Posfácio

Charlotte Galves (UNICAMP – CNPq)

Na tese em que dá a conhecer os textos que são o objeto deste livro, Klebson Oliveira escreve:

De fato, por razões históricas, dir-se-á, mas só a princípio, que um dos méritos do corpus constituído é consentir aproximações do que teria sido o português popular do passado, porque, como diz Mattos e Silva (2001a e 2002a), foram os africanos e afro-descendentes os seus mais prováveis usuários, contudo já se fizeram insinuações para dizer que o corpus, talvez, também espelhe variedades do português culto. De todo modo, diz-se que afirmações desse tipo, qualquer uma delas, só podem ser comprovadas quando uma edição como a que se apresentará cumpre o seu objetivo primeiro, ou seja, que seja estudada, no que toca à língua ali presente, por outros que, como disse Castro (1996, p. 136-137), se desviem pelos mesmos caminhos. (OLIVEIRA, 2006, p. 214-215) [grifo meu, CG]

Os capítulos que precedem este Posfácio constituem uma primeira resposta ao desafio lançado por Oliveira. “Desviando-se pelo mesmo caminho,” eles destrincham, descrevem e analisam em detalhe parte do corpus por ele editado: os documentos (em grande maioria atas, e doravante chamados Atas) escritos por aqueles que ele identificou como africanos, ou seja, aqueles que, nascidos na África e vindos de lá como escravos, conseguiram alforria no Brasil e, além de aprenderem o português para se comunicarem no dia-a-dia, se dedicaram à tarefa de escrever, em português, os textos relativos ao funcionamento da Irmandade que eles fundaram.

Frente ao mapa traçado pelos diversos caminhos trilhados pelos autores deste livro, podemos agora confirmar a veracidade das hipóteses e ‘insinuações’ levantadas, antes que fossem analisados, na sua complexidade, os documentos estudados aqui. Estamos, de fato, em frente de testemunhos do português popular do passado, bem próximo do português popular de muitos outros documentos, passados e presentes. Mas é verdade que os mesmos textos espelham ‘variedades do português culto’.

Esta dupla face é, a meu ver, o legado maior desses documentos, porque eles apontam para uma dupla competência, adquirida em situações diferentes e com objetivos distintos. Uma diz respeito à oralidade quotidiana e encerra nela a questão das origens do português brasileiro (PB) coloquial moderno. A outra deriva da capacidade dos seis autores do corpus em análise de se apropriarem da língua culta do discurso das Atas. O que surpreende o leitor moderno é a co-existência, nos mesmos textos, desses dois níveis lingüísticos distintos e – se pensarmos em termos normativos – antagônicos. Mas certamente a norma não é uma questão para os nossos falantes/escritores africanos, recém-saídos da escravidão, na Bahia oitocentista. A questão para eles é constituir a língua num real instrumento de comunicação. E, sem dúvida, o fazem com eficiência.

Neste Posfácio, entendido como ponto de fechamento, mas também, se bem sucedido, como um ponto de abertura, queria, com base nos capítulos que o precedem, problematizar essa dupla competência instanciada nas Atas e, tomando essa questão como base, articular minha reflexão em torno de dois temas:

(i) a questão das origens do PB, uma vez que estamos frente à escrita de uma comunidade que é uma das formadoras da variante brasileira: a africana;

(ii) a natureza do sujeito nulo, focalizando a forte ambigüidade gramatical que o caracteriza, como reveladora da instabilidade criada pela sobreposição das competências lingüísticas encerradas nos textos em análise.

