XIII
Aqui termino de contar
1994
Apesar de tudo,
aqui permanecem fundeadas as raízes dos
meus sonhos.
Esta é a dura luz que amamos.
Três anos depois da morte de Roser, Víctor cumpriu oitenta anos na casa da colina onde com ela vivera desde que haviam regressado ao Chile, em 1983. Era uma rainha velha, trémula e frágil, mas conservava ainda o seu porte nobre. Para Víctor, que desde criança sempre fora e se considerara um solitário, a viuvez pesava-lhe mais do que alguma vez teria imaginado. A vida favorecera-o com o melhor e o mais feliz dos casamentos, como diria qualquer um que os tivesse conhecido nos últimos tempos e não soubesse dos pormenores trágicos do passado de ambos, de forma que, ao enviuvar, não conseguiu habituar-se à ausência da mulher com a naturalidade e com a calma que ela teria desejado. «Quando eu morrer, Víctor, vê se te casas rapidamente, porque vais precisar de alguém que tome conta de ti quando ficares decrépito e demente. A Meche parece-me um bom partido…», exigiu-lhe ela no final, entre sussurros roucos que se filtravam, dificílimos, através da máscara de oxigénio. Apesar da solidão, Víctor gostava da casa vazia, que parecia ter aumentado de tamanho e estender-se arbitrariamente em várias direções. Agradavam-lhe o silêncio e a desordem, o cheiro dos quartos fechados e as eternas correntes de ar, que Roser combatera ainda mais intrepidamente do que aos roedores que habitavam o telhado. O vento sacudira furiosamente todo o dia. Os vidros estavam cegos e opacos de geada, e o trémulo lume que ardia na lareira parecia uma tentativa vã e ridícula de combater aquele inverno tão pródigo em chuva e granizo. Depois de meio século de convívio a dois, a viuvez continuava a ser-lhe uma realidade estranha. Sentia de tal modo a falta de Roser, que, por vezes, a sua não-presença lhe doía com uma dor física. Não pretendia resignar-se à ideia e às limitações da velhice: entendia a idade avançada como uma perturbação da realidade conhecida, que alterava o corpo e as circunstâncias do meio. Perdia-se o controlo de tudo, e terminava-se sem outro remédio que depender da bondade e da ajuda alheia. Contava morrer antes de atingir esse estágio. O problema era o difícil que por vezes é morrer com dignidade e rapidez. Parecia-lhe pouco provável que um enfarte o despachasse desta para melhor, porque o seu coração ainda batia saudável, isso repetia-lhe o seu médico quando, uma vez por ano, o examinava, e, invariavelmente, aquele comentário lhe despertava a recordação do soldadito Lázaro, cujo coração Víctor sustivera entre os dedos. Não partilhava com Marcel o receio pelo futuro próximo. Do futuro mais distante, se fosse o caso, a seu tempo se veria.
– Pode acontecer-te qualquer coisa, papá… Imagina que cais ou que te dá um ataque quando eu estiver fora. Podes ficar para aí estendido sem ajuda durante dias. E depois? O que fazias?
– O que fazia? Deixava-me morrer, claro, Marcel… e rezava para que ninguém aparecesse por aqui a incomodar-me nos últimos momentos. Não te preocupes com os nossos animais. Têm sempre água e comida para vários dias.
– E se ficas doente? Quem vai tomar conta de ti?
– Isso também afligia a tua mãe. A seu tempo se vê. Estou velho, sim, mas ainda não estou caquético. Tu tens mais doenças do que eu!
Era, de facto, verdade. Aos cinquenta e cinco anos, Marcel já tinha uma rótula artificial, já fraturara diversas costelas e por duas vezes a mesma clavícula.
– Isso acontece-te porque fazes demasiado exercício – opinava Víctor. – É certo que devemos manter-nos em forma, mas daí a corrermos como loucos sem que ninguém nos persiga ou atravessar um continente de bicicleta… Devias casar-te. Assim tinhas menos tempo para todo esse desporto desenfreado e terias menos acidentes. Olha que o casamento faz muito bem aos homens… ainda que, em relação às mulheres, eu tenha as minhas dúvidas…
Apesar disso, ele próprio não estava disposto a seguir os seus conselhos matrimoniais. Sentia-se tranquilo com a vida que levava e bem de saúde. Desenvolvera a teoria segundo a qual a melhor forma de alguém se manter saudável era ignorar os sinais de advertência do corpo e da mente e conservar-se sempre ocupado. Na vida, dizia, deve sempre ter-se algum propósito superior. Estava a debilitar-se com o passar do tempo. Isso era inevitável. Os seus ossos deveriam estar tão amarelecidos e gastos como os seus dentes, os órgãos mais lentos e mais frágeis, e os seus neurónios estariam, inelutavelmente, morrendo a pouco e pouco. Mas esse drama desenrolava-se longe da vista, no interior remoto do organismo. Via-se ainda com bom aspeto. Além disso, quem se importa com a aparência ou com o estado do fígado, se ainda se conservam todos os dentes? Tentava, a todo o custo, ignorar as pisaduras e as marcas que do nada lhe pontuavam a pele, o dado irrefutável de que lhe custava cada vez mais subir a colina com os cães, abotoar a camisa, o cansaço da vista, a surdez e a tremura das mãos, que o obrigou a abandonar as salas de operações. Apesar dessa limitação, continuava ativo. Via alguns doentes no hospital de San Juan de Dios e dava as suas aulas na faculdade, que já não necessitava de preparar, bastando-lhe e bastando-se dos seus sessenta anos de experiência, contando os da guerra, que haviam sido, sem dúvida, os mais duros. Conservava ainda uma boa postura, os ombros direitos, o corpo firme, tinha bastante cabelo e o tronco erguido e aprumado como uma lança em riste, para compensar a coxeira, e porque a cada dia lhe era mais penoso dobrar os joelhos e a cintura.
Para não afligir o filho, nunca referia que a viuvez constituía para ele um peso difícil de suportar. Marcel preocupava-se demasiado. Tinha vocação de mãe-galinha. Para Víctor, a morte não se traduzia numa separação definitiva nem irremediável. Imaginava a mulher a viajar no espaço sideral, onde talvez habitassem as almas dos mortos, enquanto ele, ainda no plano terreno, esperava a sua vez para a seguir, com mais curiosidade do que apreensão. Ali estaria com os seus pais, com Guillem, com Jordi Moliné e com tantos outros amigos e companheiros mortos na frente de combate. Para um agnóstico racionalista e científico de formação como ele, tal teoria apresentava falhas básicas, mas, ainda assim, servia-lhe de consolo. Mais de uma vez, Roser, meio a sério, meio em jeito de brincadeira, o advertira de que jamais se livraria dela, porque estavam feitos e destinados a permanecerem juntos, tanto nesta vida como nas futuras. No passado nem sempre foram um casal, dizia, o mais provável era que noutras vidas pretéritas tivessem sido mãe e filho, ou até irmãos… isso explicaria a relação de afeto incondicional que os unia. Essa ideia de repetição infinita de vidas em sucessão sempre acompanhadas da mesma pessoa deixava-o inquieto, mas pensava que se a repetição fosse um facto inevitável, então, mais valia que fosse com Roser do que com qualquer outra. Em todo o caso, aquela confabulação não passava de mera especulação poética, pois ele não acreditava nem no destino nem na reencarnação: ao primeiro considerava-o um truque das telenovelas, e à segunda não lhe atribuía crédito por matematicamente impossível. Segundo Roser, que amiúde se deixava cativar por práticas espirituais de lugares remotos, como o Tibete, as ciências e as matemáticas não podiam explicar todas as múltiplas dimensões da realidade. Isso parecia a Víctor uma desculpa e um argumento pouco razoável.
