I
1938
Preparem-se, companheiros,
para matar novamente e morrer de novo
e cobrir com flores o sangue.
O jovem soldado pertencia à Companhia do Biberão, a leva de miúdos recrutados quando já não havia homens jovens ou velhos aptos para a guerra. Víctor Dalmau recebeu-o com outros feridos que retiravam à pressa e sem grande cuidado do vagão de carga, porque para tal não havia tempo, e que em seguida empilhavam como lenha, no chão de pedra e cimento da Estação do Norte, enquanto esperavam outro transporte que os levasse aos centros hospitalares militares do leste. Estava inerte, com a expressão beatífica de quem vira de perto a morte e já nada temia. Ninguém poderia dizer quantos dias passara, sacudido de uma maca para outra, de um acampamento de campanha para outro, de uma ambulância para outra, até que chegara à Catalunha naquele comboio. Na estação, vários médicos, enfermeiros e auxiliares recebiam os soldados, enviavam os feridos que inspiravam mais cuidados para o hospital e, seguidamente, classificavam os restantes de acordo com a localização dos ferimentos que apresentavam, assim: «Grupo A: braços; B: pernas; C: cabeça», e por aí adiante, pelo alfabeto fora. E assim os enviavam, com um cartaz ao pescoço, para a secção de tratamento correspondente. Os feridos chegavam às centenas. Era necessário diagnosticar e decidir em questão de minutos, todavia, o tumulto e a confusão eram apenas aparentes. Ninguém era deixado para trás, e todos recebiam o atendimento devido. Aqueles que necessitavam de uma intervenção cirúrgica eram reencaminhados para o antigo edifício de Sant Andreu, em Manresa, os que requeriam apenas tratamentos mais superficiais eram dirigidos para outros centros médicos, e outros mais valia deixá-los ali mesmo, porque nada havia já que pudesse ser feito por eles. As voluntárias humedeciam-lhes os lábios, murmuravam-lhes ao ouvido palavras de consolo e embalavam-nos como se fossem seus filhos, sabendo que, nesse instante, noutro qualquer lugar, uma outra mulher procedia do mesmo modo com os seus próprios filhos ou irmãos. Mais tarde, os maqueiros levá-los-iam para a morgue.
O soldadito apresentava um orifício no peito, e o médico, após tê-lo examinado superficialmente, e tendo-o achado já sem pulso, determinou que este se encontrava além de qualquer socorro e que já não necessitava de morfina ou de consolo. Na frente de combate tinham-lhe coberto a ferida com um trapo, sobre o qual tinham colocado um disco de metal para a proteger de qualquer contacto exterior. Sobre este rudimento, haviam-lhe envolvido o tronco com uma bandagem, mas isso ocorrera há alguns dias, algumas horas ou há algumas viagens de comboio… impossível saber.
Dalmau encontrava-se ali apenas para auxiliar os médicos. O seu dever era cumprir ordens, portanto, deveria abandonar o jovem e dirigir a sua atenção para outro ferido, mas pensou que se aquele rapaz sobrevivera ao choque, à hemorragia e ao transporte precário até chegar àquela estação, era porque teria uma vontade sobre-humana de viver, pelo que seria uma lástima que se rendesse à morte ali mesmo, ao alcance da praia.
Retirou cuidadosamente os trapos e reparou que a ferida se encontrava aberta e tão limpa como se alguém lha tivesse desenhado no peito. Não conseguiu entender como é que o impacto do disparo destroçara as costelas e parte do esterno, sem que lhe tivesse, sem mais, pulverizado o coração.
Ao longo dos quase três anos de prática na Guerra Civil de Espanha, primeiro, na frente de Madrid, depois em Teruel e, por último, no hospital de evacuação, em Manresa, Dalmau acreditava que já vira de tudo e cria estar já imunizado contra o sofrimento alheio, mas jamais observara um coração vivo. Presenciou, fascinado, os derradeiros batimentos, até que estes se foram tornando cada vez mais lentos e espasmódicos, acabando por cessar completamente, e o soldadito terminou por expirar sem uma convulsão sequer. Por um breve instante, Dalmau ficou imóvel, contemplando aquela cavidade rubra onde já nada vibrava. Entre todas as memórias da guerra, aquela seria a mais pertinaz e recorrente: aquele miúdo, de apenas quinze ou dezasseis anos, ainda imberbe, sujo de sangue e de batalha, estendido numa esteira, com o coração exposto ao ar. Nunca conseguiu explicar a razão que o levou a introduzir três dedos da mão direita no terrível ferimento, rodear aquele órgão imóvel e começar a apertá-lo ritmicamente, com a maior calma e naturalidade, durante um tempo impossível de recordar, talvez trinta segundos, talvez uma eternidade, até que sentiu que o coração principiava a reviver-lhe entre os dedos, primeiro com um tremor praticamente impercetível, depois, gradualmente, com mais vigor e regularidade.
– Bem, se eu não tivesse visto isso com os meus próprios olhos, não acreditava! – disse em tom assombrado um dos médicos que se aproximara sem que Dalmau o tivesse percebido.
De um brado, chamou os maqueiros e ordenou-lhes que levassem o ferido o mais rápido possível, advertindo-os de que se tratava de um caso especial.
– Onde aprendeu a fazer isso? – perguntou a Dalmau, assim que os maqueiros levaram o soldado que, apesar de continuar a aparentar uma palidez extrema, conservava a pulsação estável.
Víctor Dalmau, homem de poucas palavras, informou-o de que estudara medicina durante três anos antes de ser incorporado na frente de combate como auxiliar médico.
– Mas onde raio aprendeu isso? – insistiu o médico.
– Em lado nenhum… mas pensei que não se perdia nada em tentar.
– Vejo que coxeia.
– Fémur esquerdo. Teruel. Estou a recuperar bem.
– Ótimo. A partir de agora vai passar a trabalhar comigo. Tê-lo aqui é um desperdício. Como se chama?
– Víctor Dalmau, camarada!
– Comigo, nada de camaradas. E nem lhe passe pela cabeça tratar-me por tu. Vai tratar-me por senhor doutor. Estamos entendidos?
– Perfeitamente, senhor doutor. A mim, pode tratar-me por senhor Dalmau, mas desde já o aviso de que isto vai cair mal aos outros camaradas.
O médico sorriu entre dentes. A partir do dia seguinte, Víctor Dalmau começou a exercer o ofício que marcaria toda a sua vida.