1. A dupla competência lingüística subjacente às Atas

Os documentos estudados neste livro fogem às expectativas comuns sobre a produção escrita. Encontra-se, com efeito, neles o que nos aparece como uma contradição. Por um lado, como enfatizado em vários capítulos, a sintaxe das Atas é perfeitamente condizente com a sintaxe portuguesa padrão da época. Encontramos uma colocação de clíticos clássica (Capítulo 5), uma sintaxe de regência quase impecável, do ponto de vista da norma (cf. Capítulo 3 – voltaremos, porém, a esse ponto na Seção 2 abaixo), construções hoje obsoletas na língua corrente, como a expressão do passivo com o pronome se (Capítulo 4), um uso do sujeito nulo bem mais próximo do português clássico do que do português brasileiro do século XXI (Capítulo 2) e, enfim, períodos complexos, contendo orações subordinadas completivas, adjuntas e relativas variadas e também, em sua grande maioria, compatíveis com o padrão normativo da época (Capítulos 6 e 7). Por outro lado, observamos, em alguns aspectos, um desempenho profundamente desviante em relação a esse padrão. Nessa categoria se encontram os fenômenos relativos à concordância, tanto nominal quanto verbal (Capítulos 8 e 9), fenômenos esses que têm sido relacionados ao processo de crioulização ou semi-crioulização (cf. COELHO, 1880-1886; GUY, 1981; BAXTER & LUCCHESI, 1999) ou, de um ponto de vista de uma teoria mais ampla do contato lingüístico, à transmissão irregular (LUCCHESI, 2002) ou aprendizagem imperfeita (KROCH, 2001). Convivem, assim, nas Atas, um domínio da norma quase sem falhas, quando consideramos certos aspectos da sintaxe, e um desvio reiterado dessa mesma norma, quando se trata de concordância nominal e verbal.

A contradição só se desfaz se assumirmos que temos duas dimensões autônomas, que são fruto de duas aprendizagens independentes. A aprendizagem do vernáculo popular, usado na vida quotidiana, e a aprendizagem de uma sintaxe escrita convencional. Dessas aprendizagens diferentes, emergem duas competências distintas, mas não antagônicas, no ato da escrita das Atas, já que, ao que parece, não constituem um objeto regido pela norma gramatical vigente nos textos ‘cultos’. Sua eficiência não se mede pela obediência a uma norma gramatical, mas pelo preenchimento de funções pragmáticas essenciais ao bom funcionamento e à preservação da Irmandade.

2. A questão das origens do pb: o papel das línguas Africanas

Na citação que abre este Posfácio, Oliveira discute a relevância do corpus por ele editado para os estudos históricos do português brasileiro. O que será que esse corpus nos diz sobre as origens do PB? Essa é uma questão em filigrana em todos os estudos reunidos aqui. Os autores dos textos analisados neste livro são africanos. Eles são, portanto, com toda certeza, falantes nativos de outras línguas que não o português, e falantes de português como segunda língua. Como diz Oliveira: “Os documentos saídos de mãos africanas, talvez, possam permitir aproximações das variedades do português falado como segunda língua” (op. cit., p. 214). Podemos acrescentar … o português falado como segunda língua por africanos … o que nos leva à indagação sobre a influência que essas línguas africanas possam ter tido no desenvolvimento de uma nova variante do português em terras brasileiras.

Como enfatizado acima, grande parte dos estudos reunidos aqui declaram uma certa impossibilidade em detectar nos textos o germe das características sintáticas do PB moderno. No domínio da sintaxe, só um tópico permite estabelecer, sem dúvida, essa filiação: é a concordância, nominal e verbal (cf. Capítulos 8 e 9), tão reiteradamente apontada como sendo a assinatura do contato, e dos seus efeitos mais drásticos, como a crioulização. Um outro aspecto, mais dificilmente apreensível pelo seu caráter ambíguo, nos traz alguma informação: o uso do sujeito nulo e do pronome se (Capítulos 2 e 4).

Depois dos Capítulos 8 e 9, pouco resta a dizer sobre a questão da concordância, senão, talvez, que uma abordagem sintática da concordância nominal – explicitamente deixada de lado no Capítulo 8 – ressaltaria ainda mais o fenômeno da ausência de concordância explícita. Não fiz nenhuma quantificação a esse respeito, mas me parece que são pouquíssimos os sintagmas nominais em que a marca de concordância apareça em todos os constituintes. Ou seja, os africanos dominam mais a morfologia da concordância (75% das palavras plurais são pluralizadas) do que a sintaxe da concordância.

