Sozinhos na Luz

Telefonei à minha mãe nesse mesmo dia. Ela era uma romântica, pouco preocupada com as normas tradicionais, mas muito preocupada com a felicidade dos filhos. Achou graça ao meu deslumbramento, quis saber se ele estava tão apaixonado como eu e concordou que eu ficasse. Ia contar uma versão diferente ao meu protetor e um pouco ciumento pai, algo como eu ter encontrado amigas da faculdade. Quando eu regressasse, contávamos-lhe a verdade.

Os dias que se seguiram ainda foram melhores. Fomos a uma praia secreta em Sagres e ficámos na Luz, num guarda-sol que comprei ao pé do café Estibordo e dava sombra à justa para os dois. As noites também foram cada vez mais maravilhosas. Às vezes, acordava de madrugada, aconchegava-me nele e lutava contra o sono só para o sentir a dormir ao meu lado.

Seis dias depois de estarmos a «morar juntos», como seria de esperar e porque não há rosas sem espinhos, tivemos a nossa primeira discussão e eu perdi.

Não tive hipótese senão ir a um jantar que os avós dele iam organizar. Supliquei durante uma hora para ficar em casa a ler, até perceber que a insistência dele tinha um motivo estranho à Ricardo e que ele não iria desistir enquanto não me convencesse. No seu entender, as pessoas verem-nos na praia em atitudes íntimas e não estar presente no jantar era muito desprestigiante para mim, era-lhe indiferente que eu não me importasse e preferisse ler, ele importava-se muito.

− Só tu é que pensas assim, Ricardo, tu e a Jane Austen! – Ficou surpreendido com a referência e eu elucidei-o. − Uma escritora inglesa do século dezoito...

− Ótimo, nunca li mas gosto da maneira de pensar dela. Está decidido, então, vens e acabou-se. Obrigado por teres existido, Jane Austen!

Fui, mas senti-me tão à vontade como um pinguim no deserto quando cumprimentei os pais dele, com quem já tinha estado na praia e sabia que deveria tratar por tia Pi e tio Afonso. Conheci amigos dos pais do Ricardo que também deveria tratar por tios e os filhos dos amigos dos pais do Ricardo. Depois do jantar, quando lhe sugeri em surdina que nos poderíamos tratar todos por primos, o Ricardo sorriu com matreirice e apertou-me o rabo discretamente.

− És muito engraçadinha, vê lá se queres que te dê uma palmada igual à que levaste no vólei… – Olhei-o suplicante e abanei a cabeça, pedindo ao universo para ele não me deixar ainda mais envergonhada do que eu já me sentia.

− Não sejas mazinha. Toda a gente me veio dizer que gostou muito de ti, Sofi, és uma indiazinha linda, simpática e cheia de pinta.

Beijou-me entre o canto do olho e a raiz dos cabelos, o sítio onde me passou a beijar em público para sempre. Eu suspirei de alívio, não fui açoitada em frente à sua família e estava a causar boa impressão.

A partir do momento em que percebi que não podia escapar àquele jantar, tinha entrado em pânico com a escolha da indumentária. Só me acalmei quando liguei para a minha mãe e lhe contei o meu drama a hiperventilar.

− Amorzinho da mãe, passa o secador no cabelo, veste o melhor vestido que levaste, não ponhas nenhuns desses teus acessórios alternativos com berloques e está o assunto arrumado.

Fiz o que ela disse, levei o meu vestido em seda azul estampada até aos tornozelos, que me acentuava a cintura fina com uma barra dourada. O Ricardo tinha aprovado mas não me tinha sossegado, era um juiz demasiado parcial.

Fiquei até ele querer, sorri muito, ouvi histórias de viagens bastante enfadonhas, outras nem por isso, e ri-me de todas as piadas. Algumas sem graça absolutamente nenhuma, e outras, como as do Diogo, com muita piada. Não foi muito diferente de outras festas a que já tinha ido, exceto pelo meu estado de nervos e desejo maior do que o habitual de não fazer má figura.

O avô do Ricardo conversou comigo sobre o meu curso e a avó ouviu-nos enquanto esboçava um sorriso delicado. Era uma senhora muito elegante, uma versão loura da Audrey Hepburn. A sua irmã mais nova, a tia Concas, era parecida com ela mas mais roliça e calorosa, pintava quadros nos tempos livres e também gostava de vestuário florido. Simpatizei muito com a tia pintora, contei-lhe que a minha mãe também pintava e costumava expor os seus trabalhos numa galeria em Beja.

Os pais e os avós do Ricardo não estiveram muito comigo, o que era compreensível porque tinham de se repartir pelos vários convidados, ou então porque não quiseram imprimir seriedade à nossa relação recente e fora do seu círculo de amizades. Não fiquei muito contrariada com a falta de atenção, pelo menos a tia Concas tinha gostado de mim e, muito mais importante, o Ricardo veio comigo para casa e trouxe-me o pequeno-almoço à cama na manhã seguinte.