Soube mais tarde, tal como todo o pessoal, tanto de Sant Andreu como de outros hospitais, que a equipa de cirurgia passara dezasseis horas a ressuscitar um morto e que conseguira trazê-lo vivo da sala de operações. Um milagre, disseram muitos; consequência dos avanços da ciência e da férrea constituição de burro de carga do jovem, rebateram aqueles que haviam abdicado da crença em Deus e nos santos. Víctor quis visitá-lo, fosse para onde fosse que o houvessem transferido, mas, devido à agitação daqueles tempos, foi-lhe impossível localizar o jovem e dar conta dos encontros e desencontros, dos presentes e dos desaparecidos, dos vivos e dos mortos. Durante algum tempo, parecia ter esquecido aquele coração que sustivera na sua mão, porque se lhe complicou a vida e porque problemas diversos o mantiveram ocupado, mas, anos mais tarde, do outro lado do mundo, começou a vê-lo em pesadelos, e, frequentemente, o rapaz visitava-o, com o seu aspeto pálido e triste, e o coração inerte, depositado numa bandeja. Dalmau não recordava, ou talvez nunca tivesse mesmo sabido o seu nome, pelo que decidiu chamar-lhe Lázaro, por razões óbvias. Ao contrário, o soldado nunca esqueceu o nome do seu salvador. Mal foi capaz de se sentar e de beber água sem ajuda, quando lhe contaram a proeza de um tal de Víctor Dalmau, enfermeiro da Estação do Norte, que o restituíra ao mundo dos vivos, todos o bombardearam com perguntas; queriam certificar-se da existência do Céu e do Inferno, ou se seriam estes territórios meros artefactos concebidos pelos clérigos apenas com o intuito de assustar os crentes. Antes de terminada a guerra, o jovem recuperara do ferimento e, dois anos mais tarde, em Marselha, fizera uma tatuagem com o nome de Víctor Dalmau no peito, abaixo da cicatriz.
Uma jovem miliciana, com a boina de lado, numa tentativa de compensar a fealdade do uniforme, aguardava Víctor Dalmau à porta da sala de operações, e, mal este saiu, com uma barba de três dias e a bata manchada de sangue, entregou-lhe um papel com uma mensagem das telefonistas. Dalmau passara muitas horas em pé e doía-lhe a perna, e acabava de se aperceber, pelos ruídos cavernosos do seu estômago, de que não comia nada desde o amanhecer. Nos últimos tempos, trabalhava como uma mula de carga, mas congratulava-se com o facto de poder aprender com os melhores cirurgiões de Espanha. Noutras circunstâncias, um estudante como ele não teria qualquer hipótese de se aproximar deles sequer, mas, naqueles tempos de caos e de urgência, assolados pela guerra, os títulos académicos e os estudos valiam menos que a experiência, e isso ele tinha de sobra, segundo opinião do diretor do hospital, quando o converteu em seu assistente de cirurgia. Nesse tempo, Dalmau conseguia trabalhar quarenta horas consecutivas, sobrevivendo apenas de tabaco e de café de chicória, sem prestar atenção ao mal-estar causado pela perna. Essa perna livrara-o da frente de combate. Graças a ela, podia fazer a guerra a partir da retaguarda. Ingressara no Exército Republicano em 1936, como praticamente todos os jovens da sua idade, partindo com o seu regimento para as defesas de Madrid, parcialmente ocupada pelos nacionalistas, como passaram a denominar-se as tropas sublevadas contra o Governo. Recolhia e tratava os feridos, pois, graças aos seus estudos de medicina, tinha mais utilidade ali do que a empunhar uma espingarda nas trincheiras. Depois, foi enviado para diversas outras frentes.
Em dezembro de 1937, durante a Batalha de Teruel, sob um frio glaciar, Víctor Dalmau deslocava-se numa ambulância heroica, prestando primeiros socorros aos feridos, enquanto o motorista, Aitor Ibarra, um basco imortal que cantarolava incessantemente e se ria com estrépito para fintar a morte, fazia os máximos esforços para conduzir por entre caminhos destruídos. Dalmau acreditava que a boa estrela do basco, que saíra ileso de mil peripécias, bastaria para os dois. Para escaparem aos bombardeamentos, era frequente conduzirem de noite, e, quando não se via a luz da lua, ia alguém à frente com uma lanterna a assinalar o percurso – isto em caso de existir algum caminho –, enquanto Víctor socorria os feridos com os escassos meios de que dispunha à luz de outra lanterna. Desafiavam o terreno semeado de perigos e as temperaturas de muitos graus abaixo de zero, avançando sobre o gelo a passo de caracol, afundando-se na neve, empurrando a ambulância para subir encostas, ou para a retirar de buracos ou de crateras provocadas pelas explosões, sulcando destroços de metal retorcido e cadáveres petrificados de mulas, sob a fuzilaria dos nacionalistas, ou sob as bombas da Legião Condor, que percorriam o cenário de guerra em constantes voos rasantes. Nada disto conseguia distrair Víctor Dalmau, concentrado apenas na tarefa de manter vivos os homens ao seu cuidado, que muitas vezes se esvaíam em sangue a olhos vistos, contagiado, em grande medida, pelo estoicismo demente de Aitor Ibarra, que conduzia sem jamais se alterar, com uma piada sempre na ponta da língua e adequada a cada ocasião.
Da missão na ambulância, Dalmau foi transferido para o hospital de campanha, instalado numas cavernas de Teruel, a fim de o proteger dos bombardeamentos, onde se trabalhava à luz de velas, de candeias de azeite e de lamparinas de querosene. Enfrentavam o frio com o auxílio de braseiros que dispunham debaixo das mesas de cirurgia, ainda que tal precaução não impedisse que os instrumentos médicos, congelados, se lhes colassem continuamente às mãos. Os médicos operavam o mais depressa possível todos os que podiam enviar para os centros hospitalares, sabendo, no entanto, que muitos não resistiriam à viagem. Os outros, a quem não havia ajuda que valesse, limitavam-se a esperar a morte com a ajuda de morfina, quando a havia, mas sempre muito racionada. Também o éter se racionava. Se nada mais houvesse para acalmar os homens que, vítimas de ferimentos atrozes, bramavam de dor, Víctor dava-lhes aspirinas, dizendo-lhes que se tratava de um recente e potentíssimo medicamento americano. As bandagens eram lavadas com gelo e neve derretida para depois serem reutilizadas. A mais ingrata das tarefas era, no entanto, construir as piras para incinerar os braços e as pernas amputadas. Víctor nunca conseguiu habituar-se ao cheiro da carne queimada.
Foi em Teruel que reencontrou Elisabeth Eidenbenz, que conhecera na Frente de Madrid, onde ela chegara como voluntária de uma associação de apoio a crianças vítimas de cenários de guerra. Era uma enfermeira suíça de vinte e quatro anos, com um rosto de virgem renascentista e a coragem de um guerreiro empedernido. Em Madrid, estivera a um passo de se apaixonar por ela, o que teria acontecido, se a jovem lhe tivesse dado a mínima oportunidade, mas nada nem ninguém a desviava da sua missão: mitigar o sofrimento das crianças naqueles tempos brutais. Durante os meses em que estiveram separados, a suíça perdera a inocência virginal que tinha quando chegara à Espanha. Endurecera-se-lhe a personalidade, lutando contra a burocracia militar e contra a estupidez humana. Reservava toda a sua compaixão e doçura para as mulheres e para as crianças a seu cuidado. Certa ocasião, numa pausa entre dois ataques do inimigo, Víctor encontrou-a perto de um dos camiões de abastecimento de alimentos.
