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O PAI, HENRIQUE FERREIRA VASCONCELOS, TINHA ABANDONADO O EXÉRCITO DEPOIS DE VIR DE ANGOLA, no início de 1975. Para se defender dos comunistas e intimidar a família, preguiçosa e descuidada, dormia com duas metralhadoras debaixo da cama e mantinha uma mochila com roupa e víveres para escapar durante uma fuga inesperada, a meio da noite, à pressa. Quando saía de casa levava um revólver no bolso das calças — guardava-o na mesa de cabeceira, junto do passaporte e de um bloco onde anotara endereços e números de telefone com códigos que só ele conhecia. Estava preparado para a contrarrevolução, tinha dois filhos e uma mulher bonita de mais para aquela cidade escura que detestava e onde o seu destino era o de procurar emprego em empresas falidas ou trabalhar no escritório de advogados da família, como um exilado que regressa a um país estranho depois de uma ausência inexplicável.

A família acolheu-o, no fim de contas. Com a revolução, os dois tios, advogados na Baixa, tinham perdido clientes que foram viver para o Brasil ou se limitavam a ficar sem dinheiro para pagar as contas que foram drasticamente diminuídas. Por isso, precisavam de um homem como ele, habituado a confrontos e a viver com necessidade de dinheiro. Ignoravam o resto, ignoravam o passado, não queriam saber. Sabiam apenas o essencial da sua vida em Angola, dividido entre a administração militar e a poeira da cidade. Ignoravam tudo, afinal. Em Luanda, a mulher, grávida, verificava todas as noites as munições dos dois revólveres guardados no armário da cozinha; ele sentava-se na varanda de onde se via o anoitecer na baía e o contraste entre o azul do mar e a terra alaranjada e suja, cheia de ruínas que se acrescentavam aos trilhos dos carros militares que subiam e desciam por todas as colinas. Bebia whisky e fumava dois maços de Kart por dia. Não queria voltar a Portugal, não queria voltar ao Porto, não queria desfazer-se do Opel Manta descapotável nem da sombra de uma figueira junto da qual se refugiava nas tardes de sábado enquanto a mulher, grávida, recebia as amigas e chorava ou de tédio ou de medo. Mas as amigas partiram, regressaram a Portugal quando os militares fizeram saber que era a altura de fazer as malas e de partir sem ruído nos primeiros aviões de uma ponte aérea que ainda não tinha começado. E foi naquele cenário que ele decidiu que nunca mais voltaria a Luanda, que nunca mais voltaria àquela varanda diante da baía — acabou por regressar a Portugal e ao Porto. Continuou a dormir com duas metralhadoras debaixo da cama mas já não escondia os dois revólveres no armário da cozinha; limitava-se a tê-los à mão.

Os dois tios chamaram-no com solenidade num dia quente de junho de 1975 e propuseram-lhe sociedade no escritório. Os clientes habituais tinham debandado, a sua influência nos tribunais tinha diminuído com a revolução e com o medo. Béni nasceu anos depois, em fevereiro de 1989. Chamou-se Benedita por causa de uma tia dos Arcos de Valdevez, rica e tão católica que ainda recebia os padres das redondezas todos os meses, durante um almoço ritual, para lhes recordar que o mundo não tinha acabado com nenhuma das revoluções que entretanto tinham acontecido em redor daqueles muros cobertos de hera e de roseiras, e daquela mobília que cheirava a África, a Brasil, a cera e a um perfume que Jaime Ramos nunca conseguiu identificar porque, apesar de tudo, ele era um homem deste mundo — e o casarão era uma espécie de jazigo de família que os temporais iam despedaçando, inverno sobre inverno. Antes de Béni tinha nascido Luís, e depois de Luís nascera Carmo, em 1978. Quando Béni nasceu, o pai já tinha passado os quarenta há algum tempo. Isso incomodava Sequeira:

«Era um pai de segunda geração, digamos. E a Béni tinha nascido quando já não se esperava que nascesse.»

«Onde é que ele conseguiu as metralhadoras?»

«Comprou-as em Espanha a dois portugueses da Corunha, que as tinham comprado a um militar do Porto. Uma G3 e uma Uzzi. Duas Walther de 9mm. Munições, quantas quisesse.»

«Ainda existem?»

«Arcos de Valdevez tem muito arvoredo e os arvoredos servem para escondermos o que quisermos. A casa de Caminha também é grande o suficiente, e tem caves, adegas, muros. Mas as armas hoje não valem nada. Fora de prazo. Devem ser uma questão sentimental, uma recordação sem perigo para ninguém.»

«Como é que chegaste a ele?»

«Como se chega a um ponto onde nunca se quis chegar. Ele tomou conta do escritório em 1975, tinha vinte e nove anos. Foi procurar os antigos clientes que tinham fugido para o Brasil e viviam em Copacabana ou nas Laranjeiras, perto do consulado. Ou em Petrópolis, em fazendas escondidas na serra. Prometeu-lhes que recuperaria fábricas, lugares de posição, investimentos, terrenos, quintas no Alentejo, empresas ocupadas. Anunciou-lhes que a revolução estava por um fio e que tinha duas metralhadoras debaixo da cama, o suficiente para impedir os comunistas de lhes roubarem outra vez os títulos de propriedade. Pediu percentagens e participação nas sociedades, porque sabia que eles tinham pouco ou nenhum dinheiro naquele exílio de Copacabana. Podia ter um passado de bandoleiro mas era um homem amável e sabia que era preciso dar-lhes uma palavra de esperança ou fingir que os compreendia bem, que estava do lado deles. Mas nunca deixou de ser um homem em fuga. Fugiu de Luanda, fugiu do Porto, fugiu de onde vinha o ruído das trovoadas, tinha aprendido rápido. Mas sobretudo reequilibrou o escritório da família. Em dois anos, dois anos e meio, as coisas voltaram ao que eram.»