A simples ideia de se voltar a casar causava-lhe arrepios. Bastava-lhe a companhia dos seus animais de estimação. Sempre conversava com os cães, com o papagaio e com a gata. As galinhas não contavam para esses diálogos, pois nem sequer tinham nome próprio. Iam e vinham à sua vontade, pondo e escondendo os ovos. À noite, quando regressava a casa, contava aos seus companheiros bichos os pormenores do dia. Eram também os seus interlocutores ideais sempre e nas raras ocasiões em que se tornava sentimental, e também o ouviam sem censura quando lhe dava para enumerar em voz alta e de olhos fechados objetos da casa, ou elementos da flora e da fauna do jardim. Era a sua maneira de exercitar a memória e a concentração, do mesmo modo que outros velhos se dedicavam a fazer puzzles. Quando as tardes se faziam longas, e dentro delas cabia tempo para recordar, procedia a desfiar a lista dos seus amores: o primeiro fora Elisabeth Eidenbenz, que conhecera num tempo remoto… 1936! Ao pensar nela, revia-a revestida de uma doce alvura de bolo de amêndoa. Nesse tempo, prometera que, depois de todas as batalhas, quando assentasse sobre a terra exangue a poeira dos escombros, ele a procuraria, mas a vida não lho permitira, e as coisas não aconteceram assim. Quando terminou a guerra, estava muito longe, do outro lado do mundo, casado e com um filho. Procurou-a muito mais tarde, movido apenas por curiosidade, e averiguou que Elisabeth vivia numa pequena cidade austríaca, no sossego e no afã de regar e tratar as suas plantas, completa e deliberadamente alheia à fama do seu heroísmo. Quando descobriu onde vivia, Víctor escrevera-lhe uma carta a que ela nunca respondera. Talvez houvesse chegado o momento de lhe escrever novamente, agora que estava só. Seria uma iniciativa sem risco algum, porque era ínfima a probabilidade de se voltarem a ver. O Chile e a Áustria encontravam-se a mil anos-luz um do outro. De Ofelia del Solar, seu segundo amor, breve e apaixonado, preferia não se lembrar sequer. Os outros foram escassos. Nem amores se podia chamar-lhes. Talvez faíscas, coisas de momento… nada mais. Ainda assim, costumava engrandecê-los quando pensava neles, para manter afastadas as recordações mais amargas. A única que contava e que sempre contara era Roser.
Certo dia, dispôs-se a celebrar o seu aniversário, compartindo com os seus bichos o menu que sempre preparava em homenagem aos melhores momentos da sua infância e juventude. Carme, sua mãe, não era dotada da menor vocação para a cozinha. Dedicara-se sobretudo à arte e à missão de ensinar, ofício que a ocupava durante toda a semana. Aos domingos e dias festivos, também não cozinhava, pois preferia ir dançar sardanas defronte da catedral do Bairro Gótico, e dali dirigia-se a uma taberna onde desfrutava de um copo de vinho tinto na companhia das amigas. Víctor, o pai e Guillem diariamente almoçavam pão com tomate e sardinhas e café com leite, mas, de quando em quando, a mãe amanhecia inspirada e preparava-lhes o único prato que sabia confecionar: o típico arroz negro, cujo pungente aroma ficaria e sempre seria associado por Víctor a celebrações festivas.
Em homenagem a essa lembrança sentimental, Víctor ia sempre ao Mercado Central no dia anterior ao seu aniversário, a fim de comprar os ingredientes para o fumet e os chocos frescos para o arroz. Catalão até à morte, como dizia Roser, que nunca colaborara na confeção daquela refeição festiva. Deixava-se ficar na sala, contribuindo com um concerto de piano, ou permanecia junto dele na cozinha, sentada num tamborete a ler-lhe versos de Neruda, uma ode de sabor marinho, algo como: «No revolto mar do Chile habita o róseo congro, enguia gigante de carne de neve», e era em vão que Víctor lhe fazia notar que, em lugar do congro, rei de todas as aristocráticas mesas, aquele prato era feito com simples cabeças e caudas de peixe, mais comuns e acostumadas à sopa do proletariado, ou então, enquanto Víctor aloirava em azeite a cebola e o pimento, e acrescentava os chocos cortados em rodelas, alguns dentes de alho, tomate picado e arroz, e finalizava a sua obra regando tudo com o caldo a ferver, tingida do negro da tinta dos chocos, dizia-lhe ditos engraçados em catalão, porque entre tanto ir e vir, entre tanto andar para cá e para lá, já se lhe ia esquecendo a língua materna.
Observava como o arroz ia cozendo lentamente numa paelheira. Preparava a receita em duplicado, com os ingredientes de sempre, ainda que tivesse de jantar o mesmo mais vezes durante a semana. Aquele aroma lendário e evocador da infância ia gradualmente invadindo a casa e a alma de Víctor, enquanto ele ia debicando umas anchovas e umas azeitonas espanholas, que em toda a parte se conseguiam encontrar. Essa era uma das vantagens do capitalismo, dizia-lhe Marcel, para o provocar. Víctor dava preferência aos produtos nacionais, pois, segundo ele, uma das formas de patriotismo era, em pequenos gestos, apoiar as indústrias locais, mas o idealismo fraquejava-lhe quando se tratava de assunto tão sério e sagrado como azeitonas ou anchovas. No congelador refrescava uma garrafa de vinho rosé para brindar com Roser, uma vez que o jantar estivesse pronto e servido. Pusera sobre a mesa uma toalha de linho e comprara uma meia dúzia de rosas de estufa e de velas para decorar a mesa. Ela, com a sua habitual impaciência, já teria aberto a garrafa há muito, mas, na sua condição atual, teria de se resignar a esperar. No congelador, havia também uma taça de crema catalana, cujo mais provável destino, uma vez que Víctor não era particularmente apreciador de doces, era acabar devorada pelos cães. Estava nestes preparativos quando o sobressaltou o telefone:
– Parabéns, papá! Feliz aniversário! O que estás a fazer?
– A recordar e a arrepender-me…
– A arrependeres-te de quê?
– Dos pecados que não cometi.
– E o que mais fazes?
– Cozinho, filho. Onde estás?
– Num congresso no Peru.
– Outro? Passas a vida nisso…
– Estás a cozinhar o mesmo prato de sempre?
– Sim… o de sempre. Até parece que a casa cheira a Barcelona!
– Suponho que tenhas convidado a Meche!
– Hummm!
Sempre Meche, a encantadora Meche, que o filho sempre tentava impor-lhe como medida extrema para resolver o problema da viuvez. Víctor admitia que achava atraentes a vivacidade e a leveza de Meche, contrariamente à sua paquidérmica calma. Meche, com a sua atitude aberta e positiva, com as suas esculturas de mulheres de pronunciadas curvas e largas ancas e com a sua horta resplandecente de vegetais, manter-se-ia sempre jovem. Ele, com a sua propensão a fechar-se sobre si, envelhecia e envelheceria rapidamente. Marcel adorava a mãe, e Víctor suspeitava que ainda a chorava às escondidas, mas, apesar disso, estava convencido de que, sem uma companheira, o pai terminaria desleixado e convertido numa espécie de mendigo. Para o distrair e para o dissuadir, Víctor falara-lhe da intenção de restabelecer contacto com uma enfermeira que conhecera nos tempos de juventude, mas, quando se aferrava a uma ideia, Marcel nunca mais soltava o filão.
Meche vivia a uns escassos trezentos metros de distância, e entre as duas moradias havia outros dois terrenos de permeio, separados por fileiras de álamos, mas Víctor considerava-a a sua única vizinha, pois aos outros apenas os cumprimentava com distância. Acusavam-no de ser comunista por ser exilado e por ter trabalhado num hospital de pobres. Por norma, evitava toda e qualquer companhia. Bastavam-lhe os colegas e os pacientes, mas não conseguia livrar-se de Meche, segundo Marcel, a companheira ideal: madura, viúva, com filhos e netos, e sem vícios maus ou notórios, oito anos mais jovem do que ele, alegre e criativa, e, além disso, gostava muito de animais.