– Olá, companheiro! Lembras-te de mim? – cumprimentou-o Elisabeth, com o seu castelhano enriquecido dos sons guturais provenientes do alemão.
Como não haveria de se lembrar? Ao vê-la, ficou sem palavras. Parecia-lhe ainda mais madura e bela que antes. Sentaram-se num cais de cimento, ele a fumar, ela a beber chá de um cantil.
– E o que é feito do teu amigo Aitor? – inquiriu ela.
– Anda por aí! Sempre debaixo de fogo e sem um arranhão sequer! Não tem medo de nada!
– Dá-lhe um abraço meu!
– O que tencionas fazer quando a guerra terminar? – perguntou-lhe Víctor.
– Ir para outra guerra qualquer. Há sempre uma guerra a acontecer… E tu?
– Se estiveres de acordo… podíamos casar-nos – sugeriu ele, a voz a vacilar de timidez.
Ela sorriu e, por momentos, voltou a ser a donzela renascentista de outros tempos.
– Nem louca! Não tenciono casar-me contigo nem com ninguém. Não tenho tempo para o amor.
– Talvez mudes de ideias… Achas que nos voltaremos a ver?
– De certeza… se escaparmos desta! Conta comigo, Víctor, para tudo o que precisares.
– O mesmo digo eu. Posso dar-te um beijo?
– Não.
Naquelas grutas de Teruel, Víctor aprimorou o sangue-frio e adquiriu um conhecimento médico que universidade alguma poderia dar-lhe. Aprendeu, entre outras coisas, que o ser humano se habitua a tudo: ao sangue, ao muito sangue, ao fedor da gangrena, às operações executadas sem anestesia, à sujidade, ao rio interminável de soldados feridos, e, não poucas vezes, de mulheres e crianças, ao peso de um cansaço secular corroendo a vontade, e, pior ainda, à insidiosa certeza de que tanto sacrifício poderia ser evitado. E foi ali, enquanto recolhia mortos e feridos vítimas de um bombardeamento, que foi atingido por um desmoronamento inesperado, do qual saiu também ferido: a perna esquerda partida. Foi atendido por um médico inglês das Brigadas Internacionais. Qualquer outro teria optado por uma rápida amputação, mas o inglês começara o turno pouco antes e conseguira descansar algumas horas. Deu algumas ordens incisivas à enfermeira e começou a pôr os ossos fraturados no devido lugar.
– Estás com sorte, rapaz! Ontem chegaram os mantimentos da Cruz Vermelha e vamos poder anestesiar-te – disse-lhe a enfermeira, enquanto lhe aproximava do rosto uma máscara impregnada de éter.
Víctor atribuiu aquele acidente ao facto de, na ocasião, Aitor Ibarra não se encontrar junto dele, por isso a sua boa estrela não foi capaz de o proteger. Foi Aitor que, juntamente com outras dezenas de feridos, o conduziu ao comboio que haveria de levá-lo a Valência. Seguia com a perna imobilizada por duas tábuas amarradas em jeito de tala improvisada, já que não dispunham de meios para o imunizarem das restantes feridas. Ia envolto numa manta, tiritando de febre e de frio, torturado por cada estremecimento do comboio, mas grato, pois, ainda assim, encontrava-se em melhores condições que a maioria dos homens que com ele partilhavam o chão do vagão. Aitor dera-lhe os seus últimos cigarros, bem como uma única dose de morfina, advertindo-o de que só deveria recorrer a ela num caso de extrema necessidade, pois, tão cedo, não receberia mais nenhuma.
No hospital de Valência felicitaram-no pelo bom trabalho do médico inglês. Disseram-lhe que, se não adviessem complicações de maior, a perna ficaria como nova, ainda que ligeiramente mais curta do que a outra. Mal as feridas começaram a cicatrizar, e logo que conseguiu ficar de pé apoiado numa muleta, enviaram-no, engessado, para Barcelona. Deixou-se ficar em casa dos pais, a jogar intermináveis partidas de xadrez com o seu velhote, até ficar em condições de se mexer sem ajuda. Voltou, então, a trabalhar, desta vez num hospital da cidade, onde atendia a população civil. Era como estar de férias, pois, comparado com o que vira e vivera na Frente, aquilo mais parecia um paraíso de higiene e de eficiência. Ali permaneceu até à primavera seguinte, quando o enviaram para Sant Andreu, em Manresa. Despediu-se dos pais e de Roser Bruguera, uma estudante de música que estes haviam acolhido, e de quem começara a gostar como de uma irmã, sentimento que se fortalecera durante as semanas que ali passara em convalescença. Essa jovem, simples e gentil, que passava longas horas devotada ao estudo do piano, era a companhia ideal de que Marcel Lluís e Carme Dalmau necessitavam desde que os filhos tinham partido.
Víctor Dalmau desdobrou o papel que a miliciana lhe entregara e leu a mensagem que a mãe lhe enviara. Ainda que o hospital distasse apenas sessenta quilómetros de Barcelona, não a via há sete semanas, porque não tivera um único dia livre que lhe permitisse apanhar um autocarro até casa. Uma vez por semana, geralmente ao domingo, sempre à mesma hora, ela telefonava-lhe e, também nesse dia, enviava-lhe um presente: um chocolate dos membros das Brigadas Internacionais, um salpicão, uma barra de sabão adquirida no mercado negro e, por vezes, cigarros, que, na sua opinião, constituíam o maior dos tesouros, uma vez que não conseguia viver sem nicotina. Víctor perguntava-se como a mãe os conseguia obter. O tabaco era um bem de tal maneira raro e apreciado que o inimigo costumava lançá-lo dos aviões, juntamente com baguetes de pão, para assim fazer mofa da fome e da situação de necessidade que os republicanos enfrentavam, e simultaneamente alardear do clima de abundância que se vivia do lado das tropas nacionalistas.
Portanto, uma mensagem da mãe a uma quinta-feira só poderia significar uma emergência. Dizia: «Liga-me para a Central Telefónica». Calculou que a mãe estaria à espera há mais ou menos duas horas, tempo que demorara na sala de operações, antes de receber o recado. Desceu aos gabinetes da cave e pediu a uma das telefonistas que fizesse uma chamada para a Central Telefónica de Barcelona.
