12
«NUNCA SE SABE O QUE SABEM DE NÓS, MEU CARO. Lembras-te do Partido? Havia sempre alguém que sabia tudo de nós. O controleiro obtinha informações, cruzava-as com outras, cruzava-as de novo com aquilo que lhe dizíamos, sabia com quem se saía à noite, com quem se falava sobre a Checoslováquia ou a abertura húngara.»
«Eu nunca falei sobre a Checoslováquia. Era um crente. Obedecia como um bom militante.»
O outro sorriu e calou-se de repente enquanto retirava o telefone do bolso. Olhou o aparelho como se quisesse verificar se entretanto tinha recebido telefonemas ou mensagens, tomando-lhe o peso ao mesmo tempo na palma da mão. Depois abriu-o, retirou-lhe a bateria, retirou o chip, colocou tudo no banco, junto dele, e olhou para Jaime Ramos de frente como se tivesse terminado uma exibição de acrobacia e esperasse aplausos da plateia.
«Nunca se sabe. O teu telemóvel?»
«Nunca trago o telemóvel quando venho falar contigo.»
«Ninguém precisa de saber que não te interessavas pela Checoslováquia.»
«Só estive na Bulgária, no Mar Negro. Praga era muito literária. O Partido não era feito para pessoas sensíveis.»
«A literatura não nos interessava muito, é verdade.»
«Fui só um passageiro de segunda classe.»
«Mas estiveste no comboio», disse o outro, alinhando a carcaça do telefone, a bateria, a tampa e o chip. «Como acreditávamos no socialismo, andávamos todos em segunda classe.»
Jaime Ramos sorriu, como se se tivesse lembrado do Mar Negro e de um comboio que atravessava os campos de milho antes das falésias:
«Cheguei tarde de mais à questão da Checoslováquia. Quando entrei para o Partido já se tinha resolvido o problema checo há quatro ou cinco anos.»
O outro não ligou. Podiam dizer que o problema checo nunca se resolveu, mas ele limitou-se a apontar para as peças, alinhadas como se esperassem para ser reunidas numa ordem perfeita:
«Tenho fama de desfazer os Blackberries antes de começar qualquer conversa. Somos espiões preguiçosos, os portugueses. A democracia, tu sabes. Tirou-nos energia e mobilidade. Pelo menos esta democracia. Melhor estar preparado. Imagina tu, a espionagem sujeita, como eles dizem, a escrutínio parlamentar. Somos uma raça em extinção, tu, eu, mais vinte ou trinta. Não aguentaríamos estarmos sujeitos a escrutínio parlamentar.»
«Nunca fui espião», Jaime Ramos batendo com a cigarrilha apagada na unha do indicador.
«Não. Mas também ninguém conseguia espiar-te naquela altura em que tinhas importância. Não usavas computador, não usavas telemóvel, dedicavas-te a crimes sem qualidade, tarefas sem prestígio. Homicídios, coisas que não convocavam as classes dirigentes.»
«E também não sabia que faço parte da lista das espécies em perigo.»
«Fazes, sim. Somos os últimos. Trabalhamos ilegalmente. Somos escutados. Sabem a marca das nossas camisas, com quem dormimos, se ressonamos, o que comemos, a que horas fazemos a barba. Espiamo-nos uns aos outros.»
«E o que lhes dizes?»
«Digo-lhes: sei o que fizeste e o que andaste a fazer. E desfaço o Blackberry à frente deles. Um dia pedi o telefone a um ministro, destes que andam aí, e desmontei-lho tal como fiz a este. Agora já podemos falar, disse-lhe eu. Eu estou a ser escutado?, perguntou ele. Estamos todos, disse-lhe eu outra vez, estamos todos, desde que nos levantamos até entrarmos no apartamento da amante e mesmo daí para a frente, quando dizemos boa noite à mulher que dorme ao nosso lado, antes de apagarmos o candeeiro e começarmos a fingir que estamos a dormir. Na altura, ele tinha uma namorada e um casamento muito estável, ao mesmo tempo, e levou a coisa a sério. Ficou de boca aberta, olhou para o telemóvel uma, duas vezes, e eu disse-lhe: agora já é tarde, o senhor fala de mais, fala com toda a gente, tem três números de telefone. As escutas que o senhor tem de mim não são nada ao pé das que eu tenho de si. E pus-lhe um dossier à frente, em cima da mesa. Ele acreditou. Mostrei-lhe as primeiras páginas, que eram forjadas, invenção pura, mas ele acreditou mesmo sem ler grande coisa. Eles acreditam sempre, têm sempre uma biografia para esconder. Nome da mulher, nome das duas jornalistas com quem tinha partilhado camas em hotéis de categoria, no estrangeiro, nome de um filho que fumava erva nos festivais de rock e tinha espatifado um carro do Estado desviado numa noite de bebedeira, marca das gravatas, marca do carro, telefone da sogra, telefone do motorista, datas das viagens para o estrangeiro, agência do banco, whisky preferido, as más notas na universidade, cópia das despesas de uma certa viagem. Como se lhe dissesse: em escutas não há rival. Ele acreditou que eu tinha isso tudo.»