Retomarei, na próxima seção, a questão dos sujeitos nulos. Queria agora apontar para um dos fenômenos discutido no Capítulo 3: a expressão do dativo. Os autores enfatizam dois aspectos dessa expressão, a predominância da preposição a sobre a preposição para e a quase ausência de construções de duplo dativo, presentes em certos dialetos brasileiros, como o dialeto da Zona da Mata (SCHERR, 1996) e o dialeto de Helvécia (BAXTER & LUCCHESI, 1996). Eles apontam um único caso dessa construção:

(1) em uertude de dar Compimento o pogetos oferecidos a deuocaõ… (MC, 01, 21.10.1834)

Note-se que, nesta mesma frase, o complemento de oferecidos, verbo que subcategoriza um argumento dativo, aparece numa forma que pode ser interpretada como uma forma não dativa. Como discutido pelos autores do capítulo, a ausência de crase torna ambígua as ocorrências em que o complemento é feminino. Se fossem computadas essas ocorrências como realização de dativos sem preposição, talvez pudéssemos considerar que a construção de duplo objeto é de fato presente nos textos de maneira bastante robusta. Observemos, por exemplo, a frase sublinhada no seguinte trecho:

(2) Fca para de cutir o Requiremento seguuin<te> / do Vizitador Joze Fernandez do Ó / do Vis Porvedor Manoel da Comceiçam, / do Fcal queAprezentor a Meza oprogeto / Com 5 Atigo <Sahio Nolo> estar Comfoner para / 1a Domingos do Mez Manoel Victo / Secretário (MVS, 07, 14.06.1835)

Dois outros dados não ambíguos merecem menção:

(3) ejuntamente na 1a. Reuniaõ aprezentar Ø qual quer hum Irmão a Sua Instruçaõ ou tabella deRejime (JFO, 02, 01.11.1835)

(4) fica multado aqual quer Mezários quefalte assistencia de Meza Mensaes pagaraõ de cada falta servindo esse dinheiro para os mulimentos eu tencilios para devocaõ social. (LTG, 08, 02.02.1833)

Se interpreto adequadamente a primeira frase, qualquer hum irmão é o complemento dativo de apresentar, sem preposição. Na segunda, a preposição a parece introduzir o argumento interno do particípio passado multado. Essa correlação entre ausência de preposição introduzindo os complementos dativos e uso da preposição a para introduzir os complementos diretos é também uma das características sintáticas observadas em documentos que integram o acervo do Arquivo Caculo Cacahenda1, também escritos por africanos, porém na África – mais exatamente, em Angola –, e editados recentemente num volume que integra a série intitulada Africae Monumenta: a apropriação da escrita pelos africanos (cf. TAVARES & MADEIRA, 2002). A comparação entre os dois corpora se impõe. Muda o lugar e muda possivelmente a língua materna – de um lado, quicongo e quimbundo2, do outro lado, não sabemos, ao certo, se do grupo banto, ou de uma família aparentada ou não. Mas há muitas semelhanças. Os documentos escritos em Angola são, em grande maioria, de natureza jurídico-administrativa, o que acrescenta um forte elemento de semelhança. Em relação à regência verbal, encontramos as seguintes construções (os exemplos datam, respectivamente, de 1850 e 1846):

(5) ficando os Reos responcaves de pagarem o Aucttor, a quantia de vinti e seis mil duzentos e sincoenta (op. cit., p. 153)

(6) tendo tambem Captivado a Sebastião Amazengo (op. cit., p. 142)

Em (5), o complemento dativo de pagar, o Aucttor, aparece sem a preposição a. Em (6), o objeto direto Sebastião Amazengo é introduzido pela preposição a3.