Carme pôs-se em linha e, com uma voz entrecortada por ataques de tosse, disse ao mais velho dos filhos que fosse a casa o mais rapidamente possível, pois o pai estava a morrer.
– Mas… o que lhe aconteceu?! – exclamou Víctor. – Da última vez que o vi pareceu-me estar bem!
– É o coração. Não aguenta mais. Avisa também o teu irmão para vir despedir-se, porque pode deixar-nos a qualquer momento.
Demorou cerca de 30 horas a localizar Guillem na Frente de Madrid, e, quando finalmente conseguiram entrar em contacto por meio de rádio, entre uma algazarra de estática e de uma chiadeira descomunal, o irmão explicou-lhe que de momento lhe seria impossível obter permissão para se deslocar a Barcelona. A sua voz soava tão distante e exausta que a Víctor foi difícil reconhecê-lo.
– Qualquer um capaz de empunhar uma arma é imprescindível, Víctor! Sabes bem! Os fascistas estão em número superior e têm melhor armamento… mas não passarão – disse Guillem, repetindo o lema popularizado por Dolores Ibárruri, justamente chamada La Pasionaria, devido à sua infatigável capacidade de inculcar fanático entusiasmo junto dos republicanos.
As tropas rebeldes haviam ocupado a maior parte do território de Espanha, contudo, ainda não tinham conseguido tomar Madrid, cuja acirrada defesa, rua a rua, casa a casa, se convertera no símbolo da guerra. Contavam com as tropas coloniais de Marrocos, os temidos mouros, bem como com a bestial ajuda de Mussolini e de Hitler, mas a resistência dos republicanos fora, até então, capaz de bloquear a invasão à capital. No início da guerra, Guillem combatera em Madrid, integrado na Coluna Durruti. Nessa altura, os exércitos dos dois lados enfrentavam-se na zona universitária da cidade, tão próximos um do outro que, em alguns lugares, apenas os separava a largura de uma rua. Conseguiam ver-se os rostos inimigos e insultarem-se mutuamente sem terem de elevar demasiado a voz. Segundo Guillem, entrincheirado num dos edifícios, o impacto dos obuses perfurava as paredes das faculdades de Letras, de Filosofia, de Medicina e da Casa de Velásquez. Não havia forma de se defenderem eficazmente dos projéteis, mas, dizia, estimava-se que três volumes de filosofia sobrepostos seriam capazes de deter as balas. Estivera presente aquando da morte do lendário anarquista Buenaventura Durruti, que, antes de apresentar batalha em Madrid com parte da sua Coluna, propagara e consolidara a revolução por terras de Aragão. Morreu atingido por um disparo à queima-roupa em pleno peito, em circunstâncias pouco claras. O que restava da Coluna foi dizimado. Pereceram mais de mil milicianos e, entre os poucos sobreviventes, Guillem foi um dos que saíram ilesos. Dois anos volvidos, após ter lutado em diversas outras frentes, tinham voltado a enviá-lo para Madrid.
– O pai compreenderá se não puderes vir, Guillem. Estamos à tua espera. Vem mal possas. Ainda que não o vejas com vida, a tua presença será um grande consolo para a mãe.
– Imagino que Roser esteja com eles.
– Sim, está.
– Dá-lhe um abraço meu. Diz-lhe que as suas cartas me acompanham sempre e que me desculpe por não lhe responder regularmente.
– Ficaremos à tua espera, Guillem. Tem cuidado contigo.
Despediram-se com um breve adeus, e Víctor, com o estômago do tamanho de uma ervilha, rogava para que o pai vivesse mais algum tempo, para que o irmão regressasse inteiro, para que a guerra terminasse de uma vez e para que se salvasse a República.
O pai de Víctor e de Guillem, Marcel Lluís Dalmau, passara cinquenta anos a lecionar música, formara a pulso e dirigira a Orquestra Sinfónica Juvenil de Barcelona, chegando a compor cerca de uma dezena de concertos para piano, que ninguém interpretava desde o início da guerra, e um punhado de canções que nesses tempos se contavam entre as favoritas dos milicianos. Conheceu Carme, a sua mulher, quando tinha ela quinze anos e trajava ainda o austero uniforme de colegial, sendo ele já professor de música e doze anos mais velho. Carme era filha de um estivador e estudava num colégio de freiras, que a preparavam para o noviciado desde a mais tenra infância e que jamais lhe perdoaram o facto de ter deixado o convento para ir viver em pecado com um boémio ateu, anarquista, quem sabe maçon, para quem nada significava o sagrado vínculo matrimonial. Marcel e Carme viveram em pecado durante vários anos, até à iminente chegada de Víctor, seu primogénito. Então, e só então, decidiram casar-se, para o preservarem do estigma de filho bastardo, que nesses tempos se traduzia numa série de entraves para toda a vida.
– Se pudéssemos ter tido os nossos filhos agora, não nos teríamos casado – proclamava Marcel, num lance de inspiração, quando ia ainda a guerra no início. – Na nossa República, ninguém é ilegítimo.
– Nesse caso, eu ficaria grávida depois de velha, e os nossos filhos ainda andariam de fraldas – respondia-lhe Carme.
Guillem e Víctor Dalmau receberam a educação escolar numa escola laica e cresceram numa pequena casa no Raval, um típico lar de modesta classe média, no qual a música do pai e os livros da mãe substituíam toda e qualquer forma de religião. O casal Dalmau não militava em nenhum partido político, mas a desconfiança que ambos nutriam em relação a toda a autoridade e a qualquer Governo alinhava-os com o movimento anarquista. Além do gosto pela música nos seus mais variados géneros, Marcel Lluís inculcou nos filhos o interesse pela ciência e a paixão pela justiça social. A primeira levou Víctor a estudar medicina, a segunda constituiu o ideal absoluto de Guillem, que desde criança se sentia revoltado com o mundo, predicando contra os latifundiários, os comerciantes, os industriais, os aristocratas e os padres, sobretudo contra estes últimos, com um fervor messiânico tal que superava em muito os argumentos racionais. Era alegre, extrovertido, robusto e atrevido, sempre o eleito das raparigas, que em vão se esforçavam por seduzi-lo, já que a ele pouco lhe importava o efeito que lhes causava, dedicado de corpo e alma à prática de desportos, noitadas e amigos. Desafiando a vontade dos pais, aos dezanove anos alistou-se numa das primeiras milícias de trabalhadores em defesa do Governo Republicano contra os fascistas rebeldes. Tinha vocação de soldado e nascera para empunhar armas e para comandar outros homens, em geral menos decididos do que ele. O seu irmão Víctor, ao contrário, assemelhava-se a um poeta, com a sua estatura delgada, o cabelo indomável, o seu eterno ar de preocupação, sempre com um livro entre as mãos, sempre silencioso. Na escola, Víctor suportava a implacável troça dos outros rapazes:
– A ver se vais para padre, paneleirote!