«E tinhas?»
«Tinha. Mas convém deixá-los na dúvida. É um divertimento, um jogo. Nunca se sabe. Não podes confiar. Como nós não confiávamos na Checoslováquia.»
«Eu confiava, era um crente.»
«Já me disseste.»
«A minha esperança tem limites», disse Jaime Ramos. «Mas às vezes sou crente.»
«És um otimista. Nunca perdeste o hábito. Quem é comunista uma vez é comunista para sempre.»
«Quem é católico uma vez, mesmo que seja por acaso, é católico para sempre. Estamos condenados a repetir tudo na nossa vida.»
«Tanto me faz. Fui católico há muito tempo.»
«Fui comunista por obrigação.» Ela era demasiado perfeita para não ser amada, respeitada, admirada. Perfeita. Casei porque ela tinha um olhar cheio de luzes, fosforescente na escuridão, atravessando a minha vida como uma espada, deixando-me em sangue, as veias à mostra, cheio de pecados à vista. Com o tempo, aquela perfeição transformou-se em rigor, obsessão e frieza. Eu era um homem das montanhas que tinha redescoberto a morte na Guiné. Volto sempre a isso, eu sei, volto sempre ao mato, à poeira, aos pântanos da Guiné, aos areais batidos pelo vento a caminho de Casamansa, aos soldados bêbedos que, sem saber, tinham desertado há muito tempo mas que continuavam a combater ou estavam mortos num descampado. Às vezes, de noite, ainda oiço as rajadas secas de G3, as hélices dos helicópteros, o ruído dos Fiat sobrevoando os pântanos, aproximando-se do mar. Depois disso fui comunista por obrigação, como uma recusa e uma queda pelo abismo.
«Quem é comunista uma vez é comunista para sempre», voltou o outro.
«Pode ser. Mas o objetivo da minha vida é simples: não falar do meu passado», esclareceu Jaime Ramos. «Está acabado, enterrado, não tenho nostalgia, não guardei fotografias, não tenho um cartaz do Che pendurado atrás da porta, não guardei os manuais do materialismo dialético, nada. É esse o meu objetivo.»
«É um bom objetivo.»
«E Luís Ferreira Vasconcelos? Onde para nos teus arquivos?»
«Não está nos meus arquivos, está na minha cabeça. O que é muito diferente.» Sequeira estava sentado de costas para o arvoredo que os protegia da estrada que subia na direção da serra, o que significava que estava de frente, rigorosamente de frente para o rio. Chegava-se ali por uma estrada de terra que se desviava a meio de Freixieiro do Soutelo até parar abruptamente diante de um açude isolado onde de vez em quando havia canoas navegando suavemente, quase sem ruído, entre a sombra das árvores, desviando-se de uma pequena ilha a vinte metros do dique. Os carros tinham ficado no limite da estrada, junto de um canavial que ganhara terreno na luta contra hortas abandonadas; daí em diante, caminharam lado a lado, atravessando o dique, que também servia de ponte e por onde o rio perdia velocidade até chegar ao mar, daí a dois quilómetros, diluindo-se numa língua de areia.
«É um nome a ter em conta. Diz-se que o pai enlouqueceu, o que não é verdade, e que aos trinta e dois anos tomou conta das empresas, ou dos bens da família, uma vez que as coisas andam misturadas neste caso. Mas o nome completo não é esse, nem termina em Vasconcelos. São oito nomes, seis apelidos e dois nomes próprios, uma família interminável desde que terminou a guerra civil, há duzentos anos. No Porto pensou-se que, nessa altura, tinham perdido quase tudo. Só tinha sobrado aquele casarão perto da Rua do Heroísmo, onde regressavam de tempos a tempos e onde se mantinham calados. Mas não era assim. O grosso da família vivia no Minho, em Ponte de Lima, nos Arcos, em Ponte da Barca, ou em Valença. Era uma família que morria em paz, nascia em paz, reproduzia-se sem turbulência, exilava-se de vez em quando, mas sobrevivia. Sobreviveu até hoje, há de durar mais duzentos anos, pelo menos. As nossas famílias vão desaparecer e a deles vai sobreviver. É uma lei da história.»
