DUAS CONSTANTES DE FORMA E EXEGESE *

THIERS MARTINS MOREIRA

 

 

 

Qui que ce soit qui puisse vivre dans les apparences des choses, c’est pour lui une necessité de nature de vivre dans le fait même des choses.

Carlyle

 

 

Em princípios de 1935, o sr. Otávio de Faria deu-nos um livro de crítica onde, ao lado de Augusto Frederico Schmidt e num mesmo plano de valor, colocava um poeta pouco conhecido das livrarias e do público e cujo primeiro e único livro até então, O caminho para a distância, passará em nossas letras sem rumores. O fato ocasionava certo espanto aos que conheciam a honestidade e a segurança dos juízes daquele crítico e o lugar que, na poesia modernista, vinha ocupando entre nós o poeta do Navio perdido. Via-se que numa obra exaustiva e funda de crítica poética, como até então não se fizera nas letras nacionais, o maior crítico da geração ombreava um desbravador de altos caminhos, sagrado entre os maiores das musas modernistas, com um estreante, cujo primeiro livro era apenas o prenúncio de grandes obras futuras.

Quando, portanto, em 1935, o sr. Vinicius de Moraes apareceu com Forma e exegese, e a Sociedade Felipe d’Oliveira reconheceu no livro o melhor desse ano, o que se veio a ter foi a confirmação de uma crítica a que poderíamos chamar de antecipada, que, na base de poesias esparsas e do livro anterior, prejulgara uma das maiores encarnações poéticas de nosso modernismo. O sr. Vinicius de Moraes vinha responder ao crítico, dar-lhe uma satisfação pública, apresentar títulos que o justificassem diante de todas aquelas quase quinhentas páginas dos Dois poetas que lhe conquistaram uma invejável posição na galeria dos “modernos”.

E, na verdade, Forma e exegese (estranho e magnífico nome para a compreensão de sua poesia) é um livro de grandes temas poéticos. É mesmo um dos mais ricos livros que nos deu a poesia modernista. Em todos os poemas há uma tal abundância de beleza poética, um esbanjamento de riquezas poéticas, um cair sobre nós de imagens poéticas, multiplicando emoções, cruzando sentimentos, sacudindo ideias até então indespertas, que o que nos fica da primeira leitura do livro é uma sensação de afogamento numa atmosfera incrível e misteriosa de estranhos mundos de poesia.

Essa riqueza, porém, nada diz de nosso velho lirismo erótico e sentimental, nem espalha ditirambos à luz tropical de nossas paisagens. O que logo nos fere, quando se consegue sair do primeiro caos de emoções em que o livro nos deixou, é isso de não haver poesia senão de temas profundos, que anda revolvendo realidades escondidas do mundo. E onde surge, sobretudo — numa linguagem meio esotérica de iniciados —, a poesia do homem, do trágico humano, das misérias da terra, dos gritos do seu pecado, de uma consciência indecisa e fugaz sobre os castigos vindos dos erros da carne. Poesia de dramáticos chamamentos do sexo e horrorosos apelos do espírito para não ouvi-los. Poesia onde a realidade surge em labaredas que se fazem e refazem, em formas que a todos os instantes se criam e recriam, e através das quais se adivinham, antes, que se veem outros mundos fugitivos de belezas suprarreais.

O que o poeta quer, vê-se bem (será propósito de técnica super-realista?), é tomar do mundo a beleza que dorme na intimidade das coisas, ir até as raízes mais secretas de suas origens, surpreendê-la como que em estado de pureza absoluta, onde viva acima do contingente, no calmo céu de sua realidade metafísica. Por isso, uma das grandes constantes que vivem em todo o livro, marcando uma linha central de sensibilidade poética do autor e dando os melhores elementos à compreensão da maioria dos poemas, é a vontade, manifesta ou não, de tomar somente para seus poemas uma “poesia eterna”. Sente-se logo que o sr. Vinicius de Moraes não quer ver o homem de hoje, o homem da rua, o homem de agora, deste instante, deste sol, mas a beleza que está no “homem”, no “mundo”, nos “instantes”, nas “paixões”. Se o destino do poeta é “fugir sempre ao homem que ele traz em si”, todo o livro bem o explica que o sentido desta fuga está na obtenção da “poesia eterna”. Outros poetas, velhos clássicos, torturados românticos, épicos de grandes destinos, a têm atingido e desejado mesmo inconscientemente. Em Forma e exegese, porém, é propósito consciente de que a poesia marque sobretudo essa fuga. Dentro de outros traços constantes da obra do sr. Vinicius de Moraes, que assinalam círculos maiores ou menores de sua arte, esse sobreleva-se aos demais, dá mesmo uma das cores mais próprias à sua poesia. Tem-se a impressão de que esse entendimento da arte poética vive tão intimamente no autor que fora dele lhe seria impossível fazer nascer os maiores momentos de sua inspiração.

