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AS PUTAS VÊM DEPOIS. Naquela noite em Abidjan, estávamos em 2008, comeu uma delas em plena pista do aeroporto deserto e escuro. O mundo mudava devagar, dizia Luís Ferreira, mas ainda assim era preciso chegar primeiro do que os outros ao lugar onde as coisas começavam a anunciar uma mudança, sobretudo no caso do petróleo, do gás natural, das barragens construídas em África. Havia dois engenheiros russos sentados no outro lado da mesa, camisas brancas de manga curta e calças de sarja, muito usadas, cabelos claros, um inglês cheio de sotaque e de erros de gramática. Um deles usava uma caneta Montblanc no bolso da camisa e tinha os dentes amarelos, era disso que se recordava. O outro falava pouco mas era quem tomava as decisões e sussurrava ao telemóvel, em russo, em frases curtas e sereníssimas, de quinze em quinze minutos, à medida que o general se lembrava de uma plataforma a construir, de prospeção, de segurança e de transferências bancárias. Miguel assistia apenas e, por isso, tinha tempo de observar os dois russos com quem jantariam na varanda do Intercontinental. Um deles fora militar e estivera no Afeganistão como soldado resgatado através das montanhas geladas do Noroeste, enquanto de Moscovo chegavam ordens de retirar, retirar, retirar totalmente.
«Pobre Rússia», disse ele.
O general riu:
«Mas agora é rico e dedica-se aos negócios, coronel. Sente falta dos blindados, da guerra, do cheiro do óleo, da poeira?»
«Não. Sinto falta da Rússia como ela era. E dos homens que combateram um pouco por todo o lado, no Afeganistão, em África, na Ásia, na fronteira com a Coreia, no Pacífico. Essa grande Rússia ardeu», e fez um som estranho, o de uma explosão à distância, ouvida para lá das grandes planícies geladas da Sibéria, para lá das montanhas que protegem Alma Ata, enquanto se servia de vodka e bebia sem retirar os olhos de Miguel.
«E você fez serviço militar?»
«Não. Sou um engenheiro. Um geólogo, para ser mais correto», Miguel respondeu depressa de mais.
«Um técnico», esclareceu o general, como se quisesse resumir e encerrar a conversa.
«Estive em Angola», disse o russo. «Em 1976 e 1977. Saí de Angola a correr, nessa altura, e só parei em Cabul dois anos depois. Era uma cidade bonita e cheia de lixo, com cafés ocidentais e gente que nos odiava. O mundo odeia os russos até certa altura. Depois vê como nós éramos um mal menor e como era importante haver uma Rússia forte.»
«Uma União Soviética», sorriu o general.
«Uma Rússia. Tudo era Rússia. Depois de Estaline, tudo era Rússia. Acabaram-se os georgianos, os ucranianos, os arménios, toda essa gente. Havia a Rússia porque as pessoas tinham saudades da Rússia. Nós sempre quisemos um czar, uma família imperial, um luxo que ultrapassasse o luxo do Ocidente, os retratos da família real britânica. Era a Rússia. Hoje não há Rússia. Não há nada. Há ódio aos russos, mas os russos já não podem defender-se. São uma democracia.»
Ele fez um esgar de repulsa pela palavra «democracia». Ficaram um instante em silêncio, depois o coronel cantarolou baixinho, debruçado para os dois portugueses enquanto enchia de novo o seu copo de vodka, olhando-os sem pudor, como se esperasse que eles desviassem o olhar, derrotados, mas o general não pestanejou, fixando aquele par de olhos frios e azuis.
«É casado, coronel?», perguntou então.
O russo riu, um princípio de gargalhada. Levantou o copo, olhando o general através da bebida branca que equilibrava entre os dedos, sem oscilar:
«Fui casado. Mas não sei nada da minha mulher há muitos anos. Vi-a pela última vez em Moscovo. Deixei-lhe tudo o que pude ter na Rússia. Um BMW, um apartamento, o filho, os discos de ópera, até as fotografias das campanhas militares, que ela já queimou de certeza. No apartamento havia uma fotografia emoldurada de um soldado soviético, fardado de verde, das Spetsnaz, as forças especiais. Deixei-lha ficar. Era o meu retrato dois meses antes de entrar em Cabul. E o senhor, general, é casado?»
