Para além dos limites decorrentes dos princípios gerais aplicáveis a todos os contratos, o Código das Sociedades Comerciais apresenta também, no nº 3 do artigo 17º,14 limites aos chamados acordos de voto.15
Com efeito, proíbe-se, na alínea c), os acordos mediante os quais um sócio se compromete a votar num determinado sentido, em troca de vantagens especiais. Nas palavras de Mário Leite Santos “estamos perante um importante limite à livre utilização pelo sócio dos direitos que lhe advêm da participação social. (…) Os direitos (…) destinam-se a ser exercidos pelos sócios no seu próprio interesse”, mas “o ordenamento não tolera formas indiscriminadas do seu uso”.16 Esta proibição não está, de forma alguma, dependente de um prejuízo para a sociedade. Independentemente desse prejuízo, a alínea c) visa evitar que o sócio, ao invés de exercer o seu direito de voto no seu interesse e, consequentemente, no interesse da actividade comum societária, vote simplesmente para cumprir uma obrigação de que já recebeu contrapartida: a vantagem especial. Essa vantagem especial, que pode ou não ter carácter patrimonial, tem de ter uma ligação com o voto, mas não pode ser uma consequência do seu exercício. Ou seja, se a vantagem que o sócio consegue é uma consequência natural do sentido do voto e da deliberação subsequente, não há qualquer ilicitude. Ilicitude existe se, em troca da obrigação de votar,17 da obrigação de se abster18 ou da obrigação de votar num determinado sentido, um sócio ou um terceiro por si indicado receber uma vantagem especial19 que não receberia, não fora o acordo prévio. Assim, o que a alínea c) pretende condenar é o completo desinteresse do sócio face ao destino societário. Os acordos parassociais existem e são legalmente admitidos, não para os sócios deles retirarem vantagens especiais para si, mas para debaterem o futuro societário e para direccionarem o sentido do seu voto, com vista a orientar a sociedade pelos caminhos que considerem mais convenientes ao interesse comum.
Por outro lado, nas alíneas a) e b), o legislador estabeleceu a nulidade do acordo pelo qual o sócio se compromete a exercer o seu direito de voto seguindo sempre as instruções dos órgãos sociais ou aprovando sempre as propostas feitas por eles. Uma questão que costuma ser levantada na doutrina é a relevância que deverá ser dada ao advérbio “sempre”, introduzido nas alíneas a) e b), mas omisso na alínea c). Parece que a opção do legislador terá sido propositada, e não um simples lapso. Se o que aqui se visa é evitar o exercício de pressão e de influência de um dos órgãos sociais sobre a formação da vontade dos sócios, preservando o princípio da tipicidade, então parece que o que o legislador pretendeu foi proibir obrigações reiteradas e prolongadas no tempo, admitindo que os sócios possam votar de acordo com as instruções de um órgão societário em situações pontuais, nomeadamente em deliberações isoladas.20 Isto é, se os sócios perdessem a sua autonomia no exercício do direito de voto, tal corresponderia a uma autêntica delegação material desse direito nos órgãos sociais, o que levaria o órgão de administração a controlar todas as deliberações que formalmente fossem tomadas pelos sócios, em assembleia geral, e, simultaneamente, a evitar a responsabilização por tais decisões. Pelo contrário, se o acordo for isolado, não haverá aquela “intolerável influência de um órgão da sociedade sobre a assembleia geral”,21 nomeadamente porque nesses acordos pontuais será mais fácil o sócio conhecer o conteúdo da deliberação que concretamente irá ser tomada e, com vista a concertar estratégias,22 negociar o sentido do seu voto.23
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14 Este preceito é uma reprodução do artigo 35º da proposta de V Directiva das Sociedades, que foi inspirado no § 136, 2 e no § 405, 3, alíneas 6 e 7 da AktG alemã.
15 Não sendo a proibição do nº 3 do artigo 17º do Código das Sociedades Comerciais o tema central deste trabalho, não nos reteremos a analisá-lo em pormenor, indicando apenas as questões que mais frequentemente são levantadas. Para uma análise mais profunda e cuidada sobre o assunto, ver LEAL, Ana Filipa, “Algumas notas sobre a parassocialidade no Direito português”, Revista de Direito das Sociedades, ano I (2009), II, pp. 163-169; TRIGO, Maria da Graça, Os acordos parassociais sobre o exercício do direito de voto, 2ª ed., Lisboa, Universidade Católica Editora, 2011, pp. 158-165; VENTURA, Raul, Estudos Vários Sobre Sociedades Anónimas, Coimbra, Almedina, 1992, pp. 71-82; e SANTOS, Mário Leite, Contratos parassociais e acordos de voto nas sociedades anónimas, Lisboa, Edições Cosmos, 1996, pp. 227-235.
16 SANTOS, Mário Leite, Contratos parassociais e acordos de voto nas sociedades anónimas, Lisboa, Edições Cosmos, 1996, p. 230.