Era então que intervinha Guillem, apesar de três anos mais novo, mais robusto e sempre pronto a bater-se a soco por uma causa justa. Guillem abraçou a revolução como se de uma namorada se tratasse. Havia encontrado a suprema causa pela qual valia a pena, se necessário fosse, dar a própria vida.
Os conservadores e a Igreja Católica, que tinham investido dinheiro, propaganda e prédicas apocalípticas desde os púlpitos, foram derrotados nas eleições gerais de 1936 pela Frente Popular, uma coligação de partidos de esquerda. Espanha, profundamente convulsionada pelo triunfo republicano que ocorrera cinco anos antes, dividiu-se como se um violento golpe a houvesse fendido ao meio. Com o argumento da necessidade de impor a ordem e de pôr cobro a uma situação que julgava caótica, ainda que na verdade estivesse longe de o ser, a direita começou imediatamente a conspirar com os militares para provocar a queda do Governo legítimo, formado por liberais, socialistas, comunistas, sindicalistas, e sustentado pelo apoio eufórico de trabalhadores, camponeses e pela maioria dos estudantes e dos intelectuais. Guillem terminara com dificuldade o ensino secundário e, segundo o seu pai, amante de metáforas, tinha o físico de um atleta, a coragem de um toureiro e o cérebro de um miúdo de oito anos. O ambiente político era perfeito para Guillem, que aproveitava qualquer ocasião para bater-se com os seus adversários, ainda que lhe custasse articular as suas convicções ideológicas. E assim continuaria até ingressar nas milícias, onde a doutrinação política se considerava tão importante como o adestramento no manejo das armas. A cidade estava, pois, dividida. Os extremos apenas se juntavam para se confrontarem. Havia bares, bailes, desportos e festas frequentados por partidários de esquerda, e outros distintos para os partidários da direita. Antes de ser miliciano já lutava. Depois de cada rixa com um ou outro grupo de fidalgotes emproados, Guillem regressava a casa, dorido mas feliz. Os pais não suspeitavam que saía para queimar colheitas e roubar gado das herdades dos grandes proprietários, a incendiar, a golpear e a vandalizar, até ao dia em que apareceu em casa com um candelabro de prata. A mãe arrebatou-lho de um puxão e, se fosse mais alta, ter-lhe-ia aberto a cabeça com ele, mas, por sorte, apenas o atingiu nas costas. Carme obrigou-o então a confessar o que outros já sabiam, e que eles, pais, se negavam a admitir: que o filho se dedicava, entre outras malfeitorias, a profanar igrejas e a violentar freiras e padres, ou seja, fazendo exatamente aquilo que sustentava a propaganda dos nacionalistas:
– Semeia ventos, que hás de colher tempestades! Vais acabar por me matar de vergonha, Guillem! Vais agora mesmo devolver isso!
Cabisbaixo, Guillem saiu com o candelabro envolto em papel de jornal.
Em julho de 1936, ocorreu o levantamento militar contra o Governo democrático. A sublevação foi encabeçada pelo General Francisco Franco, cujo aspeto insignificante ocultava um temperamento frio, vingativo e brutal. O seu sonho mais ambicioso era devolver à Espanha as pretéritas glórias imperiais e o seu objetivo mais premente era acabar definitivamente com a desordem que a democracia originara e governar com mão de ferro, sob a égide das Forças Armadas e da Igreja Católica. Os revoltosos contavam ocupar o país em sensivelmente uma semana, mas depararam com a resistência obstinada dos trabalhadores, organizados em milícias, decididos a defender a todo o custo os direitos adquiridos com a República. Começava então a época do desabrido ódio, da vingança e do terror, que haveria de custar a Espanha um milhão de vítimas. A principal estratégia dos comandados de Franco era a de derramar a maior quantidade possível de sangue e de semear o medo, única forma de extirpar qualquer indício de resistência por parte da população vencida. Nessa altura, Guillem Dalmau estava pronto para participar em pleno na Guerra Civil. Agora já não se tratava de roubar candelabros. Era tempo de empunhar armas.
Se anteriormente Guillem procurava qualquer pretexto para se envolver em desacatos, com o estalar da guerra já não necessitava. Deixou de cometer atrocidades, pois assim lho impediam os firmes princípios que em sua casa lhe haviam sido inculcados, mas nem por isso defendeu as vítimas, por vezes inocentes, dos desmandos dos seus camaradas. Foram perpetrados milhares de assassínios, sobretudo de padres e de freiras, e isso obrigou muitos apoiantes da direita a procurarem refúgio em França para escaparem das hordas vermelhas, como lhes chamava a imprensa. De imediato, os partidos políticos da República ordenaram a suspensão de tais atos de violência, por contrários ao ideário revolucionário, mas estes continuaram a verificar-se. Entre os soldados de Franco, a ordem que vigorava era exatamente a oposta: dominar e castigar a fogo e sangue.
Entretanto, sempre absorto nos seus estudos, Víctor, que cumpria vinte e três anos, vivia ainda em casa dos pais, até que foi recrutado pelo exército republicano. Enquanto ali viveu, levantava-se de manhãzinha e, antes de ir para universidade, preparava o pequeno-almoço aos pais, a sua única contribuição nas tarefas domésticas. Regressava sempre já entrada a noite, faminto, pronto a devorar o que quer que a mãe lhe tivesse preparado: pão, sardinhas, tomate e café, e prosseguia com os estudos. Mantinha-se à margem da paixão política dos pais e da exaltação do irmão.
– Estamos a fazer história! Vamos retirar a Espanha de um feudalismo secular. Somos o exemplo da Europa: somos a resposta aos fascismos de Hitler e de Mussolini! – predicava Marcel Lluís Dalmau aos filhos e aos seus companheiros de tertúlias numa tasca de má morte, tenebrosa de aspeto, mas elevada de espírito, chamada O Rocinante, onde diariamente se juntavam os mesmos clientes para jogar dominó e beber vinho carrascão.
– Toca a acabar com os privilégios da Igreja e da oligarquia, e dos latifundiários e de todos os que exploram o povo. É nosso dever defender a democracia, companheiros, mas lembrem-se de que nem tudo é política. Sem ciência, nem indústria, nem desenvolvimento tecnológico, não há progresso possível, da mesma forma que, sem arte e sem música, a alma não existe! – afirmava, convicto.