«Uma lei da história?»
«Sim. Nós não temos o sentido da sobrevivência, não temos aquele instinto da sobrevivência, não cuidamos da perpetuação da espécie. Não nos reproduzimos convenientemente, escolhemos mal as nossas mulheres e os nossos maridos, apaixonamo-nos pelo menos uma ou duas vezes na nossa vida. Eles sabem que um século é uma medida pequena de mais para o tempo que já duraram, senhor inspetor. O que justifica alguns pequenos deslizes, mas que os conservam despertos para o essencial. Nós temos dívidas ao banco ou dificuldade em pagar impostos, porque gastamos mais do que ganhamos. Eles não precisam de gastar, não precisam de muito dinheiro. Vestem a roupa de pais para filhos, contentam-se com pouco, não precisam de mostrar que são ricos.»
Jaime Ramos conhecia a história. Uma música vinha dos pinhais em redor, de entre os arvoredos que escondiam o rio Âncora. Havia insetos a rasar a água do rio. A Serra d’Arga ao longe. Um casarão escondido entre as árvores.
«Ando à procura dessa família.»
«Já sei. Tens andado pelo Minho. Uma família antiga, Ramos, uma família dessas não é coisa para nós. É preferível contratares uma bibliotecária conscienciosa e mexeriqueira, que te dê o essencial: antepassados, solares no Minho e adultérios por ordem alfabética. Isso vem nos registos, há sempre alguém que se interessa por genealogia. De vez em quando recorro a um, nos Açores. Quem era o trisavô de fulano? Ah, um negreiro que enriqueceu no Brasil e fazia filhos às negras nas plantações de açúcar. Quem era a amante do conde de tal? Não era uma amante, era um amante loiro, flamengo, há um retrato dele vestido de veludo azul num solar perto de Sintra. De resto, nós não damos informações salvo quando são absolutamente necessárias. Tudo isto, esta rede de informadores e estudiosos, é caro e temos contas a prestar ao parlamento, hoje em dia. Respeita os tipos da genealogia, nunca estejas de más relações com a genealogia. Inventam-te um avô pederasta ou uma tia que casou com um carabineiro do Lugo. Hoje em dia, de resto, interessam-nos mais os negócios imobiliários, pequenos ou grandes, investimentos financeiros, armas, petróleo, dinheiro sem nome. É disso que vivem as famílias que não precisam de dinheiro. O trivial.»
«Armas para onde?»
«Guiné Equatorial e Gabão. Daqui para Angola e de lá para onde for preciso. Armas ligeiras, coisas que vêm do Leste ou do Oeste. À mistura com petróleo, imobiliário e pequeno tráfico autorizado em países amigos, desde depósitos em bancos sem dimensão especial até barcos que mudam de nome conforme as conveniências ou construção de estradas em países onde não há carros. O conceito de país amigo tem mudado bastante, ultimamente. A última vez que vi essa gente reunida foi aqui perto, numa sala cheia de membros da maçonaria, de engenheiros da banca e de ex-comunistas reconvertidos. Por esta ordem. E havia um ex-Opus Dei que também era cavaleiro da Ordem de Malta.»
«Tudo junto?»
«Tudo em santa comunhão. Diretores de empresas, donos de empresas, financeiros, diretores de bancos com pelouros simpáticos, gente de partidos, especialistas em comunicação, jornalistas amigos e amigos que já foram jornalistas. Trocam números de telefone e fotografias de família, tudo em santíssima concórdia. Um conclave. Cheio de classes, ordens, hierarquias, mas um conclave.»
«Um concílio de forças vivas», Jaime Ramos acendendo finalmente a cigarrilha escura.
«Um concílio», repetiu o outro, confirmando. «Um encontro de famílias. Todos partilham apelidos, andaram nas mesmas escolas, passaram férias na mesma praia, conheceram noivas comuns, maridos comuns, avós que se davam muito, tios que negociaram bastante.»
«Uma espécie de resumo.»