17 A lei basta-se com a simples obrigação de votar, não sendo necessário, para haver ilicitude, que o sócio predetermine o sentido do seu voto. Isto porque, sendo intenção do legislador condenar a concessão de vantagens particulares a troco do exercício de um direito social, parece-nos ser indiferente que o sócio se obrigue a votar num determinado sentido ou se obrigue simplesmente a votar. Com opinião semelhante, ver LEAL, Ana Filipa, “Algumas notas sobre a parassocialidade no Direito português”, Revista de Direito das Sociedades, ano I (2009), II, pp. 166-167; VENTURA, Raul, Estudos Vários Sobre Sociedades Anónimas, Coimbra, Almedina, 1992, p. 80; e SANTOS, Mário Leite, Contratos parassociais e acordos de voto nas sociedades anónimas , Lisboa, Edições Cosmos, 1996, p. 232. Contra, vide TRIGO, Maria da Graça, Os acordos parassociais sobre o exercício do direito de voto, 2ª ed., Lisboa, Universidade Católica Editora, 2011, pp. 162-163, que defende que a evolução do artigo 35º da Proposta de V Directiva parece apontar para uma restrição desta proibição aos acordos que determinam o sentido do voto, não sendo já ilícitos aqueles que estabelecem uma simples obrigação de votar.
18 A obrigação de se abster parece abranger, para além da abstenção em sentido técnico, também a obrigação de faltar à assembleia. Neste sentido pronunciam-se ABREU, Jorge Manuel Coutinho de, Curso de Direito Comercial, II, 4ª ed., Coimbra, Almedina, 2011, p. 160; LEAL, Ana Filipa, “Algumas notas sobre a parassocialidade no Direito português”, Revista de Direito das Sociedades, ano I (2009), II, p. 167; TRIGO, Maria da Graça, Os acordos parassociais sobre o exercício do direito de voto, 2ª ed., Lisboa, Universidade Católica Editora, 2011, p. 163; e VENTURA, Raul, Estudos Vários Sobre Sociedades Anónimas, Coimbra, Almedina, 1992, p. 75.
19 A maioria da doutrina portuguesa partilha desta noção de “vantagem especial”, semelhante à adoptada pela doutrina e jurisprudência alemãs. Sobre este assunto, ver TRIGO, Maria da Graça, Os acordos parassociais sobre o exercício do direito de voto, 2ª ed., Lisboa, Universidade Católica Editora, 2011, p. 164.
20 Com uma posição semelhante, ver SANTOS, Mário Leite, Contratos parassociais e acordos de voto nas sociedades anónimas, Lisboa, Edições Cosmos, 1996, pp. 228-229; TRIGO, Maria da Graça, Os acordos parassociais sobre o exercício do direito de voto, 2ª ed., Lisboa, Universidade Católica Editora, 2011, p. 161; e VENTURA, Raul, Estudos Vários Sobre Sociedades Anónimas, Coimbra, Almedina, 1992, pp. 73-74. Contra, vide ABREU, Jorge Manuel Coutinho de, Curso de Direito Comercial, II, 4ª ed., Coimbra, Almedina, 2011, p. 160, n. 159; CORDEIRO, António Menezes, “Acordos Parassociais”, Revista da Ordem dos Advogados 61º (2001), II, p. 542; e LEAL, Ana Filipa, “Algumas notas sobre a parassocialidade no Direito português”, Revista de Direito das Sociedades, ano I (2009), II, pp. 165-166, que entendem que se deve interpretar restritivamente a palavra “sempre”, de forma a serem igualmente nulos os acordos pontuais.
21 VENTURA, Raul, Estudos vários sobre sociedades anónimas, Coimbra, Almedina, 1992, p. 74.
22 Quando falamos em concertação de estratégias, referimo-nos aos “interesses que impulsionam a celebração” dos acordos parassociais, como “a conveniência em assegurar a estabilidade da gestão social, (…) em assegurar a manutenção de uma política comum (…) e em permitir uma ponderação prévia das decisões a tomar (…)” (Cunha, Carolina, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, volume I, Jorge M. Coutinho de Abreu (coord.), Instituto de Direito das Empresas e do Trabalho, Coimbra, Almedina, 2010, pp. 293-294).
23 Outra situação a ter em consideração, para a qual nos alerta Maria da Graça Trigo (Os acordos parassociais sobre o exercício do direito de voto, 2ª ed., Lisboa, Universidade Católica Editora, 2011, pp. 159-160), será aquela em que os sócios subscritores do acordo de voto são também membros de um órgão social. Contudo, nesses casos, apenas haverá uma efectiva influência quando esteja presente no acordo a maioria dos membros do órgão e quando, por sua vez, esses membros constituam uma maioria no acordo parassocial, capaz de influenciar efectivamente a deliberação.