«Fui. Sou viúvo. Quase todos os portugueses são casados. É um vício. No meu tempo de militar a sério, quando havia guerra aqui, em África, nós casávamos antes de partir.»
«Combateu em África?»
«Angola e Guiné.»
«Eu podia tê-lo morto se nos tivéssemos cruzado em Angola.»
O general sorriu, ele sorria raramente e, quando o fazia, usava apenas um dos cantos da boca, economizando os músculos faciais:
«Não me parece, coronel. Eu saí antes de o senhor chegar a Angola. Quando o senhor chegou a Angola, a minha guerra já tinha terminado há algum tempo. Lá, em Portugal, havia uma revolução que a sua maravilhosa Rússia apoiava. A minha guerra tinha terminado, tínhamos retirado e tínhamos deixado o caminho aberto para que os russos fizessem o que tinham a fazer. Portanto, mesmo que tivesse boa pontaria, e não duvido que a tivesse, as suas balas não eram para mim.»
«Não duvide. Eu era um bom atirador.»
«Matou muita gente?»
«Em Angola?»
«Em Angola e noutros sítios, já que o senhor é um viajante.»
«Pouca em Angola. No Afeganistão já me parece que houve mais gente, havia frio, estávamos sozinhos, não havia câmaras de televisão, era a nossa última guerra, toda a gente sabia que era a nossa última guerra. Depois fomos mandados para trás, retirar, retirar, retirar. Perestroika. Lembra-se da perestroika?»
«Nós também fomos mandados para trás, retirar, retirar, retirar. Deixámos Luanda, deixámos Bissau, deixámos África.»
«Agora voltou, general.»
«Voltamos todos, mais tarde ou mais cedo. Uma colónia é uma colónia, mesmo se declarar a independência. Do Afeganistão, o senhor voltou para onde, coronel?»
Miguel dos Santos Póvoa nota esse cuidado extremo nas formas de tratamento. Coronel, general, coronel, general, dois antigos militares colocados frente a frente e longe dos seus campos de batalha, depois de todas as guerras, regressando sãos e salvos até um alpendre de onde observam os estragos, onde armazenam os troféus, onde jogam uma partida de xadrez.
«Não voltei. Mandaram-me para Rogachevo. Não conhece. Uma base militar no Norte da Rússia, a caminho do Polo. Seis meses de férias em Rogachevo são seis meses de inferno, era uma espécie de desmobilização forçada. Bebíamos, assistíamos à perestroika pela televisão, ao fim do comunismo, ao fim de tudo aquilo que conhecíamos e que tínhamos defendido. Fomos educados para defender o comunismo. Depois do comunismo veio a Rússia.»
«Finalmente, a Rússia.»
«Não a Rússia. A velha Rússia, pois alguns julgavam que iria regressar a velha Rússia. Mas não. Era a democracia, e a democracia não tinha nada a ver com a velha Rússia. Os russos, general, os russos nada têm a ver com a democracia. Bebem muito, sonham muito, têm saudades do czar. Ou há czar ou há comunismo. Ou comunismo com czar. Saúde.»
Ergueu o copo de vodka outra vez. Havia mosquitos vindos do lago do hotel, uma brisa muito leve que trazia cheiros estranhos, de fruta estragada e de esgotos longínquos. Foi nessa altura que o general se voltou para o outro russo e lhe perguntou:
«E o senhor, engenheiro?»
«Ah, Mikhail Aleksandrovich é quase mudo», esclareceu o coronel, rindo.
Mas ele falou:
«Eu sou engenheiro. Só fui militar de passagem. Engenheiro do exército. Fazia pontes, levantava muros, construía estradas de emergência a meio do inverno.»
Tinha retirado a esferográfica Montblanc do bolso da camisa e rabiscava distraidamente nas folhas de um bloco, fumando Camel sem filtro. Nessa altura havia Camel sem filtro, mas também havia aqueles cheiros da noite que irritavam Miguel e o acompanhavam durante os primeiros tempos de África.
