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«A BÉNI TRATAVA-ME POR TIO», CONTINUAVA O DIRETOR. «Acho que havia alguma ironia. Havia, de certeza.»
Jaime Ramos sentado, o diretor de pé voltado para a janela, as mãos atrás das costas como se estivesse manietado diante da manhã de primavera, dos telhados cobertos por finas camadas de musgo verde, dos plátanos das ruas, daquela planície de telhados que avançava na direção de outros telhados, entre pequenos jardins diante de vivendas dos anos setenta.
«Há quanto tempo ela desapareceu exatamente?»
«Duas semanas. Quer dizer, doze dias. Os pais e o irmão, que é quem dirige a casa e as empresas da família, têm a certeza de que não partiu com nenhum namorado, de que não partiu para longe. Deixou tudo ou quase tudo. Levou, pelas suas contas, roupa para dois ou três dias, embora nunca se saiba o que elas vestem, onde dormem, como dormem, para onde vão.»
«O problema é que ela tem vinte e dois anos. É maior de idade. Se resolvesse ir para Murmansk, ela podia ir para Murmansk.»
«Onde é Murmansk?»
«No Mar de Barents. No Norte da Rússia. A caminho do Polo Norte.»
«Sei onde é o Polo Norte», olhou-o o diretor.
«Pois ela podia ter ido para lá. Os pais não podiam impedi-la de atravessar o Atlântico ou de se casar com um cigano.»
«Porquê um cigano?»
«Ou um monge budista.»
O outro olhou-o como se compreendesse. Um monge budista. O Tibete, o Dalai Lama. Recolhimento espiritual. Perfeitamente, como se qualquer uma das opções estivesse prevista na sua cabeça.
«Ela nunca saiu de casa, pelo menos desta maneira. Veja bem. A rapariga é esperta, mas foi estragada por dois anos e meio passados na Suíça, numa escola para meninas ricas. Estudou etiqueta, francês, equitação, economia doméstica, acho que literatura e, naturalmente, psicologia e puericultura. Uma dessas escolas privadas para onde os ricos mandam os filhos completar a educação que não têm. Passou quase dois anos a fazer fotografia, segundo se diz, a decorar os escritórios da empresa e a vadiar. Trabalhou num atelier de decoração, aqui no Porto. Os pais são esse género de ricos. Sem paciência para lhes ensinar etiqueta, equitação, crochet.»
«E elas aprendem?»
«Acho que não», disse ele, aparentemente com tristeza. «De modo que ao chegar aos dezoito anos ela entraria numa universidade e teria um curso. Mas não aconteceu nada disso. Foi para a Suíça. Voltou. Estava ali. Os pais pensam que não faz sentido ela ter desaparecido. Acham que alguma coisa lhe aconteceu.»
«Estão sempre a acontecer coisas. Algumas são mais estranhas, diretor. Mas nem todas. Uma rapariga de vinte e dois anos não desaparece, limita-se a ir-se embora. Limita-se a não ser uma rapariga, se me faço entender. Se não tem trabalho, se não tem ocupação, é necessário arranjá-la. Eu não trato disso.»
«Peço-lhe ajuda. A não ser que descubra que ela foi para Murmansk. Murmansk?»
«Murmansk», confirmou Jaime Ramos. «Os homicídios não costumam tratar de desaparecimentos. Podemos lançar os alertas de rotina, fazer o roteiro habitual de perguntas.»
«Faça isso, inspetor. Um favor pessoal, é disso que se trata. Estas coisas acontecem em todas as famílias, mas a família está verdadeiramente preocupada, disposta a tudo, a contratar pessoas, o diabo. Terá de falar com o irmão da Béni. Luís. O pai está afastado de tudo, é uma pena, mas está afastado de tudo. Depois de ter ficado viúvo, uma depressão. No meio da depressão, um ataque cardíaco. Depois do ataque cardíaco, outra depressão. A vida moderna e o Alzheimer. Passa metade da vida sentado a olhar para o infinito, que ali é muito ao largo, porque vivem num casarão ao pé do mar. A única coisa que o despertou foi o desaparecimento da filha. Temos de nos despachar, o irmão da Béni quer recorrer a um detetive privado, desses que há por aí.»
«Era melhor, no fundo. Nós precisamos de fotografias, de visitar a família, de falar com algumas pessoas, de incomodar, temos mais meios mas menos tempo.»
«Exato, temos pouco tempo», o diretor alterando o sentido das palavras de Jaime Ramos. «Ponha um dos seus homens nisso. Ou uma mulher. Uma mulher é capaz de entender melhor este assunto. E um desaparecimento é pior do que um homicídio, no fim de contas. Um homicídio é um homicídio, um desaparecimento nunca se sabe. Nem isso nem o casamento com um monge budista, suponho eu, mas foi o senhor que sugeriu a hipótese. E se for preciso ir a Murmansk, falaremos.»