Três dias depois do jantar em casa dele, caminhava em direção à praia com um sorriso pateta nos lábios. O Ricardo tinha saído de minha casa cedo porque a mãe lhe tinha pedido para tomarem o pequeno-almoço juntos. Depois disso dormi mais uma hora, comi torradas na varanda e liguei à minha mãe a confirmar-lhe que continuava muito feliz.

Quando passei no Papaia, o café do qual não tinha boas recordações porque foi onde conheci a Benedita, ouvi o meu nome. Virei-me e vi uma amiga do Ricardo, a Mitá Vasconcelos.

A tia Pi tinha-lhe pedido para me chamar porque queria falar comigo.

Fui ter com a tia Pi com taquicardia e a imaginar uma daquelas cenas como nos filmes, em que o progenitor rico dá um cheque ao pretendente indesejável para ele desaparecer da vida do filho. Descartei rapidamente a ideia, eu não era assim tão indesejável e ela não se atreveria a fazê-lo num café cheio gente.

A tia Pi estava com uma amiga que se despediu para ir para a praia. Sentei-me à sua frente e fomos alvo de bastantes olhares. Ela nem deve ter reparado, era uma mulher vistosa, com cabelos louros volumosos, óculos Chanel estrela de cinema e túnica esvoaçante. Parecia uma diva e devia estar habituada a ser o centro das atenções.

Felizmente, a mãe do Ricardo não era de grandes rodeios e não precisei de esperar muito tempo para saber o que queria falar comigo.

− A menina tem de trazer as suas coisas para o nosso toldo, senão eu não estou tempo nenhum com o meu filho. Não tarda ele vai para Barcelona e eu vou ficar cheia de saudades.

A tia Pi adorava o Ricardo e adorava estar ao pé dele. Eu sabia partilhar e ela também. Tratou-me sempre bem desde que me conheceu. Era uma mulher inteligente e conhecia o filho, não ia correr o risco de estragar a boa relação que tinham por causa de uma paixoneta de verão.

− Está bem, tia Pi, eu levo as minhas coisas para o seu toldo, obrigada.

Acabou de beber a sua água gaseificada com gelo e limão, fez um floreado com as mãos e um sorriso triunfante muito parecido com o do filho.

− Ótimo, esqueça já hoje esse seu guarda-sol pindérico, deite-o para o lixo ou leve-o para casa e não o traga mais.

Sorri e olhei para o meu guarda-sol verde encostado à mesa, igual a tantos outros espalhados pela praia.

− Porque é que o meu guarda-sol é pindérico, tia Pi?

Ela ficou surpreendida com a minha pergunta e fez um trejeito com os ombros. Dizer ou perguntar tudo o que nos apetece era um jogo que podia ser jogado a dois. A tia Pi reconheceu isso e não me levou a mal.

− Oh menina, sei lá! Não é só o seu que é pindérico, são todos. Põem-se à nossa frente pespegados e tiram-nos a vista de mar, depois com o vento os guarda-sóis voam e é uma chatice. Olhe, ainda no outro dia a tia Concas ia levando com um guarda-sol à beira-mar!

Ri-me divertida com a resposta genuína, mas sobretudo aliviada por ela não me ter chamado para dizer que eu ficava aquém das suas expectativas para o filho.

Continuámos a falar sobre assuntos banais e eu devo ter referido o nome do Ricardo com um sorriso palerma, porque ela gozou-me imediatamente.

− Isto a si também lhe bateu mesmo forte! Francamente, deixe-me que lhe diga, não se aguenta olhar para vocês. Tudo o que é demais faz mal! Nem se aguenta o Ricardo a falar de si…

A tia Pi falava sempre francamente, mesmo quando não precedia as frases com a palavra.

− Sim, tia Pi. A mim também me bateu muito forte.

Bater não me parecia a melhor maneira de caracterizar os meus sentimentos pelo Ricardo, mas optei por usar as mesmas palavras.

− Então, diga-me lá, de um a dez, sendo o um, um namoro sem sal e o dez, a paixão total, quanto é que lhe bateu exatamente?

Pensei em milésimas de segundos.

− Doze.

Ela sorriu com a minha resposta rápida, depois, fez um olhar felino que me lembrou o do Ricardo e cruzou os braços em cima da mesa.

− Tem uma diferença de três pontos do meu filho. Não quer pensar melhor na sua resposta?

O Ricardo tinha dito nove, ele tinha muito mais bom senso do que eu. Nove era uma resposta boa, não fiquei triste nem muito contente, mas não ia voltar atrás.

− De certeza? – Deu-me uma última hipótese, com um olhar inquiridor e benevolente.

Mantive a minha resposta e senti-me corar.

− Está bem. O meu filho disse «quinze» e ganhou-lhe!

Aquela tia Pi era mesmo traiçoeira, uma traiçoeira snobe e engraçada que tinha criado um homem maravilhoso.

− Não ganhou não, quando a variável ultrapassa o limite superior deixa de ser quantificável, doze, quinze ou mil é igual. Ficámos empatados.

Ela fez uma expressão admirada e aceitou os meus argumentos.

− A menina também tem sempre o que dizer, não é verdade?

Fiz um sorriso conciliador que ela retribuiu.

− Gosto disso, eu sou igual. Venha, vamos para a praia.