Casais de antigamente

Dois dias depois, decidi pintar as pernas ferrugentas da mesa da cozinha. A Zubaida quis ajudar-me, mas fartou-se ao fim de meia hora e já tinha ido para casa há algum tempo quando o Alex chegou, mais tarde do que era habitual.

Vinha com um ar cansado, o que também não era habitual. Sentou-se à minha frente e ficou a observar-me enquanto eu terminava a perna que faltava.

Ouvi-o respirar ruidosamente.

– Que calor do caraças esteve hoje! Estou todo lixado! – Até para falar sobre o tempo era bruto, em modo Alex.

Continuei a pincelar enquanto falei.

− Não estiveste no hospital? Até me pareceu fresco lá dentro...

− Não, hoje fui a outro sítio. − Levantei a cabeça instintivamente porque a resposta imprecisa me chamou à atenção. O Alex era... pouco fluído em alguns assuntos, não era nada em concreto, apenas uma falta de espontaneidade e um desconforto vago. Também podia ser uma impressão errada do meu cérebro demasiado pensador.

Ia perguntar-lhe onde tinha ido, mas o que disse a seguir interessou-me bastante mais.

− Já sei a que é que vamos brincar hoje!

Sorri curiosa com a brincadeira e perdoei-lhe ser mais reservado do que eu gostaria, as nossas brincadeiras acabavam sempre muito bem…

− Aos pa... − Ia dizer pais, mas deve ter-se lembrado do meu problema e interrompeu a palavra a tempo − … aos casais de antigamente!

Fitei-o com entusiasmo médio.

− Ai, é? Vamos brincar a isso hoje?

Bateu com as mãos uma na outra com força e depois esfregou-as com uma expressão de contentamento.

− Sim, e começa já a partir de agora! − Encostou-se para trás na cadeira e pôs as mãos atrás da cabeça com os cotovelos para fora, a versão sentada da sua posição de dormir.

− Não me vou levantar mais desta cadeira. Tu, mulher, cozinha depressa qualquer coisa boa para o jantar. Assim que a comida estiver pronta põe-me o prato à frente bem cheio. A seguir, vamos diretos para o quarto, damos uma rapidinha às escuras e tu só podes mexer os olhinhos.

Queria tê-lo repreendido, mas em vez disso ri-me quase até às lágrimas. O Alex fazia-me sempre rir com aquele tipo de disparates, tocavam-me num ponto tão sensível como idiota do meu sentido do humor.

− Lamento, homem de antigamente, mas essa brincadeira não vai dar.

Ele também estava cheio de vontade de rir, vi-o apertar os lábios antes de fazer uma expressão autoritária.

− Porquê? Não me digas que tens medo do escuro?

Abanei a cabeça e fiz-lhe um sorriso malandro, a parte do escuro e de só poder mexer os olhinhos não me tinha incomodado…

− Não é por causa do escuro, é porque não sei cozinhar.

Franziu-me o sobrolho, como se não tivesse acreditado em mim.

− Não pode ser! Então, mas não eras casada e querias ter filhos?

− Sim.

Arregalou-me os olhos e franziu a testa.

− E não sabes cozinhar? Como é que isso é possível? − Abriu os braços com as mãos esticadas, como se a minha incapacidade culinária fosse a explicação óbvia para o fracasso dos meus planos de ter uma família. Irritei-me e deixei de lhe achar graça.

− A sério, Alex? És tão esperto! Se calhar fiz tudo mal, em vez das cinco FIV e da cirurgia ao ovário, devia era ter feito um workshop de culinária!

Revirou-me os olhos e fez uma cara de enjoado.

− Não, isso não! Workshops de culinária são pura paneleirice que não serve para nada. Ias aprender a fazer umas comidas minorcas enfeitadas com merdices, que não tiram a fome e não sabem a nada. Devias era ter aprendido como as pessoas normais, que têm de cozinhar para terem o que comer!

Não lhe respondi e voltei a pincelar a mesa. Até tinha achado alguma graça à história das comidas minorcas, mas não quis que ele percebesse. Fiquei a vê-lo pelo canto do olho, tinha apoiado os cotovelos nos joelhos e olhava-me fixamente, a estudar-me como se eu fosse um espécime raro.

− Mas não sabes mesmo cozinhar nada? Nada de nada? − Parecia estupefacto como se fosse a coisa mais estranha do mundo.

Acabei a minha pintura, fechei a lata da tinta e respondi-lhe com desinteresse.

− Sei fazer ovos mexidos e estrelados, sandes e saladas…

Abanou a cabeça num gesto de desconsolo.

− Eu sabia! Tinha de haver qualquer coisa. Eras boa demais para ser verdade!

Sorri ao ouvir o elogio que ele nem se apercebeu de que tinha feito.

− Não sei cozinhar mas sou boa em bricolage! Olha que bem que ficou a mesa!

Fez um esgar de descrédito na direção do meu trabalho.

− Ah! Boa em bricolage! Espetáculo! Isso dá mesmo jeito a um gajo que passou o dia inteiro a bulir e está todo torcido com fome! – A seguir, baixou a cabeça, tapou a cara e percebi que se estava a rir para dentro. Grande parte do que disse tinha sido a brincar, exceto a parte do desprezo pelas comidas minorcas, aí pareceu-me estar a ser completamente verdadeiro.

Levantei-me, lavei o pincel no lava-louça e tentei recuperar a brincadeira.

− Eu vou num instante buscar comida à Joaquina e ponho-te um prato bem cheio à frente. Vai dar exatamente ao mesmo.

Abanou a cabeça e respondeu-me no tom irritadiço de quando tinha fome.

− Não vais nada. Contigo nunca é um instante, vais ficar a dar conversa à Joaquina e à prima, a perguntar pelo sobrinho, pelo filho do sobrinho, pelo cão, e pelo gato! E eu nem daqui a uma hora estou a comer. Eu vou lá!

Levantou-se a reclamar em surdina para ele próprio. Antes de sair parou na ombreira da porta e olhou para mim, desiludido e triste.

− Era bom demais para ser verdade. Tinhas de ter alguma deficiência.

Atirei-lhe com o pincel lavado, o sacana desviou-se a tempo e depois foi-se embora a rir baixinho.