2. A admissibilidade dos acordos parassociais e as restrições gerais ao seu conteúdo

A regra geral de admissibilidade dos acordos parassociais, vertida no artigo 17º do Código das Sociedades Comerciais, não significa que todos os acordos sejam válidos, nem permite, à partida, estabelecer um critério unitário de avaliação da validade de qualquer acordo parassocial.

Sendo certo que os acordos parassociais podem dispor de forma diferente do previsto na lei e nos estatutos, sendo aliás a obtenção de diferentes efeitos práticos dos que resultariam daquelas fontes que leva as partes a celebrar esse tipo de negócios, o seu conteúdo deverá ser avaliado casuisticamente, à luz de múltiplos critérios, nomeadamente do princípio da boa fé, dos princípios gerais dos contratos, da licitude do objecto e da compatibilidade com as regras legais existentes.9 Assim, atendendo aos artigos 280º, 281º e 294º do Código Civil, os acordos parassociais não poderão violar normas imperativas, mas poderão incluir cláusulas que dispõem diferentemente de outras normas societárias, de carácter tendencialmente supletivo.10 Acresce que, quando uma cláusula de um acordo parassocial colide com uma norma dos estatutos, aquela não pode, à partida, ser considerada nula. O que sucede nestes casos é que existem duas fontes de vinculação contratual incompatíveis, pelo que o sócio terá de optar pelo cumprimento de uma das duas normas, assumindo as consequências do incumprimento da outra.11

Por outro lado, há que verificar se o interesse social se encontra ou não respeitado no acordo parassocial, o que conduzirá, inevitavelmente, o intérprete a questões nebulosas que há anos ocupam a doutrina e em relação às quais deixamos apenas uma breve e genérica referência. De acordo com as teorias contratualistas,12 o interesse social corresponde aos interesses comuns dos sócios enquanto tais, desde que contribuam para o principal fim da sociedade comercial: o escopo lucrativo. Isto é, outros interesses que os sócios possam partilhar, mas que não estejam conexionados com o fim da sociedade, já não poderão contribuir para aquela noção de interesse. Ora, esta perspectiva contratualista de interesse social deverá estar presente quando estão em causa comportamentos dos sócios,13 quer nas deliberações tomadas em assembleia, quer, naturalmente, nos acordos parassociais que celebrem entre si ou com terceiros. Ou seja, os sócios devem ter em conta não os seus próprios interesses individuais, mas os interesses que comungam entre si, cuja reunião constituirá o interesse social. Será este interesse que estará em causa, em certa medida, na proibição da alínea c) do nº 3 do artigo 17º, que iremos agora analisar.

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9 São exemplos de acordos parassociais que constituem fraude à lei os que contornam a proibição do pacto leonino, os que conduzem a deliberações nulas ou anuláveis, os que privam definitivamente o accionista do seu direito de voto, os que impedem a transmissão das participações sociais e os que eliminam o direito do sócio à informação. Ver, neste sentido, ABREU, Jorge Manuel Coutinho de, Curso de Direito Comercial, II, 4ª ed., Coimbra, Almedina, 2011, pp. 158-159; CUNHA, Carolina, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, volume I, Jorge M. Coutinho de Abreu (coord.), Instituto de Direito das Empresas e do Trabalho, Coimbra, Almedina, 2010, p. 307; TRIGO, Maria da Graça, Os acordos parassociais sobre o exercício do direito de voto, 2ª ed., Lisboa, Universidade Católica Editora, 2011, pp. 173-174.

10 Também neste sentido, ver ALMEIDA, António Pereira de, Sociedades Comerciais: completamente reformulado de acordo com o Decreto-Lei nº 76-A/2006 , 4ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2006, p. 296; CUNHA, Paulo Olavo da, Direito das Sociedades Comerciais, 5ª ed., Coimbra, Almedina, 2012, pp. 175-176; LEAL, Ana Filipa, “Algumas notas sobre a parassocialidade no Direito português”, Revista de Direito das Sociedades, ano I (2009), II, p. 156; TELLES, Fernando Galvão, “União de contratos e contratos para-sociais”, Revista da Ordem dos Advogados 11º (1951), 1-2, p. 94; TRIGO, Maria da Graça, “Acordos Parassociais – síntese das questões jurídicas mais relevantes”, Problemas do direito das sociedades, Instituto do Direito das Empresas e do Trabalho, Coimbra, Almedina, 2003, p. 173; Idem, Os acordos parassociais sobre o exercício do direito de voto, 2ª ed., Lisboa, Universidade Católica Editora, 2011, p. 188; VENTURA, Raul, Estudos Vários Sobre Sociedades Anónimas, Coimbra, Almedina, 1992, p. 82.