Por princípio, Víctor estava de acordo com o pai, mas procurava escapar das suas arengas, que, com poucas variantes, consistiam na repetição das mesmas máximas. Com a mãe também não falava desse assunto. Limitava-se a ajudá-la a alfabetizar os milicianos na cave de uma cervejaria. Carme fora professora da instrução primária durante muitos anos e acreditava ser a educação tão importante como o pão, e que qualquer um que soubesse ler ou escrever tinha a obrigação de transmitir a outros esse conhecimento. Para ela, as aulas que ministrava aos milicianos eram pura rotina, mas para Víctor representavam um enorme suplício:
– São uns burros! – concluía, frustrado, após passar duas horas sem conseguir que passassem da letra A. – Nem sequer sabem o alfabeto!
– Queria ver como te arranjavas tu se te pusessem a manejar um arado! – retorquia-lhe a mãe.
Espicaçado por ela, que receava que Víctor se convertesse numa espécie de eremita e que continuamente o alertava para a necessidade de criar laços com a Humanidade, Víctor aprendeu desde cedo a tocar algumas canções conhecidas na guitarra. Possuía uma suave voz de tenor, em contraste com o físico desengonçado e com a expressão reservada. Entrincheirado na guitarra, disfarçava a timidez. Evitava as conversas banais que tanto o aborreciam e dava, assim, a impressão de estar a participar do convívio. As raparigas, em geral, não se interessavam por ele até que o ouviam cantar. Então, a pouco e pouco, iam-se aproximando e acabavam a cantarolar com ele. Entre cochichos, decidiam que, bem vistas as coisas, o mais velho dos Dalmau até era bastante bem-parecido, se bem que não se pudesse comparar com o irmão Guillem.
A pianista que mais se destacava entre os alunos de música do professor Marcel Dalmau era Roser Bruguera, uma jovem oriunda de Santa Fé que, sem a generosa ajuda de Santiago Guzmán, não teria passado de uma pastora de cabras. Guzmán pertencia a uma família de ilustre linhagem, ainda que empobrecida por diversas gerações de fidalgos indolentes e gastadores, que depauperaram até ao tutano a fortuna e as terras. Vivia os seus derradeiros anos, retirado numa propriedade situada num descampado semeado de montes pedregosos, mas cheia de recordações afetivas. Pese embora a avançada idade, dado que já em tempos do rei Afonso XII era professor catedrático de História na Universidade Central, mantinha-se ativo. Saía diariamente, ora sob o sol inclemente de agosto, ora sob o gélido frio de janeiro, a caminhar horas a fio, acompanhado do cajado de peregrino, do velho chapéu de couro e do seu cão de caça. A sua mulher, prisioneira nos labirintos da demência, encontrava-se reclusa em casa, dedicada a pintar quadros aberrantes. Na terra, chamavam-lhe a Tola Mansa, e, de facto, não causava problemas de maior, salvo a sua tendência de caminhar rumo ao horizonte até se perder e o hábito de pintar as paredes com os próprios excrementos. Roser contava mais ou menos sete anos de idade, ainda que ninguém soubesse com exatidão a data do seu nascimento, quando, certo dia, Santiago a viu apascentando umas cabras famélicas. Bastou-lhe trocar algumas frases com a criança para logo se aperceber que se encontrava diante de uma mente atenta e curiosa. O catedrático e a pastora estabeleceram uma estranha amizade baseada nas lições de cultura dadas por ele e incentivadas pelo desejo de aprender que a menina manifestava.
Um dia de inverno, em que a encontrou abrigada numa cova com as suas três cabras, encharcada até aos ossos, tiritando de frio e corada de febre, Santiago amarrou as cabras e carregou a criança ao ombro como se de um fardo se tratasse, grato por esta ser tão leve. Ainda assim, o esforço quase lhe rebentou o coração, e, volvidos apenas alguns passos, abandonou o intento. Decidiu deixar a criança ali mesmo e foi chamar um dos seus jornaleiros, que a carregou até casa. Ali chegados, ordenou à cozinheira que desse de comer à menina, à criada que lhe preparasse um banho e uma cama e ao moço da estrebaria que fosse primeiro chamar o médico e depois recolher as cabras, para evitar que alguém as roubasse.
O médico determinou que a miúda padecia de gripe e que se encontrava seriamente subnutrida. Além disso, também tinha sarna e piolhos. Uma vez que ninguém apareceu na propriedade de Guzmán a perguntar pelo paradeiro da criança, nem naquele dia nem nos seguintes, deram por adquirido que seria órfã, até que a alguém ocorreu perguntar-lho diretamente, ao que esta respondeu que tinha família e que vivia do outro lado do monte. Apesar do seu corpo de passarinho, a menina revelou ser bem mais resistente do que aparentava. Deixou que lhe rapassem o cabelo por causa dos piolhos e suportou estoicamente o tratamento para a sarna. Comia com voracidade e manifestava um temperamento estranhamente equânime, dadas as circunstâncias extremas em que fora encontrada. Durante as semanas que passou naquela casa, desde a delirante patroa até ao mais insignificante dos criados, todos lhe ganharam afeto. Não havia memória de ter jamais habitado uma criança naquela sombria mansão de pedra, por onde deambulavam gatos semisselvagens e uma prole de fantasmas de outras épocas. De todos os moradores, o mais encantado era o velho professor, que assim revivia o privilégio de cultivar uma mente ávida. Todavia, a estadia da menina não podia prolongar-se indefinidamente. Dom Santiago esperou que esta se recuperasse totalmente e que ganhasse algum peso, antes de se dirigir ao outro lado do monte, disposto a dizer umas quantas verdades àqueles pais negligentes.
Fazendo ouvidos de mercador às súplicas da mulher, e com a criança devidamente agasalhada, levou-a na charrete, até que alcançaram uma cabana térrea de barro, tão miserável como outras que abundavam naquelas paragens. Os camponeses sobreviviam mendigando migalhas da fome, lavrando a terra como ancestrais servos da gleba. O catedrático encrespou a gritos os moradores da casa, e logo apareceu um bando de crianças assustadas, seguidas por uma bruxa vestida de preto, que não era, como Santiago primeiramente supusera, a bisavó, mas a mãe de Roser. Aquela gente jamais recebera a visita de uma carruagem puxada por cavalos tão reluzentes, pelo que ficaram perplexos assim que Roser desceu do carro acompanhada por um cavalheiro de tão distinta aparência.
– Venho falar-lhe sobre esta criança! – anunciou Santiago, naquele tom autoritário que costumava utilizar na faculdade, e que tanto atemorizava os alunos. Mas, antes que pudesse acrescentar fosse o que fosse, a mulher agarrou Roser pelos cabelos e começou a recriminá-la por ter abandonado as cabras, intercalando os gritos com bofetões. Foi quando compreendeu a inutilidade de chamar à razão aquela mãe azeda e, de um ímpeto, traçou o plano que haveria de mudar a vida da menina.