– Prometeste-me que a ias convidar, papá! Não te esqueças que deves muitos favores e atenções à senhora!
– Olha… ela só me deu a gata porque estava farta de, volta e meia, ter de a vir aqui buscar… e não sei o que te leva a pensar que uma mulher absolutamente normal se haveria de enamorar por um velho coxo, arredio e mal vestido como eu! A menos que estivesse desesperada… e nesse caso, para que haveria eu de querer estar com ela?
– Não te faças de tonto, papá!
Aquela mulher perfeita também cozinhava bolachas e biscoitos e cultivava tomates, que lhe trazia discretamente e que deixava numa canasta que dependurava num gancho na entrada. Não se ofendia quando ele se esquecia de lhe agradecer. O seu habitual e aparentemente inesgotável entusiasmo era quase estranho e suspeito. Aparecia frequentemente com pratos excelentes e pouco convencionais, como sopa fria de abóbora ou frango guisado com pêssego e canela, oferendas que Víctor Dalmau interpretava como uma forma de suborno. A mais elementar prudência prescrevia distância. Víctor planeava passar os últimos anos da sua velhice calado, sossegado e tranquilo.
– Custa-me que estejas aí sozinho no teu aniversário, papá!
– Tenho a companhia da tua mãe, Marcel. Nunca estou só.
Uma longa pausa na ligação levou Víctor a aclarar que, embora não parecesse, permanecia lúcido e que aquilo de jantar com a mulher falecida era apenas um metafórico ritual anual, como a Missa do Galo, uma espécie de celebração íntima e privada. Nada de fantasmas… apenas um pouco de prazer melancólico e solitário recordando… um brinde por aquela mulher magnífica que, com alguns sobressaltos, era verdade, o suportara várias décadas.
– Boa noite, velhote! Não te deites muito tarde. Deve estar um gelo por essas bandas…
– E tu, filho, passa uma boa noite de farra e deita-te de manhã, que bem falta te faz…
Passava pouco das sete da tarde. Já escurecera e a temperatura descera alguns graus. Em Barcelona, a ninguém ocorreria um jantar de arroz negro antes das nove, e no Chile o costume era mais ou menos o mesmo. Jantar tão cedo era coisa de velhos. Víctor dispôs-se a esperar comodamente instalado na sua poltrona favorita, que, apesar da desconjuntada e velha armação, tão bem adquirira e mantinha pronta e convidativa a forma do seu corpo, desfrutando do aroma da madeira de pinho que ardia na lareira e antecipando o prazer da refeição, com o livro que estava a ler, acompanhado de um pequeno copo de pisco simples, sem gelo, como ele gostava, a única bebida branca que se permitia ao final do dia, pois acreditava que a excessiva solidão conduz ao alcoolismo. O conteúdo da paelheira era tentador, mas decidiu resistir-lhe até uma hora mais apropriada.
Estava nestas bucólicas divagações domésticas, quando os cães, que se haviam afastado para o necessário e costumeiro passeio pelos arredores antes de se recolherem, o interromperam com um coro de latidos furiosos. Deve ser alguma doninha, pensou. Mas em seguida, quando ouviu o barulho do motor de um carro lá fora, sentiu um estremecimento percorrer-lhe o corpo: Não pode ser Meche! Já não teria tempo de apagar a luz e de fingir que estava a dormir… Normalmente os cães corriam ao seu encontro a saudá-la alegremente, mas desta vez continuaram a ladrar. Víctor estranhou ainda mais quando ouviu uma buzina, porque esse procedimento não era habitual em Meche, a menos que precisasse de ajuda para descarregar um dos seus presentes incríveis, como um leitão assado ou uma das suas obras de arte. Meche tornara-se famosa pelas suas esculturas, sempre representando grandes mulheres gordas e nuas, algumas tão pesadas e volumosas como um bom leitão. Víctor possuía vários exemplares, distribuídos por todos os recantos da casa, e um outro no seu consultório, que servia para surpreender os pacientes e para relaxar a tensão do primeiro contacto.
Pôs-se de pé com alguma dificuldade e, resmungando, acercou-se à janela com as mãos comprimindo os rins, um dos seus pontos mais débeis. Sofria também da coluna por causa da coxeira, que o forçava a pôr mais peso sobre a perna direita. A vara de quatro parafusos que lhe haviam colocado na coluna, bem como o seu firme propósito de conservar sempre uma postura correta, havia, até certo ponto, mitigado e diminuído o problema, mas sem o resolver ou erradicar por completo. Esse era outro bom motivo para defender o seu estatuto de viúvo: conservar a liberdade de falar sozinho e de praguejar e de se queixar das diversas dores que o apoquentavam, as quais, nem por sombras, admitiria em público. Orgulho! Tanto a mulher como o filho lhe haviam frequentemente apontado esse defeito. Não se tratava de uma questão de simples orgulho, mas sim vaidade e brio pessoal: um truque de ilusionista para se defender da inevitável decrepitude. Não bastava caminhar direito nem dissimular a dor ou o cansaço. Também disfarçava muitos outros sintomas da idade: avareza, desconfiança, mau humor, algum azedume, e também maus hábitos de homem solitário, como não se barbear diariamente, repetir as mesmas histórias ou as mesmas anedotas, falar demasiadamente de si próprio ou de dinheiro e de questões de saúde.
À luz dos dois candeeiros da entrada, divisou uma camioneta parada frente à sua porta. Quando outra buzinadela se fez ouvir, Víctor, supondo que o condutor tinha medo dos cães, chamou-os com um assobio. Os cães recuaram, obedecendo-lhe de má vontade e rosnando entre dentes.
– Quem é? – gritou Víctor.
– Sou a sua filha! Doutor Dalmau, segure os cães, por favor.
A mulher não esperou que Víctor a convidasse a entrar. Passou rapidamente por ele, tentando o mais possível evitar a proximidade dos cães, receosa. Os dois maiores farejavam-na de perto, desconfiados, e o mais pequeno dos três, o que sempre parecia disposto a atacar, continuava a rosnar com os dentes à mostra. Víctor seguiu-a, atónito, e, sem pensar, ajudou-a a livrar-se do casacão de viagem, pousando-o sobre o banco da entrada. Ela sacudiu-se como um animal encharcado, comentando o dilúvio, e estendeu-lhe timidamente a mão.
– Boa noite, doutor! Chamo-me Ingrid Schnake… posso entrar?
– Bem, parece-me que já entrou!
Víctor examinava a intrusa à luz vacilante do fogo e das lâmpadas da sala. Vestia calças de ganga desbotadas, uma camisola de lã, branca e de gola alta, e calçava umas botas de homem. Nem maquilhagem nem joias visíveis. Não era uma jovem, como primeiramente supusera. Tratava-se de uma mulher já com rugas nos olhos, que enganava quanto à idade, pois usava o cabelo comprido, muito elegante, e de movimentos graciosos. Recordava-lhe alguém.
– Desculpe aparecer assim de chofre e sem avisar! Vivo bastante longe, no Sul, e perdi-me pelo caminho. Além disso, não conheço bem Santiago. Nunca pensei que chegaria aqui a uma hora destas…
– Tudo bem. Em que posso ajudá-la?
– Hummm! O que é este cheiro tão apetitoso?
Víctor Dalmau preparava-se para pôr aquela estranha na rua, que se introduzia assim, sem mais nem porquê, em sua casa, ainda por cima a uma hora daquelas, mas a curiosidade foi mais forte do que a irritação.
– É arroz de chocos.