11 Com uma posição idêntica, cfr. CUNHA, Carolina, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, volume I, Jorge M. Coutinho de Abreu (coord.), Instituto de Direito das Empresas e do Trabalho, Coimbra, Almedina, 2010, p. 313; e LEAL, Ana Filipa, “Algumas notas sobre a parassocialidade no Direito português”, Revista de Direito das Sociedades, ano I (2009), II, pp. 171. Em defesa da prevalência do pacto de sociedade, ver ALMEIDA, António Pereira de, Sociedades Comerciais: completamente reformulado de acordo com o Decreto-Lei nº 76-A/2006 , 4ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2006, p. 296; CUNHA, Paulo Olavo da, Direito das Sociedades Comerciais, 5ª ed., Coimbra, Almedina, 2012, p. 177; SANTOS, Mário Leite, Contratos parassociais e acordos de voto nas sociedades anónimas, Lisboa, Edições Cosmos, 1996, p. 215; e TRIGO, Maria da Graça, “Acordos Parassociais – síntese das questões jurídicas mais relevantes”, Problemas do direito das sociedades, Instituto do Direito das Empresas e do Trabalho, Coimbra, Almedina, 2003, pp. 177-178; Idem, Os acordos parassociais sobre o exercício do direito de voto, 2ª ed., Lisboa, Universidade Católica Editora, 2011, p. 188-189, que, contudo, configura esta situação como um conflito de deveres. Ou seja, considerando que o interesse protegido pelo ordenamento estatutário é superior ao bem ou interesse tutelado pela vinculação parassocial, entende a Autora que o sócio deverá respeitar o pacto, constituindo esse cumprimento causa de exclusão da ilicitude do incumprimento da vinculação parassocial, excepto nos casos em que houver culpa do sócio na contradição. Uma excepção que, como bem se vê, apenas ocorrerá caso a vinculação parassocial seja anterior ao pacto ou à sua modificação posterior. Caso contrário, haverá culpa do sócio na contradição.

12 Às teorias contratualistas opõem-se as teorias institucionalistas de interesse social, que têm em conta não apenas os interesses dos sócios, mas também de terceiros que interagem com a sociedade, nomeadamente trabalhadores e credores. Sobre este tema ver, infra, o ponto 4.2., a propósito da relação entre o interesse social e a proibição de os acordos parassociais incidirem sobre funções de administração.

13 Coutinho de Abreu (“Deveres de cuidado e de lealdade dos administradores e interesse social”, Reformas do Código das Sociedades, Instituto do Direito das Empresas e do Trabalho, Coimbra, Almedina, 2007, pp. 33-34) indica alguns dos preceitos do Código das Sociedades Comerciais que consagram, claramente, uma perspectiva contratualista de interesse: artigo 251º, nº 1 – o sócio está impedido de votar quando se encontra em situação de conflito de interesse com a sociedade; artigo 328º, nº 2, c) – o estatuto pode subordinar a transmissão de acções à existência de determinados requisitos conformes com o interesse social; artigo 329º, nº 1 e 2 – a assembleia pode recusar o consentimento para a transmissão de acções com fundamento no interesse social; artigo 460º, nº 2 – a assembleia que deliberar o aumento de capital pode limitar ou suprimir o direito de preferência dos accionistas, se o interesse social o justificar; artigo 58º, nº 1 b) – são anuláveis as deliberações dos sócios através das quais estes consigam vantagens especiais para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade. Pelo contrário, quando estão em causa comportamentos do órgão de administração, como veremos mais à frente, o legislador parece ter optado por uma perspectiva institucionalista de interesse.