«E como chegaram até aqui?»

«Sorte. Copacabana outra vez, onde estavam os que tinham fugido de Portugal com medo do comunismo e dos militares. Um pouco de petróleo venezuelano nos anos antes de Chávez, vendido rapidamente e trocado por imobiliário. Depois, mais petróleo em doses homeopáticas. E a inteligência de não querer entrar no negócio do petróleo depois disso. Montar plataformas, fazer prospeção, mergulhar as sondas, tudo bem. Mas não passar esse limite, porque os estados corruptos são muito ciosos da sua propriedade. Fazer o serviço, organizar a segurança, contratar generais que conhecem outros generais, sobretudo em África. Os generais têm uma moral própria e não conservam inimigos durante muito tempo. E eles souberam fazer as coisas: não acumular riqueza nem títulos de propriedade. Vender no dia seguinte sem ganhar rios de dinheiro. Apreciar o risco mas saber onde está a próxima curva na estrada. Copacabana de novo, outra vez, porque o Brasil é um país fácil para o imobiliário. E, depois, um espírito completamente fora de moda: a terra onde se nasceu. Nunca abandonaram o Minho, nunca deixaram de passar férias em Moledo, nunca trocam de carro salvo se é necessário, continuam a usar casacos comprados há muito tempo, no inverno usam botas, no verão têm toldo alugado à época, comem sardinhas em Vila Praia de Âncora. Luxo, só em casa.»

«Fizeram relatórios sobre isso?»

«Não. Tenho é uma memória fodida, Ramos. Os bancos do lado de lá da fronteira são tão seguros como os do lado de cá. Os negócios estão entregues a especialistas que vêm todas as semanas prestar contas. Uma das filhas desapareceu e é isso que te inquieta, porque as famílias antigas têm sempre um conhecimento aqui e ali, e uma filha daquelas não pode desaparecer sem deixar rasto, sobretudo se tem vinte e dois anos e uma irmã de trinta e quatro. E um irmão que comanda boa parte dos negócios aos trinta e oito anos. E um pai que dorme com duas metralhadoras debaixo da cama.»

«Ainda?»

«Estão descarregadas e não há munições disponíveis. Uma recordação de juventude, acho eu.»

Sequeira levantou-se e dobrou as costas para trás, como se se queixasse de um reumatismo de verão, as mãos nos quadris:

«Aos vinte e dois anos ninguém desaparece só por querer desaparecer. Mas nestas famílias, Ramos, ninguém sabe. Pode ser genético. Uma bisavó excêntrica, uma tia que se fingia de puta em Madrid, um avô que queria destruir o santuário de Fátima, tudo pode acontecer. Há coisas que não nos aparecem nas escutas, como se sabe. E nós não temos nenhuma indicação que te possa servir. Os negócios continuam razoáveis, apesar da crise. Bebem champanhe com alguma frequência, se isso te serve de alguma coisa. Mas sem exagero. É a casa mais bonita do litoral.»

«A moral comunista serve-te de alguma coisa ainda, acho eu», murmurou Jaime Ramos, inclinado sobre o muro de onde o rio parecia, agora, um espelho iluminado por uma luz escondida do outro lado da serra. Apenas um reflexo vindo do céu. Insetos voando sobre a água, pequenos seixos brancos lá no fundo, entre a areia e os juncos.

«A moral comunista já deixou de levar a grandes descobertas. O espírito humano é uma incógnita, aprende-se nos cursos rápidos que nos dão hoje em dia naquelas salas de hotel. Workshops. Teremos workshops de filosofia, sessões de psicanálise, terapia de grupo, teologia, religiões orientais, gastronomia, artes de palco.»

«Estamos todos precisados, Sequeira. Atravessámos a montanha e precisamos de atualização. Estamos velhos», Jaime Ramos olhando-o fixamente. Sequeira tinha uma pequena cicatriz junto do olho direito e esse movimento traía-o naquele instante. «Estamos velhos. Somos de outro tempo. Uma mulher de vinte e dois anos que desaparece de casa da família não me parece que seja uma notícia. Nisso tens razão. Aos vinte e dois anos ninguém desaparece, limita-se a ir à sua vida. Foi o que eu pensei durante estas duas semanas. Pus a melhor agente da secção em Vigo, a reconstituir um fim de semana de hotel. Hora a hora, tenho o relato. Depois disso, nada. A lista de familiares, amigos e gerentes de bares não me chega. E tu tens qualquer coisa que me pode ajudar.»

Sequeira sorriu de novo, mas era um sorriso sem melancolia nem bravura; apenas um sorriso que lembrava a ironia de antigamente, de há anos, quando o mundo apresentava novidades que podiam guardar-se em segredo. E então falou baixo e pausadamente, enquanto juntava as peças para reconstruir o telefone com a perícia de um técnico irrepreensível:

«Estamos velhos e, por isso, gostamos dos vícios dos outros, é verdade. No retrato de família ela está ligeiramente desfocada, como se não quisesse fazer parte daquela perfeição. Disseram-me que tinha uma namorada com quem ia muito de carro a Santa Tecla ou a La Guardia. Podes encontrá-la com facilidade.»

«E porque é que ela deixou o carro em casa?»

«Há sempre um mistério para resolveres, Ramos», concluiu Sequeira, já com o telefone no bolso. «E outra coisa. Não que me faça diferença, mas sempre te ajuda a perceberes como vai o mundo hoje em dia: troca de telemóvel.»