1. Noções introdutórias

Os acordos parassociais, entre nós regulamentados no artigo 17º do Código das Sociedades Comerciais, desde 1986,1 são contratos celebrados por todos ou por alguns dos sócios de uma sociedade, nessa qualidade,2que visam salvaguardar interesses das partes sobre assuntos respeitantes à vida societária, nas várias relações que se estabelecem entre elas e a sociedade, os órgãos sociais ou terceiros.

Estes acordos são autónomos relativamente ao pacto social, uma vez que vinculam individual e pessoalmente as partes que os celebram, sem afectar a sociedade. Por outro lado, diferem de outros contratos celebrados pelas partes, porque têm, necessariamente, elementos de conexão com a vida societária. Nessa medida, pode dizer-se que os acordos parassociais têm duas características essenciais: “independência, porquanto constituem negócios jurídicos com autonomia própria, regidos por normas que lhes são peculiares, negócios esses que se distinguem do contrato de sociedade mercê da natureza individual e pessoal das obrigações que deles emergem (…); acessoriedade, porque existe uma particular conexão (…) entre o contrato para-social e o pacto social (…)”.3/4

Os acordos parassociais, que podem assumir uma multiplicidade de funções, têm um papel muito relevante na vida das sociedades, já que combatem a rigidez dos estatutos, adaptando-se mais adequadamente às conveniências dos sócios e às necessidades do tráfego mercantil. Estes convénios podem ser celebrados anteriormente ao acto constitutivo, estabelecendo as bases sobre as quais se constituirá uma nova sociedade, ou podem ser celebrados no seu seio, assumindo, nesses casos, diversas funções, que, não sendo possível enumerar, a doutrina actual tendencialmente divide em três grupos. Por um lado, encontramos os acordos que regulam o regime da transmissão e alienação de participações sociais, estabelecendo, muitas vezes, direitos de preferência.5 Por outro lado, temos os acordos que orientam as actividades dos sócios – normalmente acordos de voto – que podem obrigar as partes a uma concertação futura, a um debate prévio à assembleia geral deliberativa ou ao exercício do direito de voto num determinado sentido. Ao estabelecerem determinadas directrizes em conjunto, os sócios procuram, em grande parte das vezes, obter maiorias deliberativas ou proteger sócios minoritários. Por fim, existem os acordos pelos quais os sócios, com vista a conferir estabilidade e unidade à direcção da vida da sociedade, elegem os membros do órgão de administração,6 se obrigam a subscrever aumentos de capital7 ou definem os princípios orientadores da política empresarial a seguir.8 Serão estes últimos acordos, os que visam controlar a gestão da sociedade, que merecerão a nossa maior atenção neste trabalho, dada a duvidosa legalidade que revestem, face ao disposto na segunda parte do nº 2 do artigo 17º do Código das Sociedades Comerciais.

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1 Não obstante só estarem expressamente previstos desde a entrada em vigor do actual Código, os acordos parassociais foram analisados pela primeira vez, em Portugal, por Fernando Galvão Telles, em 1942, já depois de as doutrinas anglo-saxónica, alemã, italiana e francesa se terem dedicado a este assunto. Para uma detalhada evolução história dos acordos parassociais em Portugal e no direito comparado, cfr. BAIRROS, Rita Mafalda Vera-Cruz Pinto, “Os acordos parassociais – breve caracterização”, Revista de Direito das Sociedades, ano II (2010), I-II, pp. 339-345; CORDEIRO, António Menezes, Manual de Direito das Sociedades, I, Coimbra, Almedina, 2004, pp. 566-575; Idem, “Acordos Parassociais”, Revista da Ordem dos Advogados 61º (2001), II, pp. 529-538; CORREIA, Luís Brito, Direito Comercial, III – Deliberações dos Sócios, AAFDL, Lisboa, 1997, pp. 170-172; LEAL, Ana Filipa, “Algumas notas sobre a parassocialidade no Direito português”, Revista de Direito das Sociedades, ano I (2009), II, pp. 135-137; SANTOS, Mário Leite, Contratos parassociais e acordos de voto nas sociedades anónimas, Lisboa, Edições Cosmos, 1996, pp. 83-171; TRIGO, Maria da Graça, Os acordos parassociais sobre o exercício do direito de voto, 2ª ed., Lisboa, Universidade Católica Editora, 2011, pp. 41-130; VENTURA, Raul, Estudos Vários Sobre Sociedades Anónimas, Coimbra, Almedina, 1992, pp. 64-69.