«O resumo do antigo regime. Um país que produz muito pouco além de comerciantes, famílias ilustres, apelidos e casas de férias. O mal português é esse, o incesto. A endogamia. Banqueiros cujas filhas mais novas casaram com rapazes que dançavam bem nos anos setenta. Depois, os rapazes envelheceram e casaram com outras mulheres mais novas e ligeiramente mais tontas, mas conservaram a marca de origem. Filhos que receberam um apelido e que mais tarde entraram nos quadros do banco ou voltaram a casar com uma mulher que leva no nome qualquer coisa como Companhia Limitada. Sociedade Anónima. A mesma coisa há duzentos anos. Um avô que foi ministro da República e afilhado de um ministro da Monarquia. Uma avó que teve um amante diplomata em Roma. Temos os arquivos cheios de casos assim. Adolescentes que se conheceram no picadeiro, montando cavalos que também já são cruzamento entre famílias. Férias em Moledo, passeios no rio Minho, estadas no Algarve. Não. O Algarve é mais recente, é uma coisa recente. O Algarve é uma coisa do tempo de depois do ié-ié, do biquíni autorizado pela família, do tempo do segundo ou do terceiro divórcio quando a moral deixa de ser a porta de entrada e é só um corredor, uma passagem, uma genuflexão. Havia tios poderosos, ministros e subsecretários de Salazar que passavam férias com um criado ao pé do telefone. Salazar podia telefonar, se bem que Salazar nunca telefonasse. Sua excelência não gastava dinheiro em telefonemas — escrevia cartas, não tinha a febre da velocidade. Mas esta família não usava telefone, falavam olhos nos olhos, segundo se diz, e detestavam documentos, contratos, testemunhas, ministros, notários. Tudo em nome da honra e do passado. Tinham um passado a servir de garantia. Um tio velho foi escudeiro de um rei enquanto não sofria de gota ou o reumatismo não o prendeu à cama. Adoro estas famílias, Ramos. Gostava de ser historiador. De escrever a história das aventuras sexuais do regime, dos pequenos adultérios, dos pequenos deslizes sem registo, dos negócios que nunca são contabilizados, dessa gente de que só sabes metade do nome, porque há sempre um apelido escondido para ser revelado atrás de uma porta, em circunstâncias especiais. Diretores de empresas, banqueiros, bispos, padres, cobradores de impostos, gente dessa.»
«Padres também?»
«E padres.»
«Bispos era melhor.»
«Gente que come salada e é saudável, que tem um selo invisível colado na testa, a anunciar: faço parte da grande família, um tio foi governador de Manica e Sofala, um outro fugiu de Lisboa depois de ter dormido com a amante de um banqueiro e foi nomeado para as alfândegas de Cabo Verde, outro tem o retrato numa galeria dos notáveis de uma universidade que já apodreceu. E alguém que veio da Índia em tempos. Alguém que enriqueceu no Brasil e fez filhos a mulatas que nunca foram escravas. Fazer a biografia destas famílias, Ramos, é entrar numa galeria que tem de tudo. Os melhores retratos, os melhores vícios, saborosos, de invejar. E depois há as dependências, como eu lhes chamo, negociantes de vinho do Porto e importadores de máquinas de costura, gente honesta e trabalhadores incansáveis que conquistaram um lugar perto do sol. Não ao sol. Não. Porque a luz chama a atenção e esta gente é discreta, nunca foi vaidosa, as mulheres eram discretas, por isso limitavam-se a ficar ali. Perto do sol. Mas à maior parte falta um selo, uma garantia de probidade familiar e administrativa, falta-lhes uma tia-avó louca que deixou uma fortuna e se divertia a quebrar loiça da Companhia das Índias ou a seduzir criadas no escuro das despensas. Eu gosto desta gente, Ramos. Detesto os deslumbrados, os idiotas que desconhecem o peso da História, que usam óculos de sol pendurados no bolso do casaco, os que falam ao telemóvel e apanhamos nos restaurantes a pedir faturas para depois receberem na caixa da repartição, do ministério ou da empresa. Famílias, Ramos, eu gosto muito de famílias, gosto muito de famílias cheias de histórias recentes ou antigas. Quase todas elas guardam uma tia louca na cave de um casarão isolado. Um primo tresloucado rouba uma noiva à porta da igreja e foge com ela de cavalo para Pontevedra. Não há lugar mais triste do que Pontevedra. Mas eu gosto desta gente. E, depois, quando vês a coisa de perto, passas a gostar das velhas famílias que nunca estiveram na ribalta. Há de tudo: velhos advogados e velhos negociantes de armas, gente que faz dois telefonemas por dia para que o mundo continue a girar como se diz que acontece desde Galileu. Estão sentados numa varanda a olhar o jardim. Não têm medo da morte nem do que há de vir. Não são apanhados em escutas. Detesto essa gente que apanhamos nas escutas. Têm dois telefones ligados em permanência, instalamos uma escuta no carro e no dia seguinte reconstituímos os últimos vinte anos de tráfico de influência e de segredos das melhores camas do país. Não são grande coisa, garanto-te. Não têm imaginação.»