Roser passou o resto da infância na propriedade de Guzmán, oficialmente como protegida da família e como criada pessoal da senhora, mas também como aluna do patrão. Em troca de ajudar as criadas em casa e de distrair e alegrar os dias da Tola Mansa, recebeu hospedagem e educação. O historiador partilhou com ela a sua biblioteca, ensinou-lhe mais do que teria aprendido em qualquer escola e pôs à sua disposição o piano de cauda da mulher, uma vez que esta já não era capaz de se recordar da serventia e da razão de ser daquele monólito negro. Roser, que passara os seus sete primeiros anos sem ter conhecido outra música além da do acordeão dos bêbedos nas noites de São João, revelou ser dotada de um ouvido extraordinário. Na casa havia uma grafonola, mas, ao verificar que a sua protegida era capaz de reproduzir no piano as melodias assim que as escutava, Dom Santiago encomendou de Madrid um gramofone moderno e uma coleção de discos. Em pouco tempo, Roser Bruguera, cujos pés não alcançavam ainda os pedais do piano, conseguia tocar todos os discos de olhos fechados. Deslumbrado, ele contratou uma professora de piano em Santa Fé. Mandava-a às aulas três vezes por semana e vigiava pessoalmente o cumprimento dos exercícios e deveres de casa. Para Roser, capaz como era de tocar qualquer coisa de memória, não fazia o menor sentido aprender a ler música nem passar horas a fio a praticar as mesmas escalas, mas cumpria as tarefas por respeito ao seu mentor.
Aos catorze anos, superava já largamente a professora e, aos quinze, Dom Santiago instalou-a numa residência católica para raparigas em Barcelona, para que aí estudasse música. Por sua vontade, tê-la-ia mantido a seu lado, mas o dever de educador falou mais alto e prevaleceu sobre os seus sentimentos paternais. Segundo ele, a jovem recebera do Divino um talento especial, e a sua função neste mundo consistia em ajudar Roser a desenvolvê-lo. Nesses tempos, a Tola Mansa começou a apagar-se, acabando por morrer serenamente. A Santiago, solitário naquele casarão imenso, começavam a pesar os anos. Teve de renunciar às suas caminhadas com o seu cajado de peregrino, e passava o tempo a ler, sentado em frente à lareira. Quando o cão morreu, não quis substituí-lo por outro, para o caso de morrer antes dele e não deixar o animal sem dono.
O seu ânimo azedou ainda mais com o surgimento da Segunda República, em 1931. Mal se conheceram os resultados das eleições gerais, favoráveis à esquerda, o rei Afonso XIII partiu para o exílio em França, e Dom Santiago, monárquico, ultraconservador e católico, constatou que o seu mundo se desmoronava. Nem por sombras toleraria os Vermelhos, e tão-pouco tencionava adaptar-se à sua vulgaridade. Aqueles desalmados não passavam de uns lacaios dos soviéticos que andavam a queimar igrejas e a fuzilar padres. A história de todos serem iguais, dizia, podia argumentar-se como mero exercício teórico, mas, se posto em prática, seria uma aberração. «Perante Deus, não somos iguais. Se assim não fosse, Ele não teria criado as classes sociais, bem como outras distinções naturais entre os seres humanos.» A reforma agrária expropriou-lhe as terras, que, apesar de não terem muito valor, sempre haviam pertencido à sua família. Os camponeses, de um momento para o outro, passaram a dirigir-se-lhe sem tirarem o chapéu nem baixando os olhos. Essa arrogância dos seus inferiores doía-lhe ainda mais que a terra perdida, pois constituía uma afronta à sua dignidade e à posição que desde sempre ocupara no mundo. Despediu os criados que há tempos imemoriais o serviam, mandou empacotar a biblioteca, as obras de arte, as suas coleções e as suas lembranças, e fechou o casarão a sete chaves. O recheio da casa encheu três camiões; todavia, não lhe foi possível levar os móveis mais volumosos nem o piano, visto que não cabiam no apartamento de Madrid. Meses mais tarde, o alcaide republicano de Santa Fé confiscou a casa para ali instalar um orfanato.
Entre os graves agravos que Santiago sofreu nesse tempo, contava-se também a mudança que sofrera a sua protegida. Sob a má influência de alguns revoltosos da universidade, sobretudo a de um tal professor Marcel Lluís Dalmau, comunista, socialista ou anarquista, a ele tanto lhe dava, enfim, um desses perversos bolcheviques, a sua Roser convertera-se numa Vermelha. Abandonara a residência e vivia com umas galdérias que se vestiam como soldados e praticavam o amor livre, como se chamava naquele tempo à promiscuidade e à imoralidade. Era verdade que Roser jamais lhe faltara ao respeito, isso reconhecia, mas, uma vez que esta se atrevera a não ouvir os seus conselhos, vira-se obrigado a suspender-lhe toda e qualquer ajuda. Por carta, a jovem agradeceu-lhe de todo o coração o muito que por ela fizera, prometendo seguir sempre o elevado caminho dos princípios que ele lhe inculcara, e acrescentou que trabalhava de noite numa padaria e de dia prosseguia os estudos de música.
Dom Santiago Guzmán, instalado no seu apartamento de Madrid, onde quase não se conseguia circular por entre tantos móveis e objetos, isolado do ruído e da sordidez das ruas por espessos reposteiros de felpa em tons de sangue-de-boi, não se apercebeu como germinava o mais terrível rancor no seio do país, um rancor que levava séculos medrando e alimentando-se da miséria de uns e da prepotência de outros. Morreu solitário e furioso no seu apartamento do Bairro de Salamanca, quatro meses antes da sublevação das tropas de Franco. Manteve-se lúcido até aos últimos momentos, e de tal forma resignado à ideia da morte, que redigiu o próprio obituário, pois não queria que algum néscio viesse a publicar calúnias sobre a sua pessoa. Não se despediu de ninguém, talvez pela razão simples de que ninguém próximo lhe sobrasse já no mundo, mas lembrou-se de Roser Bruguera, e num nobre gesto reconciliatório, deixou-lhe o piano de cauda, que permanecia embalado no fundo de um quarto no novo orfanato de Santa Fé.