2 Apesar de o art. 17º apenas se referir a “todos ou alguns sócios”, não significa que não possam intervir nos acordos parassociais pessoas estranhas à sociedade. Como podemos observar em SANTOS, Mário Leite, Contratos parassociais e acordos de voto nas sociedades anónimas, Lisboa, Edições Cosmos, 1996, p. 7, os acordos parassociais são “acordos extra-estatutários entre todos ou alguns sócios, entre sócios e terceiros, ou entre sócios e a própria sociedade, sobre assuntos que respeitam à vida desta, ou aos seus específicos interesses enquanto participantes nela”. No mesmo sentido, ABREU, Jorge Manuel Coutinho de, Curso de Direito Comercial, II, 4ª ed., Coimbra, Almedina, 2011, p. 156, n. 151; ASCENSÃO, J. Oliveira, Direito Comercial, IV – Sociedades Comerciais, Parte Geral, Lisboa, 2000, p. 294; CORREIA, Luís Brito, Direito Comercial, III – Deliberações dos Sócios, AAFDL, Lisboa, 1997, p. 167, n. 223; LEAL, Ana Filipa, “Algumas notas sobre a parassocialidade no Direito português”, Revista de Direito das Sociedades, ano I (2009), II, p. 148; TRIGO, Maria da Graça, “Acordos Parassociais – síntese das questões jurídicas mais relevantes”, Problemas do Direito das Sociedades, Instituto do Direito das Empresas e do Trabalho, Coimbra, Almedina, 2003, pp. 173-174; Idem, Os acordos parassociais sobre o exercício do direito de voto, 2ª ed., Lisboa, Universidade Católica Editora, 2011, pp. 141-143. Esta última defende, e bem, que será de aplicar a esses acordos atípicos, por analogia, o artigo 17º do Código das Sociedades Comerciais, porque se este se destina a disciplinar a posição jurídica do sócio e a interferência na vida e organização societárias, também deverá regular outros acordos que tenham o mesmo fim, sob pena de se contornar as proibições nele previstas, bastando para isso introduzir um terceiro estranho à sociedade. Diferentemente, VENTURA, Raul, Estudos Vários Sobre Sociedades Anónimas, Coimbra, Almedina, 1992, p. 13 e “Acordos de Voto: algumas questões depois do Código das Sociedades Comerciais”, O Direito, I-II, 1992, pp. 19-20, defende que os acordos parassociais atípicos não estão sujeitos ao artigo 17º. Contra a validade dos acordos em que intervêm não sócios, cfr. ALMEIDA, António Pereira de, Sociedades Comerciais: completamente reformulado de acordo com o Decreto-Lei nº 76-A/2006 , 4ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2006, p. 294; CUNHA, Paulo Olavo da, Direito das Sociedades Comerciais, 5ª ed., Coimbra, Almedina, 2012, pp. 171-172; e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16.03.1999, processo nº 1274/98, Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, VII (1999), tomo I, pp. 160-163.

3 TELLES, Fernando Galvão, “União de contratos e contratos parasociais”, Revista da Ordem dos Advogados 11º (1951), 1-2, pp. 74-75.

4 Essa conexão manifesta-se em diversos momentos. Para a compreender, bastará atentar-se no facto de, em grande parte das vezes, o acordo parassocial ser a base da constituição de uma nova sociedade ou ter por objecto uma (futura) alteração ao contrato de sociedade.

5 É o que sucede na Cláusula Quinta do Acordo Parassocial apresentado no Anexo A, que estabelece um direito de preferência na transmissão onerosa de participações a favor dos outros outorgantes. Acerca dos acordos parassociais sobre a transmissão e alienação de acções, vide TOMÉ, Maria João, “Algumas notas sobre as restrições contratuais à livre transmissibilidade de acções”, Direito e Justiça, IV (1989-90), pp. 213 e ss. Cfr. ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 13.11.2002, processo nº 660/02, Colectânea de Jurisprudência, XXVII (2002), tomo V, pp. 268-272, e o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 25.10.2001, processo nº 7045/01, Colectânea de Jurisprudência, XXVI (2001), tomo IV, pp. 130-133. Sobre a transmissão de valores mobiliários, em geral, ver, entre outros, VEIGA, Alexandre Brandão da, Transmissão de Valores Mobiliários, Coimbra, Almedina, 2010.

6 Ver a Cláusula Segunda do Acordo Parassocial apresentado no Anexo A.

7 Cfr. a Cláusula Sexta do Acordo Parassocial do Anexo A, em que os contraentes se comprometem a não votar favoravelmente um aumento de capital por entradas em dinheiro superior a 200.000,00 €.

8 Esta divisão é-nos apresentada por CORDEIRO, António Menezes, “Acordos Parassociais”, Revista da Ordem dos Advogados 61º (2001), II, pp. 540-541; Idem, Manual de Direito das Sociedades, I, Coimbra, Almedina, 2004, pp. 580-582; e LEAL, Ana Filipa, “Algumas notas sobre a parassocialidade no Direito português”, Revista de Direito das Sociedades, ano I (2009), II, pp. 142-143. Por sua vez, TRIGO, Maria da Graça, Os acordos parassociais sobre o exercício do direito de voto, 2ª ed., Lisboa, Universidade Católica Editora, 2011, pp. 19-27, opta por dividir os acordos parassociais segundo outros critérios: quanto ao tempo, quanto à identidade das partes e quanto ao conteúdo. Já Fernando Galvão Telles (em “União de contratos e contratos para-sociais”, Revista da Ordem dos Advogados 11º (1951), 1-2, pp. 76-82) e Raul Ventura (em Estudos Vários Sobre Sociedades Anónimas, Coimbra, Almedina, 1992, p. 11), na esteira de Giorgio Oppo (Diritto delle società, II, Padova, Cedam, 1992), optaram por dividir os acordos parassociais, não com base no seu conteúdo, mas de acordo com a incidência que estes têm na sociedade. Assim, poderemos encontrar acordos pelos quais os sócios regulam os direitos que lhes assistem e as obrigações a que se sujeitam, convenções pelas quais os sócios visam obter vantagens para a sociedade e, por fim, pactos que acarretam um prejuízo para aquela.