– Vejo que tem a mesa posta. Interrompo? Posso voltar amanhã a uma hora mais apropriada, se preferir. Espera visitas, certo?
– Só a si, suponho! Como disse que se chamava?
– Ingrid Schnake. O senhor não me conhece, mas eu sei muito sobre si. Há muito tempo que o procuro.
– Gosta de vinho rosé?
– Gosto de todos os tipos de vinho. Receio que vai ter de me convidar a provar também um pouco desse arroz. Não como nada desde o pequeno-almoço! Chega para mim?
– Chega para a vizinhança inteira. Já está tudo pronto. Vamos sentar-nos à mesa e jantar. Entretanto conta-me por que raio é que uma miúda tão bonita anda à minha procura.
– Já lhe disse antes. Porque sou sua filha. E também já não sou nenhuma miúda, como diz. Tenho cinquenta e dois anos bem vividos, e…
– O meu único filho chama-se Marcel – interrompeu-a Víctor.
– Doutor, garanto que não vim aqui no intuito de o incomodar. Queria apenas conhecê-lo.
– Vamos pôr-nos à vontade, Ingrid. Pelo que vejo, esta vai ser uma conversa que promete durar.
– Tenho muitas perguntas para lhe fazer. Importa-se se começarmos com a sua história? Se estiver de acordo, depois conto-lhe a minha.
No dia seguinte, Víctor telefonou a Marcel pouco depois do amanhecer.
– Filho, acontece que de repente se nos aumentou a família. Tens uma irmã, um cunhado e três sobrinhos. A tua irmã, que, na verdade não o é exatamente tua irmã, chama-se Ingrid, e vai ficar aqui em casa uns dias, porque temos muito que contar um ao outro…
Enquanto ele falava com Marcel, a mulher, que na noite anterior tão inadvertidamente lhe irrompera casa adentro, dormia vestida e coberta por duas mantas no desconjuntado sofá da sala. A ele, que sempre fora propenso à insónia, uma noite em claro não lhe fazia a menor diferença, e durante aquela madrugada sentiu-se tão desperto como não voltara a sentir-se desde a morte de Roser. Pelo contrário, a visitante estava exausta, depois de ter passado dez horas a ouvir a história de Víctor e a contar-lhe a sua. Dissera-lhe que a sua mãe era Ofelia del Solar, e que, segundo sabia, ele era seu pai. Levara vários meses a conseguir averiguar os factos, e, não fora pela consciência pesada de uma anciã, permaneceria para sempre na ignorância.
E foi assim que, mais de meio século depois, Víctor se inteirou de que Ofelia ficara grávida aquando do seu romance. Por isso desaparecera tão subitamente da sua vida. Por isso a paixão se lhe transformara em rancor e rompera com ele sem qualquer explicação razoável.
– Creio que se sentiu ao mesmo tempo arrependida, prisioneira e sem futuro, devido à escolha errada que fizera. Pelo menos foi essa a única explicação que recebi – disse-lhe Ingrid. E continuou a relatar-lhe os pormenores que envolviam o seu nascimento.
Para fazer face à recusa de Ofelia, o padre Vicente Urbina tomara em mãos próprias o assunto da adoção da criança. A única cúmplice no plano fora Laura del Solar, sob a estrita promessa de nunca, mas nunca, revelar a ninguém o sucedido. Tratava-se, ademais, de uma mentira piedosa e necessária, perdoada em confissão, e diretamente aprovada desde as incomensuráveis altitudes celestes. A parteira, uma tal de Orinda Naranjo, encarregou-se de cumprir à risca as instruções do sacerdote, mantendo Ofelia em estado de semi-inconsciência, antes, durante e depois do parto, subtraindo o bebé com a cumplicidade da avó assim que este nascera, antes que alguém no convento disso se apercebesse ou começasse a fazer indagações. Quando Ofelia, alguns dias mais tarde, despertou do transe em que propositadamente fora induzida, explicaram-lhe que dera à luz um menino que morrera pouco depois de nascer.
– Só que não era um menino. Era uma menina… e era eu – concluiu Ingrid.
Haviam contado à mãe aquela versão, para evitar que ela, se num futuro hipotético suspeitasse do ocorrido, não pudesse, de forma alguma, localizar Ingrid. Dona Laura em tudo participou, e com tudo estivera submissamente de acordo, inclusive em tomar parte na farsa do cemitério onde plantaram uma cruz sobre um caixão vazio. A responsabilidade não era, no entanto, de sua lavra. O artífice fora alguém muito mais bem preparado do que ela. Um sábio, um homem de Deus… nada mais nada menos que o padre Urbina.
Durante os anos seguintes, ao ver que, ao fim e ao cabo, Ofelia conseguira um bom casamento, dois filhos saudáveis e uma vida tranquila, Dona Laura sepultara as suas dúvidas e a sua consciência no mais recôndito sótão da memória. O padre Urbina fizera-lhe saber que a bebé fora adotada por um casal de boa gente do Sul, católicos e de boas famílias. Nada mais podia dizer-lhe. E, sempre que ela tentava saber mais, recordava secamente a Dona Laura que deveria dar aquela neta como morta, e que, além do mais, não chegara nunca a pertencer à família, ainda que nas veias levasse o seu sangue. Fora desígnio de Deus confiá-la e entregá-la a outros pais. O casal que adotara a menina descendia de famílias alemãs. Altos, robustos, de cabelos loiros e olhos cor de céu, viviam numa bela cidade fluvial onde abundavam as árvores e a chuva, e que se situava a mais de oitocentos quilómetros de Santiago… mas disso não soube Dona Laura. Quando o casal Schnake perdera já a esperança de ter filhos próprios, recebera com profunda comoção a recém-nascida que lhes entregara o padre Urbina. Um ano mais tarde, a mulher engravidou. Tiveram ainda mais dois filhos, de aspeto tão teutónico como o dos progenitores, de forma que, entre eles, Ingrid, de baixa estatura, de cabelos e olhos escuros, surgia como um erro genético.
– Desde miúda que me sentia diferente, mas os meus pais mimaram-me até mais não poderem e nunca me disseram que fui adotada. Mesmo agora, se acaso falo no assunto, a minha mãe começa logo a chorar, apesar de ser um facto do conhecimento de toda a família – explicou Ingrid a Víctor.
Ao vê-la assim, exposta, a dormir no sofá, Víctor pôde finalmente observá-la à vontade. Não era a mesma mulher com quem conversara horas a fio. Adormecida, assemelhava-se à Ofelia da juventude, as mesmas feições delicadas, as maçãs do rosto vagamente infantis, as mesmas sobrancelhas arqueadas, as madeixas do cabelo formando-lhe um V sobre a testa, a pele muito clara com um matiz dourado… só lhe faltavam os olhos azuis para ser quase igual à mãe. Assim que chegara a sua casa, Víctor pensou que a conhecia de alguma parte, mas não lhe descobriu de imediato a semelhança com Ofelia. Agora, quando a via relaxada, pôde notar todas as semelhanças físicas e refletir sobre as diferenças de personalidade. Ingrid nada possuía da inconsequente coqueteria daquela Ofelia jovem que ele tanto amara. Era intensa, séria e formal. Era uma mulher da província, criada num ambiente conservador e religioso, com uma vida que avançara tranquila e sem oscilações de maior, até ao dia em que descobrira as suas origens e viera procurar o seu verdadeiro pai. Pensou que Ingrid não tinha muitas parecenças com ele: nem o corpo alto e seco, nem o nariz aquilino, nem o cabelo espetado, nem a expressão séria, ou sequer o seu carácter introvertido. Era uma mulher suave. Pensou que devia ser maternal e divertida. Tentou imaginar como teria sido uma filha sua com Roser, e lamentou que não a tivessem tido. A princípio, na verdade, não se consideravam realmente casados. Estavam juntos apenas por um acordo temporal, que convinha a ambos. Quando se aperceberam de que queriam e que estavam mais casados do que ninguém, haviam transcorrido vinte anos, e era já demasiado tarde para pensar em filhos.