Essa variação na marcação dos argumentos é também um traço do português africano moderno (cf. GONÇALVES, 2004 e GONÇALVES & CHIMBUNTANE, 2004, para o português falado como segunda língua em Moçambique) e está relacionada com o fenômeno do duplo objeto, também típico do português africano e, como já mencionado, presente em certos dialetos brasileiros, bem como o uso do clítico lhe como complemento de objeto direto, também presente em alguns dialetos brasileiros.

O uso das preposições em geral é, aliás, um dos aspectos do português brasileiro mais susceptível de ter sido influenciado pelo contato com línguas faladas pelos africanos no Brasil. Os estudos que precedem este Posfácio não tratam explicitamente dessa questão, a não ser a respeito das orações relativas (Capítulo 6), que apresentam um único caso de uso desviante de preposição nas construções de pied-piping, em que a preposição em é usada no lugar da preposição de:

(7) Comparecerem em hum estraordinario para o Comprimento dos desvalido em que estamos em Caregado (JFO, 02, 13.11. 1836)

Numa rápida busca a outros usos da preposição em no corpus, achei o seguinte dado:

(8) eseguio-se os trabalhos efica aguiados para na / Dominga 13 doCorrente a Ver nova Reuniaõ para setratar / da Festa emais as Contas da 4a e 5a Lotaria (MSR, 13, 06.09.1835)

O que chama atenção nesse dado é o uso concomitante de para e de em. Esse fenômeno é raro, uma vez que só se encontra uma vez no conjunto das Atas. Mas ele faz eco ao que se encontra nas produções de moçambicanos falando português como segunda língua, nos nossos dias, como ilustrado no exemplo a seguir (cf. GONÇALVES & CHIMBUTANE, 2004, p. 9):

(9) voltou para no Maputo

No seu artigo, Gonçalves e Chimbuntane (2004) estudam a expressão do locativo. Eles explicam que, nas línguas banto, o locativo não é expresso por preposição, mas por um afixo no nome. Os sintagmas locativos são, portanto, nominais e não preposicionais. Isso explica a co-ocorrência de em, reanalisado como afixo nominal, com a preposição para, que indica a direção. Na frase de Manuel do Sacramento e Conceição Rosa, as preposições em e para não têm valor locativo, mas temporal, porém a mesma análise pode explicar a mesma co-ocorrência, se em é analisado pelo autor como um afixo no sintagma nominal a dominga, e não como uma preposição.

Podemos indagar o porquê da raridade desse fenômeno no corpus em análise4. Vejo dois. Primeiro, a raridade da expressão da direcionalidade. Uma rápida busca mostra que as ocorrências de para são exclusivamente temporais e finais. Nas Atas, não se fala de lugares aonde se vai, só se fala de lugares em que se realizam atividades. Segundo, é importante notar que a co-existência de duas preposições locativas não se manteve no português brasileiro. Parece ser uma característica do português falado como segunda língua por africanos, que não se implantou no português falado como língua materna no Brasil, pelo menos nos dialetos de que temos notícia. A sua raridade nas Atas pode então decorrer também da competência dos falantes. Apesar de não terem nascido no Brasil, tudo leva a pensar que são fluentes em português e que sua ‘interlíngua’ já não comporta, ou pouco comporta, esse tipo de construções. Dito de outra maneira, como enfatizado por vários autores dos ensaios apresentados neste livro, e retomando os termos de Baxter e Lucchesi (1999), os redatores das Atas já não estão na fase inicial da aprendizagem do português. Isso é coerente com a sua capacidade de aprender um registro diferenciado e não é absolutamente contraditório com a sua sintaxe variável de concordância, uma vez que esta, como mostrado nos Capítulos 8 e 9, se aproxima bastante daquela que encontramos hoje em dia no português popular5.

As Atas constituem assim um elemento valiosíssimo na reconstituição do puzzle das origens africanas do PB, ao trazerem mais uma peça da convergência entre português popular de um lado, e português falado e escrito por africanos, no Brasil e na África. Com mais segurança podemos, ao sair deste livro, afirmar com Mattos e Silva (2004) e com Lobo e Oliveira (2007) que africanos e afro-descendentes foram “os formatadores” do português popular brasileiro.

