Eu sinto sobre o meu ser uma presença estranha que me faz despertar angustiado

E me faz debruçar à janela sondando os véus que se emaranham dentre as folhas…

Fico… e muita vez os meus olhos se desprendem misteriosamente das minhas órbitas

E presos a mim vão penetrando a noite e eu vou me sentindo encher da visão que os leva.

Vozes e imagens chegam a mim, mas eu inda sou e por isso não vejo

Vozes enfermas chegam a mim — são como vozes de mães e de irmãs chorando

Corpos nus de crianças, seios estrangulados, bocas opressas opressas na última angústia

Mulheres passando atônitas, espectros confusos, diluídos como as visões lacrimosas.

E de repente eu sou arrancado como um grito e parto e penetro em meus olhos

E estou sobre o ponto mais alto, sobre o abismo que desce para a aurora que sobe

Onde na hora extrema o rio humano se despeja vertiginosamente e de onde surgirá

Lívido e descarnado, quando o pálido sangue do Sol morrendo escorrer da face verde das montanhas.

 

Mas por que estranho desígnio foi diferente a angústia daquela manhã tristíssima

Por que não vieram até mim as lamentações de todas as madrugadas

Por que quando eu caminhei para o sofrimento, foi o meu sofrimento que eu vi estendido sobre as coisas como a morte?

Ai de mim! a piedade ferira o meu coração e eu era o mais desamparado

O consolo estava nas minhas palavras e eu era o único inconsolável

A riqueza estivera nas minhas mãos e eu era pobre como os olhos dos cegos…

Na solidão absoluta de mil léguas foi o meu corpo que eu vi acorrentado ao pântano infinito

Foi a minha boca que eu vi se abrindo ao beijo da água ulcerada de flores leprosas.

Dormiam sapos sobre a podridão das vitórias moribundas

E vapores úmidos subiam fétidos como as exalações dos campos de guerra.

Eu estava só como o homem sem Deus no meio do tempo e sobre minha cabeça pairavam as aves da maldição

E a vastidão desolada era grande demais para os meus pobres gritos de agonia.

De fora eu vi e senti medo — como que um ávido polvo me prendia os pés ao fundo da lama

Eu gritei para o miserável que erguesse os braços e buscasse a música que estava no pântano e na pele desfeita das flores intumescidas

Mas ele já nada parecia ouvir — era como o mau ladrão crucificado.

 

Oh, não estivesse ele tão longe de meus pés e eu o calcaria como um verme

Não fosse minha náusea e eu o iria matar no seu martírio

Não existisse a minha incompreensão e eu lhe desfaria a carne entre meus dedos.

Porque a sua vida está presa à minha e é preciso que eu me liberte

Porque ele é o desespero vão que mata a serenidade que quer brotar em mim

Porque as suas úlceras doem numa carne que não é a dele.

Mas algum dia quando ele estiver dormindo eu esquecerei tudo e afrontarei o pântano.

Mesmo que pereça eu o esmagarei como uma víbora e o afogarei na lama podre

E se eu voltar eu sei que as visões passadas não mais povoarão os meus olhos distantes

Eu sei que terei forças para comer a terra e ficar escorrendo em sangue como as árvores

Parado diante da beleza, agasalhando os príncipes e os monges, na contemplação da poesia eterna.