Ia custar-lhe acostumar-se a aceitar a presença de Ingrid na sua vida, pois, até então, a sua única família era Marcel. Imaginou que Ofelia estivesse tão estupefacta como ele. A ela também lhe surgira em plena velhice aquela filha inesperada, que por acréscimo trouxera três netos. O seu marido, à semelhança dos pais adotivos, também era de origem alemã, tal como muitos outros habitantes de algumas províncias do Sul, desde o século XIX, graças a uma lei que consagrava uma política de imigração seletiva. A ideia era povoar e trazer para o país brancos de pura cepa, que inculcassem espírito de disciplina e de trabalho aos chilenos nativos, que tinham fama de indolentes. Nas fotografias dos filhos que Ingrid lhe mostrou, apareciam três jovens, um rapaz e duas raparigas, com aspeto de valquírias, que Víctor não conseguiu reconhecer como seus descendentes.
– O filho de Ingrid está casado e a mulher dele está grávida. Dentro de pouco tempo serei bisavô – contou por telefone a Marcel.
– Então… eu sou tio dos filhos de Ingrid. Qual será o meu grau de parentesco com este filho do filho que vai nascer?
– Creio que será tio-avô.
– Que horror. Isso faz-me sentir velho! Não posso deixar de pensar na avó. Lembras-te como ela queria que eu lhe desse bisnetos? Coitada da velhota… morreu sem saber que já os tinha. Uma neta e três bisnetos!
– Temos de ir conhecê-los, Marcel! São todos meio alemães… e ainda por cima, de direita, e pior do que tudo… eram pinochetistas. Portanto, vamos ter de engolir muitos sapos e de morder a língua na presença deles.
– Oh, papá! O que importa é que são da família. Não vamos pôr-nos a discutir política!
– Também tenho de estabelecer alguma forma de contacto regular com Ingrid e com os meus netos. Caíram-me do céu, como maçãs. Sabes, acho que estava melhor antes, sozinho e tranquilo no meu canto.
– Não digas asneiras, papá! Eu estou a morrer de curiosidade para conhecer a minha irmã… ainda que não seja mesmo minha irmã!
Víctor imaginou que um reencontro com Ofelia, mais cedo ou mais tarde, seria inevitável se a família se reunisse, e viu essa possibilidade com naturalidade. Há muito se curara da mágoa e da nostalgia que sentia em relação a ela, e tinha alguma curiosidade em revê-la e corrigir a má impressão que esta lhe causara onze anos antes, no Ateneu de Caracas. Oxalá tivesse a oportunidade de lhe dizer que, graças a ela, finalmente possuía raízes no Chile. Raízes fundas, imutáveis. Raízes que não eram apenas de teor sentimental. Raízes que, ironicamente, nunca tivera em Espanha. Pareceu-lhe também uma partida do destino que, ao fim e ao cabo, viesse a fazer parte, ainda que indiretamente, da família Del Solar, a mesma que tão tenaz e ferozmente se opusera à imigração dos exilados espanhóis no Winnipeg. Ofelia dera-lhe um imenso presente: abrira-lhe a porta do futuro. Já não era um velho sem outra companhia que a dos seus animais de estimação. Tinha uma descendência no Chile, para além de Marcel, claro, que nunca se considerara pertença de outro lugar. Aquela mulher fora muito mais importante na sua vida do que alguma vez imaginara. Nunca chegara a entendê-la. Ofelia era muito mais complexa e atormentada do que ele a julgara. Pensou nos seus quadros e supôs que, ao optar por casar, ao colocar em primeiro plano a segurança do matrimónio e do seu lugar na sociedade, Ofelia se exilara de si mesma, renunciando a um vetor essencial da sua alma, que talvez já entrada na idade madura pudesse ter, pelo menos em parte, recuperado. Depois, ao recapitular mentalmente o que ela lhe contara sobre Matías Eyzaguirre, concluiu que a renúncia de Ofelia não fora motivada por frivolidade ou por capricho, mas sim por um amor estranho e peculiar.
Um ano antes, Ingrid Schnake recebera uma carta de uma desconhecida que dizia ser a sua mãe biológica. Não ficou totalmente surpreendida com o facto, uma vez que sempre se sentira diferente do resto da família. Primeiro, abordou os pais adotivos, que por fim admitiram a verdade, e depois preparou-se para receber a visita de Ofelia e de Felipe del Solar, que chegaram acompanhados por uma anciã envolta dos pés à cabeça em luto rigoroso: Juana Nancucheo. Nenhum dos três teve sequer um instante de dúvida. Ingrid era de facto a filha perdida de Ofelia. As semelhanças eram evidentes. Desde então, Ofelia visitara por três ocasiões a filha, que a tratava com a cortesia indiferente que se dispensa aos familiares distantes, pois a sua verdadeira e única mãe era Helga Schnake. Aquela visitante com dedos manchados de tinta, que arrastava o vício de continuamente se lamentar de tudo, era, para Ingrid, uma estranha e uma desconhecida. Ingrid tinha consciência da semelhança física que ambas partilhavam e receava herdar-lhe também os defeitos, e que, ao envelhecer, se tornasse azeda e narcisista como a mãe. Por Ofelia, foi sabendo, a espaços, como peças de um quebra-cabeças, os detalhes do seu nascimento. Só no terceiro encontro é que Ofelia lhe revelou o nome do pai. Decidida a sepultar e deixar para trás o passado, Ofelia evitava falar daquela época, tudo cobrindo com a terra do tempo e do esquecimento. Obedecera à ordem do padre Urbina, de guardar silêncio sobre o ocorrido, e tanto se abstivera de referir aquele recém-nascido distante e desterrado num cemitério rural que esse episódio perdido da juventude acabara por se perder e se diluir através das pregas daquela reiterada omissão. Voltou a recordar a criança aquando do funeral de Matías e dispôs-se a cumprir a promessa que haviam feito quando casaram: de que o bebé seria trasladado e com eles repousaria no jazigo de família do cemitério de Santiago. Essa teria sido a altura ideal para exumar e trasladar os restos mortais, mas Felipe convenceu-a do contrário, com o argumento de que, caso o fizesse, teria de dar infindáveis explicações aos filhos e ao resto da família.
Quando se agravou o estado de saúde de Laura del Solar, Ofelia já vivia há alguns anos sozinha na sua casa de campo, dedicada exclusivamente à pintura, enquanto o filho mais velho construía uma barragem no Brasil e a filha trabalhava num museu em Buenos Aires. Dona Laura, a ponto de cumprir um século de existência, desde há algum tempo delirava continuamente. Duas abnegadas empregadas se revezavam para a cuidar, sob a estrita e implacável supervisão de Juana Nancucheo, que, embora fosse quase da idade de Laura, aparentava, no mínimo, ter quinze anos a menos. Desde sempre servira aquela família e pretendia continuar assim, enquanto Dona Laura dela necessitasse. O seu dever era cuidá-la até ao último suspiro. A patroa permanecia acamada, repousando por entre almofadões de penas e lençóis de linho bordados à mão, vestida nas suas camisas de dormir importadas de França, rodeada dos refinados objetos que o marido comprara sem atender a gastos. Após a morte deste, Dona Laura libertara-se da armadura de ferro que fora para ela o casamento com aquele homem despótico e pôde, finalmente, dedicar-se a si própria e aos seus interesses, até que a velhice a deixou inválida e que a senilidade não lhe permitiu continuar a comunicar com o fantasma de Leonardo, seu eterno Bebé, durante as sessões de espiritismo. Foi-se-lhe embotando a mente. Confundia-se e perdia-se dentro da sua própria casa, e, quando se via ao espelho, perguntava quem era aquela velha tão feia que todos os dias a vinha perturbar. Por fim, deixou de poder levantar-se, pois as pernas e os pés, deformados e inchados pela artrite, recusavam-se a suportar-lhe o peso. Ficava prostrada no leito, onde prolongados períodos de pranto se sucediam a outros de total apatia, chamando o Bebé com um terror agónico e incompreensível, que o médico procurava, em vão, esmorecer com antidepressivos e calmantes. A família em peso, que acompanhava o fim de Dona Laura, acreditava que ela se ressentia da perda de Leonardo e que sofria como se a aquela morte tivesse acabado de suceder.
