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O DIRETOR TINHA UMA VOZ DE BAIXO, PROFUNDA, como se tivesse acordado há minutos e não pudesse pigarrear. Jaime Ramos reconhecia as cordas vocais maceradas por anos de tabaco e álcool, pecados que entretanto foram abandonados, domesticadas por muitas tentativas de produzir aquele efeito de tranquilidade aparente. Estava encostado na cadeira, mais do que sentado diante de um computador em repouso temporário. Depois de uma geração de políticos transformados em juristas e de juristas transformados em futuros ministros, a direção da polícia optara por juristas, simplesmente, fazendo constar a novidade de que as competências técnicas eram o essencial naquela posição, além de um certo gosto por romances de espionagem. Conhecera vários e respeitara alguns, e quase todos eles o convocaram para pedir conselhos que evitara dar ou para pequenos favores pessoais concedidos por um veterano na casa, um homem que entrara para a polícia e começara por baixo, a fazer serviços menores e a prender assaltantes de Rio Tinto, até entrar para os homicídios por desleixo puro depois de um curso noturno em que as notas não contavam muito desde que o essencial fosse mantido, e o essencial era manter um emprego, um salário, uma idade de reforma — custasse o que custasse. Desde os anos oitenta que Jaime Ramos se limitara a estar presente nos corredores do velho edifício que, entretanto, fora abandonado — e de que ele tinha saudades, como se fosse uma peça do velho mobiliário de madeira que sobrara do Estado Novo, à medida das secretárias de mogno e dos armários com portas de vidro fosco em que guardavam as pastas dos processos em curso. Sobrevivera a todos os temporais da polícia porque tinha uma secreta habilidade para recusar tarefas que fossem um teste à sua ambição. Houve um diretor, no final da década de noventa, que pensou em afastá-lo dos homicídios sob o pretexto de um «interrogatório ilegal com uso de meios ilegais», um par de murros a meio de um inquérito, bem vistas as coisas. Jaime Ramos detestava faquistas, o que ele atribuía à sua memória de militar, habituado a lidar com armas de fogo, e à sua repulsa pela frieza crua das facas. O processo foi avante, mas Ramos era, apesar da idade e da carreira, um sobrevivente que desconhecia a sua força. Os juristas da casa, manhosos e solidários com o velho agente, aconselharam o diretor a optar por um castigo menor, talvez mandá-lo para Lisboa durante uma temporada como punição, a fim de civilizar aquele homem de meia-idade que nunca usava gravata, que tratava por tu todos os funcionários e inspetores, que fumava charuto e colara, por detrás da sua secretária, o retrato de um Teófilo Cubillas sorridente e desbotado, gasto pelo tempo. O retrato gigante de Cubillas fora transportado de gabinete em gabinete (era um poster do Norte Desportivo, de 1973) até ser consumido nos cantos por várias camadas de fita adesiva, mas era a imagem que acompanhara o inspetor Jaime Ramos em todas as etapas da sua vida profissional, mais do que os diplomas de cursos de especialização ou os louvores, que guardava nas gavetas como testemunhos de pequenas indignidades cometidas para salvar a pele e o emprego.
O diretor nunca tinha visto jogar Teófilo Cubillas mas, ao entrar, quis mostrar reconhecer-lhe a reputação, piscando o olho, cúmplice, na direção do «peruano voador».
«Cubillas, inspetor?»
«Cubillas, senhor diretor.»
«E porquê?»
«Não há nenhuma razão. Na altura contribuí com vinte escudos para o clube poder comprar um futebolista estrangeiro que vinha salvar a pátria. Foi um imigrante de primeira classe, preto e tudo. Pavão tinha morrido há um mês quando ele chegou a Pedras Rubras. Cubillas ressuscitou Pavão, bem vistas as coisas.»
O diretor ouviu pacientemente descrições de três golos de Teófilo Cubillas, minuciosamente comparados com três outros de Bernd Schuster, e de um passe de Pavão para a cabeça de Oliveira depois de uma corrida desleal de Rolando sobre o lado esquerdo (há quem diga que Jaime Ramos preparava estas narrativas para testar a paciência dos seus interlocutores, tentando desmobilizá-los) e, passados dez minutos, explicava ainda porque viera falar com Ramos:
«Uma família antiga, inspetor. Como acontece com quase todas as boas famílias antigas do Porto, esta também não é do Porto mas do Minho, sempre a norte do meridiano de Braga, onde atravessaram todas as revoluções dos últimos duzentos anos sempre no mesmo lugar: sentados. Sentados num pequeno monte de dinheiro, que aumentava ou diminuía conforme as revoluções. E também sentados num nome que variou pouco porque os homens da família nunca deixaram de ser ricos, nem educados no estrangeiro ou em Coimbra, nem deixaram de casar com mulheres que não se importavam de cumprir as suas obrigações para prolongar a espécie e iam mais a Espanha do que a Lisboa. E sentados, quase todos, perto de Ponte de Lima ou Arcos de Valdevez, onde quase nunca aconteceu nada desde há duzentos anos. Já se sabe, numa família onde nunca acontece nada, qualquer coisa que acontece é sempre uma espécie de explosão atómica. É uma maneira de dizer.»
«E ela?»