O professor Marcel Lluís Dalmau distinguiu rapidamente Roser entre os demais estudantes. No intuito de transmitir aos alunos quanto sabia de música e da vida, propagava-lhes ideias políticas e filosóficas, que viriam a influenciá-los muito mais do que alguma vez imaginaria. Nesse aspeto, Santiago Guzmán tivera razão. Por experiência, Dalmau desconfiava dos alunos dotados de excessiva facilidade para a música, porque, como afirmava amiúde, ainda não se tinha deparado com nenhum Mozart. Já conhecera casos idênticos ao de Roser, jovens com ouvido e capacidade para tocar qualquer instrumento, que se tornavam preguiçosos, convencidos de que esse talento lhes bastava para dominar a arte e, por isso, podiam descurar o estudo e a disciplina. Era comum acabarem a tocar em bandas populares, em festas, hotéis e restaurantes, para ganhar a vida, convertidos em meros tocadores de casamentos, como ele lhes chamava. Propôs-se, assim, salvar Roser Bruguera dessa calamidade, colocando-a debaixo da sua asa. Ao inteirar-se de que a jovem se encontrava só em Barcelona, abriu-lhe as portas da sua casa, e mais tarde, quando soube que ela herdara um piano e que não tinha onde colocá-lo, retirou os móveis da sala de estar para aí o instalar, e jamais pôs objeções às intermináveis escalas que a jovem tocava quando diariamente os visitava após as aulas. Carme, a sua mulher, cedia a Roser a cama de Guillem, que estava na guerra, para que dormisse algumas horas, antes de, às três da madrugada, se dirigir à padaria para levar ao forno os pães que deveriam servir-se ao romper do dia. Assim, por tantas vezes dormir sobre a almofada do filho mais novo dos Dalmau, respirando o vestígio daquele cheiro de homem viril e saudável, a jovem enamorou-se dele, sem que a distância, o tempo ou a guerra a dissuadissem daquele amor impossível.
Roser passou a fazer parte da família tão naturalmente como se fosse do seu próprio sangue. Converteu-se na filha que os Dalmau sempre desejaram. Viviam numa casa modesta, um pouco lúgubre, bastante deteriorada por longos anos de uso sem manutenção, mas espaçosa. Quando os seus dois filhos foram para a guerra, Marcel Lluís convidou Roser para viver com eles. Desta feita, podia economizar nos gastos, trabalhar menos horas, praticar piano sempre que quisesse e, além disso, ajudar a sua mulher com as tarefas domésticas. Apesar de muito mais jovem que o marido, Carme sentia-se mais velha, pois ultimamente andava sempre ofegante e a arfar, enquanto ele tinha vitalidade de sobra.
– Já quase não tenho forças para as aulas dos milicianos… e quando deixarem de ser necessárias, não terei alternativa senão morrer – suspirava Carme.
No primeiro ano do curso de medicina, Víctor diagnosticou que a mãe tinha os pulmões com a textura, a porosidade e o aspeto de uma couve-flor.
– Caramba, Carme, se morreres, será por causa do tabaco – repreendia-a o marido sempre que a ouvia tossir, sem se dar conta da quantidade de tabaco que ele próprio consumia e sem adivinhar que a morte o alcançaria primeiro.
Foi por isso que Roser Bruguera, muito apegada à família Dalmau, permaneceu junto do professor quando este sofreu o enfarte. Deixou de ir às aulas, embora continuasse a trabalhar na padaria, revezando-se com Carme para atender às suas necessidades. Durante as horas mortas, distraía-o com concertos de piano, que enchiam a casa de música e acalmavam o moribundo. Como ali se encontrava, ouviu de viva voz as últimas recomendações do professor ao filho mais velho:
– Quando eu aqui já não estiver, Víctor, serás tu o responsável pela tua mãe; suspeito que Guillem morrerá em combate… porque a guerra está perdida, filho – disse-lhe, entre longas pausas, para inspirar com dificuldade.
– Não diga isso, pai!
– Tive a certeza em março, quando bombardearam Barcelona. Eram aviões italianos e alemães. Temos a razão do nosso lado, mas isso não evitará a derrota. Estamos isolados, Víctor.
– As coisas ainda podem reverter-se se a Inglaterra, a França e os Estados Unidos intervierem.
– Esquece isso. Os Estados Unidos não vão ajudar-nos. Disseram-me que Eleanor Roosevelt tentou convencer o marido a intervir, mas o Presidente tem a opinião pública contra.
– Não deve ser uma opinião generalizada, pai. Não vê que vieram tantos rapazes da Brigada Lincoln, dispostos a morrer por nós?
– São uns idealistas, Víctor. Desses existem muito poucos no mundo. Muitas das bombas que nos caíram em cima em março eram de fabrico americano.
– Pai, se não o sufocarmos aqui, o fascismo de Hitler e de Mussolini vai alastrar por toda a Europa. Não podemos perder a guerra. Isso significaria o fim de tudo o que o povo alcançou e o regresso ao passado, à miséria feudal em que vivemos durante séculos.
– Ninguém virá em nosso auxílio. Ouve bem o que te digo, filho. Até a União Soviética nos abandonou. A Espanha já não interessa a Estaline. Quando a República cair, a repressão será infernal. Franco impôs o seu programa de limpeza, quer dizer, o terror máximo e o ódio total, enfim, a mais sangrenta das vinganças. Não negoceia nem perdoa. As suas tropas cometem atrocidades indescritíveis.
– Também nós! – exclamou Víctor, que já vira muito.
– Como te atreves a comparar? Na Catalunha haverá um banho de sangue. Não viverei tempo suficiente para ver, mas quero morrer tranquilo. Promete-me que levarás a tua mãe e Roser para o estrangeiro. Os fascistas vão apanhar Carme de ponta porque alfabetiza os soldados. Já fuzilaram gente por muito menos. De ti vão vingar-se porque trabalhas num hospital do Exército, de Roser simplesmente porque é uma rapariga. Sabes o que fazem com as mulheres jovens, certo? Oferecem-nas aos mouros. Já pensei em tudo. Vão para França até as coisas ficarem mais calmas e até poderem regressar. Na minha escrivaninha vais encontrar um mapa e algumas poupanças. Promete-me!
– Sim, pai. Prometo – respondeu Víctor, ainda que sem a menor intenção de cumprir.
– É importante que entendas isto, Víctor. Não é uma questão de cobardia, mas de sobrevivência.
Marcel Lluís Dalmau não era o único pessimista em relação à situação da República, mas ninguém se atrevia a expressar abertamente tais sentimentos, pois a pior das traições seria a de fomentar o pânico ou a descrença junto de uma população já extenuada e que já tanto sofrera.
No dia seguinte, enterraram o professor Marcel Lluís Dalmau. Quiseram fazê-lo discretamente, pois os tempos não estavam para manifestações de luto, mas a notícia foi-se espalhando. Compareceram ao cemitério de Montjuïc os seus companheiros d’O Rocinante, colegas da faculdade e antigos alunos já de certa idade, isto porque os mais jovens se encontravam, sem exceção, ou numa das frentes de combate ou debaixo de terra. Carme, trajando luto rigoroso, do véu às meias negras, caminhou atrás do caixão daquele que fora o homem da sua vida, apoiada em Víctor e em Roser. Não houve orações, discursos ou lágrimas. Os alunos despediram-se do mestre tocando o segundo andamento do quinteto de cordas de Schubert, cuja melancolia se prestava à ocasião, e, seguidamente, entoaram uma das canções dos milicianos, da autoria do velho professor.