Felipe del Solar, convertido em chefe do clã desde a morte do pai, viera propositadamente de Londres para tomar as rédeas da situação, colocar em ordem os negócios, pagar contas e dispor e tratar da distribuição da herança. Dizia-se que tinha um pacto com o demónio e que, graças a isso, não envelhecia, contrariando a sua mania de hipocondríaco. Padecia de mil e uma doenças que arrastava consigo, umas antigas, outras recentes, uma lista a que acrescentava um novo achaque por semana. Doíam-lhe até as pontas do cabelo! Mas, por uma dessas incompreensíveis ironias da vida e do mundo, nada disso transparecia. Continuava a ser o cavalheiro distinto que sempre fora. Convertera-se a régua e esquadro num gentleman inglês, trajando impecável, casaca e laço de seda, e com uma eterna expressão de fastio por tudo e por todas as coisas. Atribuía a sua boa figura e o seu resistente e ainda bom aspeto ao nevoeiro londrino, ao excelente whisky escocês e ao tabaco de cachimbo holandês que sempre fumava. Na mala de viagem trazia os documentos que lhe permitiriam vender a casa da Rua Mar del Plata, cujo terreno, sito no centro da capital, valia uma fortuna. Deveria, no entanto, esperar a morte de Dona Laura para finalizar os trâmites. Esta, reduzida a quase nada, persistiu chamando o Bebé até ao último alento, sem que, até ao fim, encontrasse paz, de nada lhe valendo os medicamentos ou as orações. Juana Nancucheo fechou-lhe os olhos e a boca, rezou uma ave-maria pela sua alma e retirou-se, exausta e arrastando os pés. Pelas nove horas da manhã do dia seguinte, enquanto a funerária preparava a casa para o velório, com o caixão depositado no salão principal devidamente ornado de coroas de flores, círios e fitas de tecido negro, Felipe reuniu os irmãos para lhes comunicar a venda da propriedade. Depois chamou Juana à biblioteca para lhe dizer o mesmo:
– Juana, esta casa vai ser demolida para se construir um edifício de apartamentos. Mas a ti não te vai faltar nada. Diz-me como e onde gostavas de viver.
– O que quer que lhe responda, menino Felipe? Não tenho família nem conhecidos ou amigos. Estou a ver que me tornei num peso para todos. Vai pôr-me num lar, não é?
– Há algumas residências para idosos muito boas, Juana, mas não farei absolutamente nada que não queiras. Preferes viver com Ofelia ou com outra das minhas irmãs?
– Eu vou morrer daqui a um ano, por isso, tanto me faz. Morrer é morrer e pronto. Está feito, e por fim descansa-se um pouco.
– Coitada… a minha mãe não pensava assim!
– Dona Laura sentia um grande peso na consciência, menino Felipe… por isso tinha tanto medo de morrer.
– Oh, Juana! Pelo amor de Deus! O que é que tanto afligia a minha mãe? Estava demente e ficou obcecada com a lembrança de Leonardo – alvitrou Felipe.
– Leonardo? Não, menino Felipe. Nos últimos tempos ela já nem se lembrava dele. Chorava pelo outro bebé… o bebé da Ofelita.
– Não estou a perceber, Juana.
– Lembra-se de que ela engravidou quando era ainda solteira? Pois bem, esse bebé não morreu, como disseram na altura.
– Mas se eu próprio vi a campa!
– Estava vazia. Era uma menina. Levou-a uma mulher… não me lembro do nome. Era a parteira. Isto contou-me Dona Laura, e por isso chorava. Porque decidiu fazer caso do que lhe disse o padre Urbina e roubou a filha da Ofelita. Passou a vida inteira com esse remorso a corroê-la por dentro, como um cancro.
Felipe, a princípio, esteve tentado a atribuir aquela história macabra ao delírio da mãe, ou, talvez, à senilidade da própria Juana, pensando também que, a ser verdade, mais valia manter Ofelia na ignorância. Contar-lhe tudo agora seria uma crueldade desnecessária. Mas Juana comunicou-lhe que, no leito de morte, prometera a Dona Laura reencontrar a criança para que ela pudesse, enfim, subir ao Céu, caso contrário ficaria para sempre no Purgatório, e uma promessa a um moribundo é coisa sagrada. Então apercebeu-se de que seria impossível silenciar Juana. Mais uma vez, seria ele que tomaria conta da situação antes que toda a família, e particularmente Ofelia, soubesse a verdade. Prometeu a Juana que iria pôr-se em campo e investigar, e que a manteria sempre informada e a par do que fosse descobrindo. «Comecemos então pelo padre, menino Felipe. Eu irei consigo.» Não conseguiu livrar-se dela. A cumplicidade que os unira durante oitenta anos e a certeza de que ela era capaz de lê-lo até ao pensamento mais remoto obrigaram-no a atuar sem desculpas nem demoras.
Nesse tempo, Vicente Urbina deixara já de exercer funções, vivendo numa residência para padres idosos, ao cuidado de freiras. Foi fácil encontrá-lo e conseguir uma marcação. O padre ainda estava lúcido e lembrava-se perfeitamente dos seus antigos fregueses, principalmente dos Del Solar. Recebeu Felipe e Juana, desculpando-se por não lhe ter sido possível administrar pessoalmente a extrema-unção a Dona Laura, pois, ao tempo da morte desta, fora ele operado aos intestinos, e a convalescença demorava-se e prolongava-se indefinidamente. Sem grandes rodeios, Felipe repetiu-lhe o que Juana lhe contara. Com a sua experiência de advogado, ia preparado para um interrogatório complicado e para a necessidade de colocar o prelado entre a espada e a parede para o obrigar a confessar, mas nada disso sucedeu.
– Fiz o que era melhor para a família. Sempre fui muito cuidadoso e criterioso na escolha dos pais adotivos. Todos eram católicos praticantes – disse Urbina.
– Quer dizer então que Ofelia não foi o único caso?
– Não… Houve muitas jovens a quem sucedeu o mesmo. Mas nunca me deparei com nenhuma tão teimosa e resistente à ideia da adoção como Ofelia. Em geral, todas estavam de acordo com a ideia de se verem livres das criaturas. E o que mais poderiam fazer?
– Quer dizer, não foi preciso enganá-las para lhes roubar as crianças!
– Felipe! Não te admito que me faltes ao respeito! O meu dever era protegê-las e evitar o escândalo. Eram todas jovens de boas famílias!
– Escândalo é o senhor padre, com a velada aprovação da Igreja, ter cometido um crime, quero dizer, vários, muitos crimes. E isso castiga-se com a prisão. O senhor, infelizmente, já não tem idade para cumprir pena, mas exijo que me diga o nome das pessoas a quem entregou a filha de Ofelia. Vou escavar isto até ao fundo. Quero saber a verdade!
Vicente Urbina não fizera um registo dos casais recetores nem das crianças entregues. Era ele quem pessoalmente se encarregava de efetuar as transações. A parteira Orinda Naranjo atendia apenas aos partos e, de qualquer modo, já morrera há muito. Foi então que interveio Juana Nancucheo, dizendo que, segundo Dona Laura, quem recebera a menina fora um casal de alemães residentes no Sul do país. Certa ocasião, o padre Urbina deixara inadvertidamente escapar a informação e a anciã nunca mais esquecera esse detalhe acidentalmente revelado.