No “O outro”, quando o poeta consegue esmagar aquele que lhe “mata a serenidade”, e cujas

 

úlceras doem numa carne que não é a dele,

 

é para ficar

 

parado diante da beleza, agasalhando os príncipes e os monges, na contemplação da poesia eterna.

 

Na “Última parábola”, no momento em que o poeta caminha para a cruz que está no céu, é uma estrela que vem fecundar seus olhos de poesia eterna:

 

Eu chorei e caminhei para a grande cruz pousada no céu

Mas a escuridão veio e — ai de mim! — a primeira estrela fecundou os meus olhos de poesia terrena!…

 

E naquela “Lenda da maldição” que renova, como todo o livro, o tema dos poetas malditos, também aí:

 

A criança lembrou-se da noite cheia de entranhas e cujo riso era a poesia eterna.

 

No fim do livro, quando o poeta nos quer definir a poesia, é o poeta, “parte no eterno renovamento”, que nos diz numa frase que lembra ascetas contemplativos:

 

Eu sonho a poesia dos gestos fisionômicos de um anjo!

 

Essa ideia e essa vontade de que a poesia seja a grande poesia se associam em todo o volume à ideia de que o poeta traz a ressonância de todas as idades, lembranças de todas as raízes, memória infinita e eterna de todos os mundos e de todas as origens. Espectador dos primeiros instantes, convidado ao espetáculo de todas as criações, vem daqui a sua faculdade de compreender as essências e dar ao poema a beleza que dorme na intimidade escondida das coisas.

Nas “Variações sobre o tema da essência”, que é o poema da inspiração, que nos dá a alma crescendo para o poema que vem surgindo até que se desencante “à sombra de Deus”, não falta esta confissão:

 

Só desejei a essência,

 

nem este momento bíblico de criação:

 

Tudo era o instante original.

 

Nem na “Aparição do poeta”1 falta o orgulho desta convicção:

 

[…] Éramos a primeira manifestação da divindade.

 

E, no “O Incriado”, avulta esta imagem, das maiores para a compreensão do poeta, e que nos dá a ideia de rumores de longos mares guardados em velhas arcas de barcos místicos:

 

Eu sou como o velho barco que guarda no seu bojo o eterno ruído do mar batendo.

 

Na “Aparição do poeta”,2 que é o poema do poeta, como “Variações sobre o tema da essência” o é da inspiração, grita esta outra confissão:

 

Foi muito antes dos pássaros — apenas rolavam na esfera os cantos de Deus

E apenas a sua sombra imensa cruzava o ar como um farol alucinado…

Existíamos já… No caos de Deus girávamos como o pó prisioneiro da vertigem.

 

E pouco adiante, no mesmo poema, enquanto o eterno vai criando o amor, a morte, o tempo, o sofrimento, a ordem dos seres, o poeta percorre

 

[…] como estranhas larvas a forma patética dos astros

A tudo assistindo e tudo ouvindo e tudo guardando eternamente.