«Filho de russos, russos de Leninegrado, nascido na Geórgia, em Senaki. O meu pai era militar, um comandante do glorioso Exército Vermelho. Estive três meses em Cabul, trabalhei na Geórgia até à separação da Rússia, depois fui para uma das novas repúblicas explorar petróleo para entregar à Rússia. Azerbaijão. E não tenho saudades de nenhuma Rússia.»
«Com quarenta e poucos anos não se sente falta de grande coisa, engenheiro.»
«Não. Não sinto falta da Rússia. Vivo no Porto. A Rússia é uma confusão, e eu não estou interessado em discutir a história do comunismo», disse ele afastando a cadeira e fazendo sinal de que ia à casa de banho.
Mas o general sorria, como se aquele espetáculo de um russo cansado da Rússia o divertisse, e antes que ele se voltasse na direção da saída, perguntou:
«E o senhor, engenheiro, o senhor é casado?»
Mikhail Aleksandrovich semicerrou os olhos e apagou o Camel no cinzeiro que já não era despejado há algum tempo:
«Sou casado com uma mulher russa, é a única coisa que trouxe comigo da Rússia.»
«E tem filhos?»
«O mundo muda, general. Os russos de hoje já não têm tantos filhos como os nossos avós. Sobretudo os russos expatriados», e riu muito alto, como se os russos expatriados o divertissem muito. Mas era um riso amargo e tão fingido como as paisagens dos quadros pendurados nas paredes do restaurante — um rio entre montanhas, uma cascata, uma mulher dançando solitária em cores de aguarela suave, pastel, desfazendo-se. E o engenheiro russo saiu da sala, deixando-os em silêncio, o general sorrindo na mesma, o antigo combatente de Cabul olhando melancolicamente o copo de vodka, Miguel dos Santos Póvoa tentando adivinhar o que havia por detrás do sorriso do general.
O mundo mudava devagar, dissera-lhe Luís Ferreira, inclinado sobre a varanda do solar minhoto, segurando um cigarro de erva e apontando para o mar. O mundo é feito de pequenos momentos de glória, feito de pequenos crimes, de ambições ignoradas. Miguel nunca o esqueceria ao longo dessa noite, depois de o general ter recolhido ao quarto, atravessando o hall do hotel como se marchasse diante de uma tribuna de marechais, vigilantes e austeros, cobertos de medalhas, em continência durante um desfile militar. Ficou com os russos mais um tempo. Eles tinham requisitado três mulheres e uma suite, mas as coisas não correram bem para o coronel, a quem coubera um duo que o abraçara à saída do bar (era meia-noite e meia), porque daí a pouco expulsou uma delas, aos berros, pelo corredor fora. Para evitar o pequeno escândalo previsível, Miguel saiu do seu quarto e acenou à mulher, uma jovem mulata a quem tinha sido apresentado nas escadas do bar.
«Pauline, je m’apelle Pauline. Bonsoir. Et vous?», ela tinha uns dentes brancos e tristes.
Miguel não lhe disse o nome, apenas lhe sorriu e desejou boa sorte em francês, vendo Pauline desaparecer no corredor em que a voltaria a vê-la daí a pouco; ela estava apenas em roupa interior quando o coronel a empurrou para o corredor e fechou a porta com estrondo, gritando em russo. O português acenou, Pauline entrou no seu quarto e, daí a pouco, vestida com uma T-shirt comprida de mais, que fazia de vestido, aceitou beber um whisky e fumar marijuana. Deitaram-se sobre a cama.
«Ele não conseguiu. Não havia maneira de conseguir e ficou furioso», explicou ela, pele de caramelo, pequena e assustada.
«E a tua amiga?»
«Ficou lá. Ele só não conseguiu comigo.»
«Leva-me a passear, tenho um carro lá em baixo», Miguel vestindo-se, de pé, de costas para Pauline.
Daí a meia hora estavam junto da pista do aeroporto deitados no banco de trás do carro, depois no chão de terra, depois sobre o capô. Um avião começara a mover-se lentamente, lá ao fundo. Entraram no carro e esperaram que o avião levantasse voo e passasse mesmo sobre eles. Miguel adormecera sobre o ombro de Pauline que, entretanto, procurava roubar-lhe a carteira. Mas ele deixara-a no quarto, previdente e manhoso.