– Alemães, dizes tu? Devem ser uns que viviam em Valdivia! – cogitou o bispo.
Não se recordava do nome do casal, mas garantiu-lhes que a bebé fora bem acolhida e que nada lhe faltara. Era um casal com uma folgada situação económica. Por esse comentário, Felipe deduziu que aquelas entregas de crianças para adoções à margem legal envolviam também uma transação pecuniária. Em poucas palavras, Monsenhor dedicava-se à venda de crianças. Então, desistiu do primeiro plano, que consistia em tentar extrair de Urbina a maior quantidade de informação possível, para passar a uma segunda fase: seguir a pista das doações que a Igreja recebera com a interferência do padre. Seria uma tarefa difícil, mas não de todo impossível. Era necessário recorrer aos contactos certos. Felipe sabia que o dinheiro sempre deixa rasto, e mais uma vez não se enganou. Oito meses passaram em suspensa espera até conseguir obter a informação pretendida. Localizou os pais adotivos de Ingrid quando já se encontrava em Londres, continuamente fustigado pelas sucintas mensagens que Juana lhe enviava, escritas em cartões postais e salpicadas de erros ortográficos e gramaticais, a recordar-lhe a sua responsabilidade na resolução do assunto da descoberta da filha de Ofelia. A anciã escrevia-lhe tais missivas a muito custo e enviava-lhas às escondidas, pois comprometera-se a guardar segredo absoluto até que Felipe desvendasse o enigma. Ele repetia-lhe uma e outra vez que tivesse paciência, mas Juana não podia dar-se esse luxo nem esse tempo, pois pressentia que lhe eram já escassos os dias neste mundo, e, antes de partir, tinha de cumprir aquele derradeiro propósito: encontrar a criança, e assim resgatar Dona Laura do Purgatório. Quando Felipe lhe perguntou como sabia a data exata da sua morte, Juana respondeu-lhe simplesmente que a tinha assinalada com um círculo a vermelho no calendário pendurado na cozinha. Estava, pela primeira vez, ociosa. Havia-se mudado para casa de Ofelia, e sem mais tarefas a cumprir, dedicava-se a preparar o seu próprio funeral.
Numa sexta-feira de dezembro, o correio finalmente trouxe a Felipe a lista das doações recebidas pela Igreja por intermédio do padre Urbina durante o ano de 1942. A única que lhe chamou a atenção foi a efetuada por Walter e Helga Schnake, proprietários de uma fábrica de móveis, que, segundo os seus informadores, prosperara, tendo atualmente várias sucursais ao longo das cidades do Sul. Eram todas dirigidas pelos filhos do casal e pelo genro. Tal como lhes garantira Urbina, tratava-se de uma família endinheirada. Chegara o momento de viajar novamente para o Chile e confrontar Ofelia.
Felipe encontrou a irmã a misturar tintas no seu atelier, um armazém gélido, com um forte cheiro de aguarrás e bordado de teias de aranha. Estava ainda mais gorda e andrajosa, com o cabelo totalmente branco, emaranhado e sujo, e usava um colete ortopédico devido às dores de coluna que a atormentavam. Juana, sentada num recanto, agasalhada num casaco comprido, usando luvas e gorro de lã, conservava-se igual.
– Quem te visse agora, Juana, jamais imaginaria que vais morrer em breve! – cumprimentou ele, beijando-a na testa.
Preparara cuidadosamente um discurso no tom mais compassivo que lhe fora possível para contar à irmã que tinha uma filha, mas todas as precauções e rodeios foram desnecessários, pois Ofelia reagiu com uma curiosidade vaga e distante, como se tal facto fosse apenas uma brincadeira ou uma qualquer trivialidade longínqua do seu mundo.
– Imagino que tenhas muita curiosidade em conhecer a tua filha – disse-lhe Felipe.
Ela explicou-lhe de teriam de esperar algum tempo, pois, no momento, estava embarcada no exigente projeto de pintar um mural. Juana interveio então para dizer que nesse caso iria ela, porque queria e devia ver a menina com os seus próprios olhos, para poder, enfim, morrer em paz. Foram os três.
Juana Nancucheo viu Ingrid uma única vez e, finalmente tranquila, comunicou com Dona Laura, entre duas orações, como fazia todas as noites, a fim de lhe explicar que a sua neta fora enfim encontrada, e que, estando expiada a sua culpa, poderia finalmente entrar no Céu. A ela, Juana, restavam-lhe ainda vinte e quatro dias. Voluntariamente, deixou-se ficar na cama, rodeada dos seus santos de cabeceira e das fotografias dos seus entes mais queridos, pertencentes todos à família Del Solar, e dispôs-se a morrer de inanição. Não voltou a comer ou a beber, apenas aceitando um pouco de gelo, de quando em quando, para humedecer a boca ressequida. Partiu sem dor nem sobressalto alguns dias antes da data que previra.
– Estava preparada e com pressa – disse Felipe, desolado e órfão.
Livrou-se do caixão de pinho vulgar que Juana comprara e que mantinha erguido a um canto do quarto e fê-la sepultar com direito a missa cantada e um ataúde de madeira de nogueira com acabamentos em bronze, no jazigo dos Del Solar, junto dos seus pais.
Ao terceiro dia, o temporal amainou finalmente e o sol surgiu, desafiando o inverno, e os álamos, que como sentinelas velavam a casa de Víctor Dalmau, amanheceram recém-lavados. A neve cobria toda a cordilheira e refletia o violeta do céu limpo. Os dois cães grandes puderam finalmente afastar a modorra do confinamento forçado e passear pelo jardim húmido a rebolar à vontade pela lama, mas o mais pequeno, que em idade canina era tão velho como o seu dono, deixou-se ficar estendido junto à lareira. Ingrid Schnake passara esses últimos dias com Víctor, não tanto devido ao temporal, uma vez que estava acostumada à chuva perpétua da sua província do Sul, mas porque não queria que terminasse aquele primeiro encontro em que por fim se conheciam. Tinha planeado e ansiado aquele momento durante meses. Insistira com o marido e os filhos para que não a acompanhassem.
– Tinha de fazer isto sozinha, percebe? Custou-me bastante, porque é a primeira vez que viajo só e não sabia como me iria receber – disse a Víctor.
Diferentemente do que sucedera com a mãe, com quem não conseguiu franquear a distância imposta por mais de cinquenta anos de afastamento, com Víctor facilmente se tornaram amigos, tendo ficado claro que ele jamais podia competir pelo afeto da filha com Walter Schnake, o seu adorado pai adotivo, o único pai que como tal ela reconhecia.
– Está muito velhinho, Víctor – contou-lhe. – Vai morrer-me a qualquer momento.
Ingrid e Víctor descobriram que ambos tocavam guitarra por necessidade de consolo, que eram adeptos da mesma equipa de futebol, que a ambos agradava ler romances de espionagem e que sabiam recitar de memória muitos versos de Neruda: ela, os de amor, ele, os de sangue. Não eram estas, contudo, as únicas coisas que tinham em comum. Também partilhavam uma grande tendência para a melancolia, tendência essa que ele procurava manter afastada, mergulhando no trabalho, e que ela combatia com antidepressivos ou com o refúgio na inabalável segurança que lhe transmitia a família. Víctor lamentou que a filha tivesse herdado dele aquele traço, em lugar do espírito artístico ou dos olhos cerúleos de Ofelia.