Poder-se-ia contra-argumentar que a referida convergência só tem sido mostrada, do lado africano, para o domínio banto. Ora, faltam-nos informações sobre a origem étnica e lingüística dos autores das Atas. A sua ligação com a Revolta dos Malês (cf. Oliveira, 2003) os situaria mais no grupo de africanos oriundos de regiões – falantes de línguas de outras famílias – em que se expandiu a religião muçulmana. É, aliás, possível que sua alfabetização inicial tenha sido em árabe. Nos primórdios de uma moderna lingüística comparativa afro-brasileira, os estudos tem se concentrado essencialmente no domínio banto, seja porque os dados do português falado, ou escrito, na África, são de falantes de línguas maternas dessa família, seja porque é prioritariamente com essa família – que tem uma tradição de descrição e análise lingüísticas muito forte – que se têm lançado as bases de uma lingüística contrastiva português/línguas africanas. É claro que ainda há muito que fazer, tanto no sentido de aprofundar a lingüística contrastiva línguas banto/português, quanto no de estender os estudos a outros domínios lingüísticos africanos6. Mas seja qual for a língua materna dos fundadores da Irmandade, encontramos, nas suas produções escritas, vestígios de fenômenos já repertoriados em outras produções de africanos falando o português como língua segunda, e fenômenos presentes no português brasileiro moderno. Uma possível explicação para isso, independentemente das suas línguas maternas, é que eles teriam encontrado na Salvador da primeira metade do século XIX um português popular já amplamente moldado pela presença das línguas africanas – em particular as da família banto –, que eles vão contribuir a reforçar e a transmitir às gerações seguintes, já brasileiras.

Na última parte deste Posfácio, queria focalizar um dos fenômenos do português brasileiro mais discutidos, sob diversos pontos de vista e diversos quadros teóricos, o fenômeno do sujeito nulo. Dado que a sua análise envolve forçosamente uma abstração maior, por se tratar de categoria ‘vazia’, sem realização lexical, esse tópico nos permitirá retomar a questão da competência dos autores africanos das Atas.

3. O sujeito nulo das Atas: ambigüidade da referência e da sintaxe

Este livro testemunha bem a centralidade da questão do sujeito nulo nos estudos sintáticos do português brasileiro: dos dez ensaios reunidos aqui, quatro, de alguma maneira, tratam do assunto. São eles o Capítulo 2 sobre o sujeito, o 1 sobre o tópico, o 4 sobre o apagamento de se, e, em menor grau, 9 sobre a concordância sujeito-verbo. Não se podia fechar o livro sem voltar a esse assunto.

Em primeiro lugar, chama a atenção a alta freqüência de sujeitos não realizados nas Atas: entre 68% e 93%, conforme as pessoas; 69% e 100%, conforme o contexto sintático, e 71% e 97%, conforme o caráter mais ou menos formular dos enunciados (cf. Capítulo 2). Esse último número chama particularmente a atenção, porque isto significa que, nas partes em que o discurso está menos preso ao linguajar jurídico representativo desse tipo de textos, o pronome só é usado em 3% das ocorrências, duas em número absoluto. Surge uma outra questão: qual seria a razão da maior freqüência de pronomes nos trechos formulares? Parece-me que a resposta está nos fechamentos das Atas, em que os pronomes de primeira pessoa, eu e nós, são de fato focalizados, inclusive pela presença da conjunção que, como se pode verificar no seguinte exemplo e em tantos outros nas Atas:

(10) Eu que esta subscrevi (MSR, 09, 05.07.1835).

Observe-se que, neste contexto, o pronome não poderia ser apagado. Portanto, não há variação possível. Na ausência de que, não é tão claro, mas podemos afirmar que a primeira pessoa recebe geralmente uma ênfase ou um contraste pouco compatível com o sujeito nulo, como se vê no exemplo a seguir:7

(11) mandou o Provedor lavra es|te termo eeu Como Secretario ofis cv eSu|bré escrevi, etc. [JFO, 05, 10.07.1936].