«O mundo mudou muito desde Galileu, de facto.»
«Um pouco. Quando éramos novos julgávamos que havia um caminho para a perfeição. Que, com o tempo, íamos melhorando a espécie. Éramos arrogantes e sabíamos tudo.»
«A moral comunista», disse Jaime Ramos, antes de se remeter a um silêncio grave, olhando a ponte sobre o Âncora, os pinhais que desciam da Serra d’Arga em declives que permaneciam escondidos pela folhagem dos silvados.
«Eu lembro-me da moral comunista, Ramos», disse o outro. «Não foder sem recitar os mandamentos, e foder porque era um bem higiénico e definitivo. Uma das minhas namoradas da época fodia com dois ou três camaradas que andavam deprimidos e ocupados com a revolução. Era serviço social puro. Tinha um nome perfeito, era uma mulher da minha aldeia. Conceição.»
Sequeira olhou para o fundo do rio à procura de Conceição. Estavam sentados num banco de pedra escondido por dois freixos que nunca tinham sido aparados e cujos ramos se encostavam a um muro de granito coberto de musgo, mesmo em pleno verão.
«Que é feito da Conceição?»
«Emigrou. Brasil. Em 1986, para o Rio, com vinte e seis anos, disposta a tudo mas, sobretudo, disposta a recuperar o tempo perdido e a esquecer a moral comunista. Farta disto. Em 1985 apaixonou-se por um burguês reacionário que herdou duas fábricas em Pevidém. Têxteis, um capricho do destino, a miséria do Vale do Ave, o coração do operariado no limite da área metropolitana, muitos salários para pagar, uma família para aturar. Sempre a família atrás. De modo que ele vendeu tudo em dólares e levou-a para outro mundo onde o capitalismo não era uma ofensa. Isto, segundo sei, despertou nela instintos terríveis, como o gosto pela vida e outros pecados desprezíveis. Nunca mais voltou. Aos vinte e oito anos conheceu o instinto de sobrevivência, sobretudo, mas também o gosto pelo sexo sem moral nem princípios, segundo se diz. Transformou-se numa espécie de estrela decadente de uma família de proprietários convictos e arreliados. Naquela família todos eram feios. Ela era um exemplo de beleza e de desorganização. Assim vai o nosso mundo.»
«Falaste com ela entretanto?»
«Sim. Há uns anos, no meio de um trabalho. Vivia no coração de Ipanema, ainda tinha memória e boas intenções. Tinha feito uma plástica, convidou-me para um almoço de luxo no restaurante de um hipódromo. Eu precisava de informações sobre aqueles anos. Infelizmente, não foi de grande utilidade. A certa altura nenhum de nós tem grande utilidade. Ela já não era comunista, bem vistas as coisas, e começava a ganhar sotaque carioca.»
Tão de esquerda que nós éramos, tão justos, tão honestos, tão preciosos e amáveis — e tão duros, inflexíveis, sábios, resolvidos. O comunismo dava-nos uma extraordinária força, sobretudo porque a desconhecíamos. Não gostávamos da sua moral, da sua vida morigerada, disciplinada, vigiada; as mulheres deploravam o machismo dos comunistas, a ignorância do povo, os gostos sem sofisticação — mas havia no proletariado uma grandeza insuportável. Proletários de todo o mundo, uni-vos. Uni-vos na misericórdia e na compaixão, no ódio e na força de classe, nas recordações de um fim de semana à inglesa conquistado por Churchill, o pesadelo reacionário inglês.
«A moral comunista», repetiu o outro.
«Estou velho para sentimentalismos», murmurou Ramos enquanto o outro se sentava e começava a contar a sua história. Jaime Ramos ouvia, como ouvia a folhagem rente à varanda de um segundo andar, à altura da copa das árvores, e tomava notas soltas. Não podia confiar apenas na sua memória, esse lugar de traições que oscilava no tempo e fazia escolhas que o despedaçavam. Imaginava Béni, imaginava a família de Béni, imaginava Conceição no Rio de janeiro, a traidora que casou com um traidor que lhe proporcionava a felicidade e um casamento perfeito, medíocre, tranquilo, cheio de possibilidades, criados vestidos de paletó branco que recebiam os convidados e ofereciam martinis e caipirinhas. Imaginava, sobretudo, à medida que o outro falava, pausadamente, como se recitasse e recomeçasse sempre do princípio, relembrando que Béni nascera no Porto, durante o Carnaval de 1989.