– Quando estou mais depressiva, é o carinho que sempre me salva – confidenciou-lhe Ingrid, para logo acrescentar que o afeto jamais lhe faltara: era a favorita dos pais, a protegida entre os irmãos mais novos e estava casada com um colosso cor de mel, capaz de erguê-la com um único braço e de devotar-lhe o amor tranquilo de um cão fiel.
Por sua vez, Víctor contou-lhe que a ele também o carinho de Roser lhe permitira enfrentar e viver com aquela tristeza profunda que o cercava como um inimigo e que, por vezes, o sobressaltava com toda a sua carga de lembranças dolorosas. Sem Roser estava perdido! Havia-se-lhe extinguido até o menor vestígio de chama interior, e no seu lugar ficaram apenas as cinzas de uma dor brutal que arrastava desde há três anos. Surpreendeu-se da audácia e da sinceridade da sua própria confissão, feita numa voz tão quebrada, porque nunca ousara falar a ninguém daquele buraco de gelo que se lhe rasgara no peito. Nem sequer o dissera a Marcel. Sentia que até a alma lhe diminuía de tamanho. Definhava com as suas manias de velho, num silêncio mineral, na sua solidão irremediável de viúvo. Afastara-se dos poucos amigos que ainda lhe restavam. Já não procurava companhia para jogar xadrez ou para tocar guitarra. Tinham terminado também os assados dominicais de outrora. Continuava a trabalhar, o que o obrigava a permanecer em contacto com os seus doentes e com os alunos, mas fazia-o através de uma impenetrável distância, como se os visse surgir difusos, como que filtrados, protegidos por detrás de um ecrã. Mercê dos anos que vivera na Venezuela, acreditava ter-se-lhe definitivamente evaporado a seriedade, que fora um traço inalienável da sua personalidade desde jovem, como se carregasse um perpétuo luto pelo sofrimento, pela violência e pela maldade do mundo. Qualquer hipótese de felicidade parecia-lhe obscena, ante tantas calamidades e desgraças. Enquanto na Venezuela, profundamente apaixonado por Roser, vencera a tentação de se refugiar na tristeza, que não era um manto de dignidade, mas de desprezo e de desrespeito pela vida, como ela, incansável, lhe repetia. Mas agora, a seriedade, aquela seriedade, regressara em força. Sem Roser, a sua fonte secava a olhos vistos. Só Marcel e os seus animais conseguiam enternecê-lo.
– A tristeza, minha eterna inimiga, volta a ganhar terreno, Ingrid! Por este andar, vou terminar os meus dias convertido num eremita.
– Faça como eu, Víctor. Isso seria como deixar-se morrer em vida. Não espere que a tristeza venha ter consigo. Enfrente-a. Demorei muito a aprender isto nas minhas sessões de terapia.
– E que razões tens tu, menina, para te sentires triste?
– Não sei, Víctor. O meu marido pergunta-me o mesmo. Suponho que não são necessários motivos. É uma questão de personalidade. E é muito difícil mudar.
– Para mim já é demasiado tarde. Não me resta outro remédio senão aceitar-me como sou. Já tenho oitenta anos, feitos no dia em que chegaste. Estou na idade das memórias, Ingrid. É tempo de fazer um inventário de tudo e de passar a vida a limpo – respondeu-lhe ele.
– Desculpe se sou intrometida, mas importa-se de me abrir o seu inventário?
– A minha vida foi uma série de navegações. Andei por quase todos os lugares da Terra. E em toda a parte fui estrangeiro sem saber que tinha raízes profundas. Com isso, também me navegou para longe a alma. Mas agora parece-me inútil fazer tais reflexões. Deveria ter pensado em tudo isto há muito tempo.
– Creio que ninguém pensa verdadeiramente na vida durante a juventude, Víctor. E a maior parte das pessoas nunca chega realmente a fazê-lo. Olhe o exemplo dos meus pais: têm mais de noventa anos, e acredite que nunca lhes ocorreria. Limitam-se a viver o dia a dia, satisfeitos e tranquilos.
– É uma pena que este inventário só se faça na velhice, Ingrid… quando já não há tempo para alterar o rumo das coisas.
– Não se pode alterar o passado, mas talvez seja ainda possível eliminar as piores recordações.
– Olha, Ingrid: os acontecimentos mais importantes na vida de um Homem, os que determinam realmente o destino, quase sempre escapam completamente ao nosso controlo. No meu caso, ao fechar este relatório de contas, se assim posso chamar-lhe, vejo que a minha vida foi marcada pela Guerra Civil na minha juventude e mais tarde pelo golpe militar aqui no Chile, pelos campos de concentração e pelos exílios. Não escolhi nada disso. Foram coisas que simplesmente me couberam em sorte.
– Mas pôde escolher outras coisas… como a medicina.
– Nisso tens razão… e foi algo que me trouxe muitas alegrias. Sabes o que mais me marcou? O amor. Tive uma sorte incrível com Roser. Ela foi e sempre será o grande amor da minha vida. E graças a ela também tenho o Marcel e conheci a paternidade. Foi também fundamental para mim. Marcel permitiu-me manter a fé no melhor da condição humana. Sem ele, ter-se-ia há muito dissipado. Já vi demasiada crueldade, Ingrid. Sei do que os homens são capazes. Também amei muito a tua mãe, ainda que não tenha durado muito…
– O que aconteceu realmente?
– Eram outros tempos. O Chile mudou muito durante os últimos cinquenta anos. Ofelia e eu estávamos separados por um abismo social e económico.
– Se gostavam assim tanto um do outro, deveriam ter arriscado!
– A dada altura, ela propôs-me que fugíssemos para um qualquer país quente, onde pudéssemos viver o nosso amor sob as palmeiras. Imagina tu! Nesse tempo, Ofelia estava muito apaixonada e ainda tinha espírito de aventura. Eu estava casado com Roser. Não tinha nada para oferecer-lhe e sabia que, se ela viesse comigo, mais cedo ou mais tarde, iria arrepender-se. Se foi cobardia da minha parte? Fiz-me muitas vezes esta pergunta. Foi, acima de tudo, falta de sensibilidade. Não medi as consequências da minha relação com Ofelia. Fiz-lhe muito mal e magoei-a muito, ainda que sem intenção alguma. Nunca soube que ela estava grávida e que esperava um filho meu. Por outro lado, ela só agora soube que tinha dado à luz uma filha e que essa filha tinha sobrevivido. Acredito que se o tivéssemos sabido a tempo, a história, a nossa história, teria sido diferente. Mas nada ganhamos em revolver o passado, Ingrid. Em todo o caso, és fruto do amor. Nunca duvides disso.
– Oitenta anos é uma idade perfeita, Víctor. O Víctor já cumpriu de sobra com todas as suas obrigações. Agora pode fazer o que bem entender da sua vida.
– Como o quê, por exemplo? – perguntou Víctor, sorrindo.
– Sair por aí numa aventura qualquer. Eu adoraria fazer um safari em África. Há anos que sonho com isso. Um dia convenço o meu marido e vamos! O Víctor podia apaixonar-se outra vez… não tem nada a perder. Seria engraçado, não lhe parece?
A Víctor pareceu-lhe voltar a ouvir Roser, quando, nos últimos momentos, lhe recordava que os seres humanos são criaturas gregárias, que não estão programadas para a solidão nem para viverem em solidão, mas sim para dar e receber. Por isso insistira tanto para que ele não se resignasse à viuvez… e chegara até a escolher-lhe uma namorada. Deu por si a pensar em Meche com uma súbita ternura. Meche. Aquela vizinha de coração aberto que lhe oferecera a gata, que lhe trazia tomates e verduras frescas da sua horta, a mulher diminuta que esculpia aquelas ninfas gordas. Decidiu que, mal a sua filha partisse, lhe iria levar o que restara do arroz negro com chocos e da crema catalana.
Serão, quem sabe, outras e novas navegações, pensou. E assim sempre seja… até à navegação final.