O segundo aspecto do sujeito nulo que merece destaque é a questão da sua interpretação. O que está em jogo é a natureza da categoria vazia. Será a do português europeu, legitimada e identificada pela flexão verbal rica, ou a do português brasileiro moderno, língua de flexão mais pobre, já que perdeu a forma de 2a pessoa e tem tendência a substituir a 1a pessoa do plural pela forma pronominal a gente, além da tendência mais ou menos forte, conforme os dialetos, a não realizar a flexão de 3a pessoa do plural? A convivência de dois registros no discurso das Atas tem como corolário um comportamento que pode ser caracterizado como misto no que diz respeito ao uso dos pronomes e à morfologia verbal. Por um lado, a primeira pessoa do plural – seja com o pronome nós ou com sujeito nulo, é muito presente nos textos quando se trata de fazer referencia à Irmandade, e não é nenhuma vez substituída por a gente. Isso aponta para uma língua de morfologia rica. Por outro lado, quando o sujeito é anteposto, não há concordância do verbo em 22% dos casos, e, em 29%, quando o sujeito é posposto. Isso aponta para uma língua de morfologia pobre. O que dizer então do sujeito nulo? O Capítulo 1 sugere que a sua interpretação depende do tópico e que estaríamos já frente a uma língua não de sujeito nulo, como o italiano, mas de tópico nulo, como o chinês. Condizente com essa interpretação é o fato de os textos apresentarem também objetos nulos, típicos desse tipo de línguas (a freqüência de objetos nulos com valor anafórico ou dêitico também é apresentada e discutida no Capítulo 3). No caso do português, as coisas são de fato mais complicadas, já que o próprio português europeu é uma língua de objeto nulo, apesar de este sofrer restrições maiores do que em PB, como mencionado no Capítulo 3 (cf. também RAPOSO 1986 & GALVES, 1989).

Um dos argumentos apresentados para sustentar que o sujeito nulo das Atas é legitimado por um tópico nulo se encontra nas construções de natureza formular, exemplificadas pela oração sublinhada do seguinte excerto:

(12) Aos deis dia domes de Julho de1842 estando prezente o Pro– / vedor emais Mezarios fes-se aReuniaõ do Costume eficou adi– / ado, o andamento do Comprimissó Sendo descutido pello an– / ticipado de Capitulo a Capitulo, ejuntamente aopiniaõ /da aprezentaçaõ do Irmaõ Ex-cecretario Marco Jozé do Ro– /zario, pello Capi tulo apontado pello no Seu memo Reque / rimento epor esta Comforme mandou passar este pormim, / em falta do Secretario – Jozé Fernandes do Ó (JFO, 11, 10.07.1842)

O sujeito nulo do verbo mandar receberia sua interpretação de um tópico nulo que, por sua vez, acharia sua referência, no contexto: o Provedor. Concordo com essa possibilidade, mas é preciso ressaltar que a mesma interpretação seria disponível numa língua na qual é a morfologia verbal que legitima o sujeito nulo, o contexto favorecendo a interpretação de que quem mandou foi quem tem autoridade para isso. Nos documentos editados por Ximenes (2006), até onde pude verificar, o sujeito de mandar é sempre explicitado, apresentando uma variação pouco diversificada em torno do seguinte modelo8:

(13) Deque paraconstar mandou dito ministro fazer este auto (op. cit., p. 88, l. 191-192)