 

 

Nesse citado poema de inspiração, ao lado do processo interior de criação da poesia, o que nos interessa sobretudo na confirmação da constante que vimos acentuando, é a afirmação do desencantamento. Ora, desencantar é tirar as coisas das formas que escondem sua realidade. Fazer reviver a forma primitiva, o que se escondia no encantamento. Se criar poesia é desencantar, é também usar de forças mágicas para essa criação, de que só é capaz o mesmo poeta, mago e armado de sua beleza, pelo destino servindo à divindade e pelas origens íntimo de seus pensamentos. É a ideia que se desdobra deste fim de poema:

 

Eu me levantei — nos meus dedos os sentidos vivendo, na minha mão um objeto como uma lâmina

E às cegas eu feri o papel como o seio, enquanto o meu olhar hauria o seio como o lírio.

 

O poema desencantado nascia das sombras de Deus…

 

Não sei, na poesia, de quem tenha querido dar tão firmemente essa origem à sua arte e por ela explicar a maneira de ser de seus poemas. E esse é o pensamento que vem do O caminho para a distância, onde já a alma do poeta “é uma parcela do infinito distante”, e se encontra presa “eternamente pelos extremos intangíveis”, e continua agora até em epígrafes, como esta de Baudelaire:

 

Jai plus de souvenirs que si javais mille ans.

 

Seja como se interrogou, técnica suprarrealista, seja centelha que traz no espírito para desejá-la, seja disciplina de sensibilidade para atingi-la, o que é fato é que o autor o que quer é fazer uma poesia que se desenrole nos planos altos das causas primeiras, superior à miséria do tempo, existindo um mundo de formas fugidias e rápidas, mas guardando a “matéria” da beleza, da grande beleza que vive à sombra de Deus, que permite desencantar os poemas.

Penso que Forma e exegese é sobretudo essa poesia. Quando destaco do livro essas duas “constantes” que dão a mais clara inteligência aos seus poemas, é porque justamente vejo nelas o quadro mais seguro da compreensão do autor. Assim creio. O sentido real da obra do sr. Vinicius de Moraes está naquele período de Carlyle. (Apedrejar-me-ão por citá-lo?) É para o autor de Forma e exegese uma necessidade viver na intimidade mesma das coisas. E isso prova, realmente, que se trata de um poeta de grande fibra, dos que trazem a marca dos altos destinos.

Não cremos, apesar de certas dúvidas, que ele tenha querido filiar-se a quaisquer correntes modernistas. Uma poesia próxima do estado de sonho, que lembra a linguagem simbólica dos autistas, certo hermetismo em muitas composições, um modo de tomar a realidade em pedaços, como se esfarrapando à nossa compreensão, provém, no autor, menos de um propósito de técnica modernista, de um modo suprarrealista de “desencantar” a poesia do que, propriamente, da necessidade de colar sua forma poética muito perto da ideia poética que quer expressar, numa espécie de decalque do processo verbal ao processo imaginativo de sua poesia.

Os poetas que enchem as epígrafes, velho satanismo de Baudelaire, proclamada visão de Rimbaud, mística católica de Claudel, neossimbolismo de Valéry,3 indicam menos uma filiação do que um simples parentesco de métodos de alma para a descoberta da beleza da poesia. E, ao citá-los, convém que se afirme não temo de achar que o sr. Vinicius de Moraes está muito bem em tal alta companhia. Possui, como aqueles, esse tom do divino que Platão encontra na poesia e que somente distingue de qualquer outro conhecimento o conhecimento poético. Essa faculdade de estar em contato com Deus, de ver de dentro dele a ele mesmo, ao divino e ao mundo.

Aliás, quem sabe da natureza do poeta? Não será mesmo que a sua origem provém daquele estranho épico tropismo das estrelas pelos ventres nus das amadas nos longos campos noturnos? Pois assim penso, só quem um dia viveu

 

[…] o inconsciente das idades nos braços palpitantes dos ciclones

 

pode ter, como o sr. Vinicius de Moraes, essa força de alma, luz de olhos, veludo de sentidos para buscar nas “essências” a beleza da “poesia eterna” e dos segredos das origens que prodigamente nos dá em Forma e exegese.

 

 

 

 


* Publicado em O Jornal, 23 de agosto de 1936.

 

1 O autor cita o subtítulo do poema “Os malditos”. (n. e.)

2 Idem.

3 Não há epígrafe de Valéry. Talvez o autor quisesse se referir ao simbolismo de Mallarmé. (n. e.)