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O PRIMEIRO CADÁVER FOI ENCONTRADO NA MANHÃ DO SEGUNDO DOMINGO DE MAIO, no interior de um carro abandonado nos limites de um pinhal, junto de uma estrada secundária. O carro fora incendiado com o corpo lá dentro: um homem de meia-idade, acima de cinquenta anos, sentado no lugar do condutor e com as mãos — ou o que tinham sido as suas mãos — algemadas ao volante. A equipa da polícia observou no local que o homem não morrera das queimaduras que lhe deformaram a parte inferior do corpo, nem por asfixia como consequência do fogo que consumira uma parte do carro. Antes disso, ele tinha sido alvejado. À vista desarmada havia seis feridas. Duas na cabeça (frontal e occipital), uma no ombro esquerdo, uma no peito (à altura do coração) e duas entre as pernas. Só depois disso teria sido algemado ao volante. Parte das roupas fora consumida pelas chamas a partir das calças mas, estranhamente, nem o casaco nem a camisa — branca — arderam por completo. O cabelo tinha desaparecido. O rosto estava irreconhecível, e as órbitas dos olhos eram dois buracos vazios e negros. Havia um depósito de gasolina, de plástico, junto do carro e em princípio tinha sido usado para ajudar a atear o fogo. Um dos polícias assinalou o chão do carro, parcialmente devorado pelas chamas, e outro confirmou que as pernas do morto e o chão tinham sido regados com gasolina antes de alguém ter acendido um isqueiro ou um fósforo. O tablier não ardera completamente mas o limpa-para-brisas quebrara-se em pedaços, e os painéis de instrumentos tinham derretido com o calor, tal como o teto de plástico e parte dos bancos dianteiros. O que restava do casaco do homem (os ombros, a lapela, uma parte do braço esquerdo) estava coberto de cinza e de manchas de plástico derretido que tinham caído do teto, e da camisa sobrara o colarinho e um pouco de tecido à altura do peito, onde havia manchas escuras de sangue.

Tinha também ficado claro que o assassino (ou assassinos, tanto fazia para já, se bem que fosse difícil apenas uma só pessoa ter preparado aquele espetáculo) regara a manga direita do casaco e as mãos da vítima com gasolina — as mãos tinham sido inteiramente consumidas pelo fogo (eram agora um resto de ossos e de carne carbonizada) e os ossos continuavam algemados à parte superior do volante do carro, um Audi A4 preto, cuja pintura estava ainda visível, à exceção de uma parte do tejadilho, de quase todo o capô e dos pneus dianteiros, que era provável terem sido igualmente regados com gasolina. Felizmente tratava-se apenas de um depósito de dois litros e meio.

O segundo cadáver foi encontrado minutos depois, quando um dos polícias — uma agente à paisana com o cabelo loiro parcialmente escondido por um boné de basebol — abriu o porta-bagagens traseiro: um homem, deitado e dobrado em decúbito dorsal, as mãos amarradas atrás das costas com uma fita adesiva prateada. Estava completamente nu, deitado sobre o lado esquerdo do corpo, voltado para dentro. Tinha uma tatuagem no braço direito (o único visível) e uma outra nas costas, junto da omoplata direita. A do braço representava uma cabeça de falcão a duas cores, vermelho e negro, um desenho provavelmente militar, memória de uma campanha de guerra; a das costas, uma folha de marijuana com dez centímetros de extensão. Dois tiros na nuca e um no parietal direito tinham provocado uma hemorragia que alagara o tapete cinzento do porta-bagagens. Como a mala do carro não tinha sido atingida pelas chamas podiam ver-se quer o cabelo negro e curto, a pele branca, muito pálida, muito branca, quer a fita adesiva prateada que também servira para amordaçar o homem, que teria mais de quarenta anos, mas menos de cinquenta, boa constituição física e cerca de um metro e oitenta. No pulso esquerdo havia outra tatuagem, uma palavra ou, pelo menos, qualquer coisa escrita com uma caligrafia oriental. As suas roupas não estavam no porta-bagagens nem no interior do carro onde, no banco traseiro, encontraram um taco de golfe e um saco de ginástica preto, que também não tinham sido tocados pelas chamas. O taco estava limpo e sem manchas de sangue; dentro do saco havia uma toalha de banho, uma faca com uma lâmina de 14 centímetros, um estojo de higiene pessoal com escova de dentes, espuma e lâminas de barbear, um champô, um corta-unhas, um desodorizante e uma tablete de Aspirina. Numa das bolsas exteriores do saco de ginástica a agente de cabelo loiro e boné de basebol encontrou uma arma, um revólver Beretta de nove milímetros com dez munições no carregador e uma na câmara. Da outra retirou uma máquina fotográfica digital de uma polegada de espessura e uma faca Caribou guardada na sua bainha, com presilhas que poderiam ajustar-se a um cinto.

Quanto ao pinhal, tratava-se de um quadrado de terra com cerca de cem metros de comprimento e outro tanto de largura, cercado por um muro de granito e com um velho portão de madeira pintado de verde por onde o carro entrara cerca das cinco da manhã. O médico legista informou que talvez fosse essa a hora a que os dois homens teriam sido mortos, pelo menos o que se encontrava na mala, sendo necessário fazer exames mais minuciosos ao corpo que continuava algemado ao volante. Ele era um homem com ar cansado e ligeiramente ensonado, baixo, com uma calvície dianteira incipiente, e estava vestido como se fosse mesmo domingo, com uma camisa xadrez castanha e amarela debaixo de um blazer de bombazina verde, uns jeans demasiado novos e sapatos pretos. Com a tesoura que retirou de uma mala, pousada sobre o chão de terra, cortou uma pequena extensão da manga esquerda do morto sentado ao volante para verificar até onde a pele estava queimada. O corte chegou até ao músculo do antebraço e também aí viu um falcão tatuado a duas cores, idêntico ao do cadáver que nessa altura já tinha sido retirado da mala do carro. Era uma pele branca onde já não havia veias nem reação à pressão dos dedos. Foi nessa altura que o médico se voltou para o polícia que seguia os seus movimentos e repetiu que tudo teria acontecido por volta das cinco horas. Dissera o mesmo depois de fazer o exame prévio ao segundo morto.

Eram naquele momento dez e meia da manhã. Um domingo de maio. O médico guardou a tesoura, fechou a mala e acendeu um cigarro enquanto pontapeava uma pinha velha que sobrara do outono anterior. Ou de outro qualquer.