Um estudo mais aprofundado se impõe para comparar as diversas realizações brasileiras e portuguesas desse tipo de fórmulas. No estado atual do nosso conhecimento sobre o assunto, a presença do sujeito nulo nas Atas dos africanos pode tanto ser interpretada em consonância com a alta freqüência de sujeitos nulos nos textos, ou seja, como um sujeito nulo pronominal do português europeu, quanto no sentido da análise proposta no Capítulo 1. Estamos, de fato, diante de uma grande ambigüidade, favorecida pela coexistência dos dois registros. Note-se que uma outra interpretação ainda é possível, perfeitamente compatível com a proposta do Capítulo 1 de que se trata de uma língua em que o sujeito nulo é identificado pelo tópico, já que o elemento de concordância verbal é fraco (a esse respeito, cf. também GALVES, 1987). Seria a atribuição de uma referência indeterminada ao sujeito de mandar, equivalente a mandou-se. Essa interpretação é proposta no Capítulo 4, que estuda a omissão do pronome se nas Atas. Mas vale observar que um dos enunciados citados nesse capítulo como tendo omissão de se podia também ser interpretado com uma referência definida, no caso de 1a pessoa do singular (‘mandou … que este eu fizesse’):

(14) mandou o Prezidente e mais Membro da Junta que este ø fizese (MSR, 01, 23.02.1834)

Essa interpretação é favorecida pela continuação do fechamento da Ata:

(15) e para Constar mandou o Prezidente e mais / Membro da Junta que este fizese e asig ase / Como – Escrivam da Junta (MSR, 01, 23.02.1834)

Também a posição pré-verbal do objeto não é um argumento definitivo para atribuir a essas orações um se apagado, uma vez que encontramos a mesma ordem com o verbo na primeira pessoa do singular:

(16) epor estar / mos Com for me mandou a Junta que se Lavrase / este Termo Como Sacratário que este fiz e a signei (MSR, 08, 08.02.1835)

Exemplos como (17), por outro lado, fazem fortemente pender a balança na direção do português brasileiro moderno. Nesse caso, parece não haver dúvida de que se trata de um sujeito nulo indeterminado, que, num caso, até co-ocorre com se na oração coordenada9:

(17) Aos 2 dias do Mes de Outubro estando o Proved[or] emais me– / zarios estando em Corpo de Meza fes o inventario naforma / da lei, e Seachou tudo Com forme o estabalicimento do Nossós / Estatuto (JFO, 12, 02.10.1842)

Para concluir, podemos dizer que, enquanto em outros aspectos da sintaxe, o desempenho lingüístico dos autores das Atas parece ser relacionado de maneira exclusiva à gramática do vernáculo ou à gramática padrão, o sujeito nulo se apresenta como muito ambíguo em relação à gramática que o produz. Ou seja, a dualidade de gramáticas que observamos quando contrapomos, por exemplo, a colocação de clíticos e a concordância nominal, se manifesta no interior da sintaxe do sujeito nulo, deixando a impressão de que os redatores operam com as duas gramáticas ao mesmo tempo.

À guisa de conclusão … ou de introdução

Saímos deste livro sabendo mais, e perguntando mais.

Sabemos mais, porque tivemos acesso, pela primeira vez, a um riquíssimo produto da aprendizagem do português como segunda língua por africanos, na Bahia do século XIX. Perguntamos mais, porque os caminhos traçados aqui traçam naturalmente caminhos futuros a serem seguidos com novos documentos. Desempenhando o papel de advocatus diaboli, sugeri algumas problematizações.

Dos dez capítulos do livro, só o último, dedicado à variação ter/haver, enveredou já pelas Atas escritas pelos brasileiros que fizeram ofício de escrivães na SPD. A expectativa agora é grande de que todas as análises propostas aqui sejam aplicadas à escrita dos que vieram depois na SPD, já nascidos em terra brasileira, e que, por hipótese, já têm o português como língua materna. Dessa comparação, deverá surgir mais compreensão do que faz a especificidade dos documentos dos africanos, e, por sua vez, eles nos permitirão entender melhor a escrita e a fala dos seus descendentes.

Neste Posfácio, sugeri outros contrapontos, que devem compor, com as Atas dos africanos e dos brasileiros e com outros tantos documentos a serem descobertos ainda (ou redescobertos), um imenso e diversificado conjunto de dados, cuja análise comparativa nos fornecerá, com certeza, muitas chaves para a história da constituição do português brasileiro, bem como, de modo mais geral, para a teoria do contato lingüístico.

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