«Ah, ela. Ela tem vinte e dois e um currículo de respeito. Tinha feito vinte e dois há dois ou três meses. Eu sou amigo da família, mas a rapariga é como se não fizesse parte da família para este efeito. Sabe como é. Aos catorze, aos quinze, nós pensamos que são crianças. Mas não são. Tem filhos, inspetor?»
Não. Ele disse que não tinha filhos, mas sabia que o outro sabia que ele não tinha filhos. Limitou-se a acenar com a cabeça. Depois disse que não.
«Podia, enfim, ter filhos fora do casamento.»
Ele disse que podia ser, mas que não era assim.
«Eu tenho três filhos, inspetor. Duas mulheres e um rapaz. O rapaz anda por aí. Elas estão arrumadas, digamos assim, uma delas casou no mês passado com um antigo colega de faculdade, a outra vive com uma amiga por quem copiava os exames de Matemática. Em Biologia. Ela estudava Biologia. Conto-lhe isto porque vai sabê-lo mais tarde e se a minha filha é fufa isso vai ter alguma importância porque a Béni, a rapariga, é irmã dela, da amiga da minha filha. Ou seja, eu devo ser considerado sogro dela, se bem que não saiba se ela é minha nora ou meu genro. Béni tratava-me por tio, pelo menos até há duas semanas, quando a vi pela última vez, na véspera, digamos assim, de desaparecer. Ela lá sabia.»
«Béni?»
«Benedita. Hoje, no Porto, já ninguém chama Benedita às filhas, mas continua a ser um nome muito tradicional, muito considerado pelas avós, muito do Condado Portucalense, como Constança ou Agustina, mas de qualquer modo anterior ao cerco do Porto. De modo que ela ficou Béni, os pais deram-lhe o petit nom para se desculparem do anacronismo. E é isto: aos trinta anos eu já não percebo as pessoas, mas admito que existam. No meu tempo tínhamos trinta anos mais cedo, se me entende. Nessa altura trabalhávamos, tínhamos filhos, estávamos preparados para grandes responsabilidades. Ou pequenas.»
Jaime Ramos admirava a resistência do outro, mas reconhecia nele a linguagem da meia-idade que tinha chegado ao poder, aos cargos de direção, acompanhada do jargão que se aprendia nos cursos de atualização e aperfeiçoamento sobre novas formas de parentalidade e relações de género, revolução na família, novas identidades, conjugalidades, identidades gays, lésbicas e bissexuais. Um conjunto muito elogiado de professores, herdados da fábrica de psicólogos que a polícia contratara só muito depois da revolução, ensinava quase todas as novidades (novas relações sociais e identitárias, relacionamento com o poder e a autoridade, sociedade de informação, comportamento, famílias alternativas, um homem chora quando quiser, papel e estatuto na família monoparental) a agentes que vinham da província, de famílias pobres de Vinhais ou de Arcozelo, de subúrbios operários onde tinham crescido até à idade de serem desempregados.
Alguns dos agentes subiam nos escalões movidos por esse combustível modernizador, enfrentando os criminosos com piedade, sociologia e compreensão. Mas a maior parte deles mantinha a cabeça em ordem e acumulava falhanços no casamento e processos disciplinares na sequência do uso de violência injustificada sobre detidos ou da falta de colaboração com os psicólogos que tinham assaltado a hierarquia para transformar a corporação numa instituição civilizada, moderna, democrática — e com um orçamento tão multicultural que tinha dinheiro para pagar avenças a psicólogos que detestavam a polícia e achavam que a autoridade era uma fonte de opressão a questionar diretamente.
É verdade que o crime que estava na ordem do dia era o económico, e as investigações exigiam mais técnicos de informática e juristas com mestrados em gestão e contabilidade do que ginastas dispostos a entrar em bairros abandonados à humidade do inverno e ao lixo que raramente era recolhido. Jaime Ramos tinha notado um aumento generalizado de fatos escuros completos nos corredores do edifício, e de malinhas de computadores portáteis transportadas ao ombro. Isaltino de Jesus punha-o ao corrente das novidades e tinha requisitado um laptop permanentemente ligado à base de dados da polícia, com programas e aplicações de que ele desconhecia a existência, mas onde se encontravam informações úteis para os novos tempos, desde tabelas de calorias até listas de matrículas roubadas a carros amolgados e nomes de maridos que abusavam da autoridade doméstica.
Jaime Ramos continuava a ser o mesmo inspetor dos homicídios que os colegas viam — de memória — na série Columbo, mais do que um líder de investigadores eficazes e vestidos como modelos de acrílico Cortefiel. Marcava reuniões de trabalho para a hora de almoço em restaurantes com área de fumadores e de onde não tinham sido banidos nem a aguardente branca gelada nem os ecrãs de televisão sem som. Isaltino e José Corsário levavam os computadores, se fosse necessário, e ele atribuía a despesa a investigações correntes, certo de que os contribuintes não iriam notar o desfalque de uma ou duas refeições por mês. Os outros membros da equipa, escolhidos de entre os que não tinham querido investigar assuntos fiscais ou banditismo tecnológico eram periodicamente admitidos nessas reuniões. Olívia, Jacinto, Dulce e Vasco estavam nesse número e, para todos os efeitos, eram a sua família mais próxima.