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COQUEIROS SOBRE A PRAIA DE AREIA AMARELA. NÃO DOURADA, COMO NOS ROMANCES — amarela, ocre, suja de poeira que vinha das encostas onde se escondiam aldeias isoladas ao longo da estrada que subia na direção das roças. E, àquela hora da tarde, alguém que passava a correr na marginal ladeada de dois passeios esburacados de velha calçada portuguesa. Miguel dos Santos Póvoa era apenas um engenheiro magro e desengonçado que chegara há três meses a São Tomé e tinha medo de trovoadas e de insetos, as duas coisas que mais havia na ilha: trovoadas de novembro, com relâmpagos iluminando a linha do mar e o som dos trovões ribombando às primeiras horas da madrugada ou ao fim do crepúsculo, quando os poucos candeeiros da avenida se acendiam como luzes de presença numa aldeia triste; e insetos que vinham com o calor, o anúncio das tempestades, a noite profunda de África, os cheiros de podridão e esgoto que nunca deixava de respirar nos arredores da cidade, em charcos que perduravam de uma chuvada a outra ou nos recantos das ruas mais escuras.
Mas agora via-os com uma nitidez especial que nunca experimentara antes. Coqueiros sobre a praia de areia amarela, debruçados sobre a linha de água que subia na maré cheia e arrastava lixo, espuma esbranquiçada e restos de cocos que tinham sido esventrados e abertos a machado. Coqueiros sobre a praia amarela, pensou de novo, enquanto expirava a derradeira baforada de fumo — e alguém passava a correr na marginal deserta. Encostou-se a um dos coqueiros e desenhou argolas de fumo no ar rarefeito e húmido dos trópicos. E pensou em Cândida, em Dulce, em Eva, em Idalina, em todas as mulheres que entretanto conhecera em São Tomé. Dormira com algumas delas. Recordava o perfume de Eva, que era magra — como ele — e usava o cabelo curto. O de Dulce, que tinha uma tatuagem minúscula entre o ombro e a omoplata, uma lagartixa azul que gostava de beijar quando ela o recebia no alpendre da casa, no Bairro do Rosário, e lhe servia cerveja. O de Cândida, maduro como um fruto doce a amadurecer num bosque onde a linha do Equador deixara um rasto de sexo e de vinho de palma. O de Idalina, o mais perfeito, apesar do nome — o de uma tia embrulhada num xaile à porta de casa —, que fora a primeira das suas mulheres portuguesas de São Tomé e o levara de barco à outra ilha, ao Príncipe, onde finalmente percebera que a sua vida mudara de repente, sem que ele esperasse tamanha bênção. Mudara a sua vida de repente e aquelas mulheres não sabiam. Ainda havia Paula, mas Paula era negra, conheceram-se num baile de rua, na Praça de Maio, dançaram (ela dançou, ele deixou-se arrastar através da calçada irregular, um braço em volta da cintura da rapariga, a mão direita a segurar a cerveja, como faziam os homens de São Tomé), fumaram liamba, ele tomara pau-em-pé, ela despiu-o devagar, chamou-lhe «branco maluco», olhou para ele, magro e moreno, e depois, enquanto corria os cortinados da janela do quarto de hotel:
«Vamos para a cama e amanhã casas comigo.»
Ele ficou imóvel, surpreendido, à defesa, e ela desatou a rir, a cabeça para trás:
«Descansa. Eu não caso com um branco.»
E então pareceu-lhe que estava prestes a adormecer, e lutou para se manter acordado, ativo como um pobre garanhão branco a defender a honra de uma espécie em vias de extinção, ouvindo a música que entrava pela porta da varanda, ouvindo a chuva que caíra de repente (por isso a música interrompera-se durante uns minutos, enquanto a água escorria pelos telhados), como sempre acontecia, ouvindo os sussurros e os risos de Paula, que eram novos na sua vida, ouvindo a cama a ranger porque eles rebolavam um sobre o outro, e Paula arranhava-o devagar, deixando-lhe sulcos na carne, entre as omoplatas, e então — tão subitamente como acontecera no princípio de tudo — deixara de chover e uma paz estranha tomou conta dele e arrastou-o para longe, para muito longe, onde não havia infância, nem trovoadas, nem insetos, nem ruído do mar, e tudo se resumia a Paula, que se levantou para fechar a janela e ir buscar cigarros, e não havia mais nada. Essa foi a grande mudança, a de que se apercebera na ilha do Príncipe: não havia mais nada. Para além disto não havia mais nada. E então Paula falou em inglês, estranhamente, I’ll take care of you, como se fosse o princípio de uma canção que ouvira há tempo suficiente para que apenas servisse de encenação para uma história de amor que nunca aconteceria. Take care. E ele adormeceu ainda a tempo de sentir que Paula se afastava da cama e se dirigia para a porta do quarto, ainda nua. Dormiu dez horas seguidas e só voltaria a vê-la dois dias depois, na mesma praça onde tinham dançado pela primeira vez e onde dançaram de novo antes de ela partir para Luanda.
«O que fazes em Luanda?»
«Não faço nada em Luanda. Faço em São Tomé, em Lisboa, em Madrid, em Lisboa outra vez, mas nada em Luanda. Luanda é onde está a minha casa. Trabalho fora de casa.»
«Para o governo?»
«Para quem calha.»
Mas Miguel dos Santos Póvoa era apenas um engenheiro magro e desengonçado que chegara há três meses a São Tomé, que arrastava uma mochila castanha para onde quer que fosse e que, aos quarenta e quatro anos, vivia numa casa ao lado do edifício tosco da embaixada de Taiwan. Encostara-se a um dos coqueiros sobre a praia de areia amarela e deixou-se cair devagar, lentamente, até ficar sentado no chão ligeiramente húmido. Descalçou-se, acendeu o cigarro que guardava no bolso da camisa e marcou um número no telemóvel. Ouviu o sinal de chamada e, segundos depois, uma voz que o fez sentar-se sobre o chão de areia.
«O meu engenheiro dos trópicos», ouviu dizer.
«Ele mesmo. Ah, doutor, descobri um exemplar único, nunca me tinha passado pelas mãos uma coisa assim.»
«De que género?»
«Da mais pura. Sativa misturada com Cannabis Indica entre bananeiras e fruta-pão, a uma altitude média de quinhentos ou seiscentos metros, com grande humidade. Híbrida. Folhas de seda, um luxo. A liamba dos príncipes. Não sei quem a plantou, mas é uma orquestra na minha cabeça.»
«Uma orquestra?»
«Completa. Como numa ópera. Violinos na base, e depois oboés, trombones, fagotes, violoncelos, tímpanos, harpas. E flautas.»
«Estou a ver.»
«Acho que não», disse Miguel dos Santos Póvoa, sorrindo, enquanto uma ondulação mais forte lhe chegara aos pés, molhando as calças e os pés nus, «acho que não consegues ver.»
Do outro lado, ao telefone, pensou, ele não podia ver a mancha de neblina que descia sobre a cidade polvilhada de pontos luminosos, amarelados, aqui e ali, enquanto a escuridão dos trópicos se deixava manchar de humidade.
«Vou daqui a quinze dias.»
«Traz uma amostra», ouviu-o dizer, interrompendo o redemoinho de memórias. «Mas deixa a orquestra aí.»