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HÁ QUANTOS ANOS FAZIA AQUELE CAMINHO PARA CASA? Há demasiados anos. Há quantos anos, ao fazer aquele caminho para casa, pensara se esse fora o destino que escolhera? Há muitos anos, anos de mais — mas nunca dera crédito à pergunta, porque a achara despropositada. E, portanto, é como se nunca a tivesse feito.
«Eu não quero complicações», explicara-lhe Isaltino de Jesus, quando lhe perguntara se estava de bem com a vida. Com outra pessoa (Rosa, por exemplo) perguntaria se era feliz, se estava feliz; mas com Isaltino tinha de mudar de dicionário.
«Tu estás de bem com a vida, Isaltino?»
«Eu não quero complicações. Não quero complicações, chefe. Tenho o que mereço, mais ou menos. Uma família, a minha mulher, os meus filhos, os meus pais, os meus sogros, uma casa. E não me queixo. E a saúde, chefe, a saúde. A saúde é o principal.»
«Os portugueses devem queixar-se. Vem no bilhete de identidade.»
«Pode ser, mas eu não me queixo. Sou de uma raça desmazelada. Como português, queria eu dizer.»
Jaime Ramos tinha um secretíssimo orgulho naquele homem que trabalhava consigo há quase quinze anos e que se tornara uma espécie de extensão de si próprio, respondendo a perguntas que ainda não tinha feito, fazendo perguntas a que precisava de responder. Ele salvara-o do pessimismo, o que lhe permitiu continuar a ser cético como uma espécie de luxo orientado para o bem e para o mal.
«Até amanhã, Isaltino.»
«Bom descanso, chefe.»
Palavras repetidas, frases repetidas.
«Achas que o mundo vai acabar, Isaltino? Que o governo vai cair? Que vem aí um terramoto?»
«Mais fácil o mundo acabar do que o governo cair, chefe. Quem ia cobrar-nos os impostos?»
«Alguém se iria arranjar. Havia de aparecer alguém.»
«Era o que eu dizia.»
Jaime Ramos ficou de pé, parado de costas para a porta de entrada do prédio, o carro de Isaltino dobrando a esquina, fumando o resto da cigarrilha. Céu de trovoada, teria de vir uma trovoada. Maio era o mês das trovoadas, como sabia desde a infância: uma curva estreita ao fundo da escuridão do vale, onde o Douro corria mais veloz entre penhascos rarefeitos — e um céu de trovoada visto entre o gradeamento da varanda, os vasos de flores, a ramagem de uma figueira, as folhas dos choupos, o ruído dos camiões que passavam ao longe numa estrada que se arrastava pelas montanhas, na direção das minas.
«Chefe», começara Isaltino nessa manhã.
Jaime Ramos sabia: observara o pequeno dossier que Isaltino de Jesus trazia na mão esquerda, o selo discreto dos serviços de fronteiras em fotocópias mal tiradas e escurecidas, duplicados azuis, duplicados verdes, papelinhos amarelos colados em outras fotocópias — e um dos seus cadernos de capa preta marca Papelarias Emílio Braga (que ele, periodicamente, comprava em lotes).
«O que o chefe me pediu. De Arkady Tarasov está aqui o registo de viagens nos últimos dois anos, gentileza das catacumbas do serviço de estrangeiros. Angola, Angola, Angola, Angola. Brasil, Venezuela. De Lisboa para Paris, para o Senegal, Dakar. E para São Tomé. Duas viagens para Moscovo com escala em Zurique. É o que temos, além de seis multas de estacionamento e uma por excesso de velocidade. Divirta-se e leia os autos.»
O apartamento de Arkady Tarasov ficava num prédio voltado para a Via Norte e dos seus andares mais altos via-se o mar ao longe — um manto cinzento de ondulação diante da geografia quadriculada de Matosinhos. Dois dias antes, na manhã de segunda-feira, logo a seguir à descoberta dos corpos dos russos, Jaime Ramos visitara-o e confirmara, com um olhar em redor, que a vida dos militares solitários não mudara muito desde há vinte ou trinta anos. As recordações eram cuidadosamente escolhidas: três fotografias penduradas numa parede branca, um invólucro de granada sobre uma mesa, ao lado de um cinzeiro sujo, um tapete muito usado que Tarasov poderia ter trazido da Rússia — ou comprado depois —, um livro em cirílico que Jaime Ramos identificara (Julian Semyonov), vários maços de cigarros russos (Belomorkanal e Sobranie) por abrir ao lado de alguns Marlboro, e pouco mais. O resto era a reprodução imaculadamente limpa (e pouco usada) de um catálogo IKEA: dois sofás diante de um gigantesco aparelho de televisão, cadeiras, uma mesa, candeeiros, o material de cozinha que parecia ter sido acabado de estrear. E comida enlatada na despensa, produtos russos importados (peixe fumado sobretudo), várias latas de cerveja Baltika, a amostra de um regime alimentar que não passava por fazer refeições em casa, como provava o frigorífico quase vazio (iogurtes russos, ovos, frascos de pickles, cerveja, Coca-Cola, manteiga, água). Tal como o frigorífico, os dois quartos ao fundo do corredor também estavam vazios. O quarto de Tarasov: a cama desfeita, um odor a cigarros e a perfume forte, uma passadeira mecânica e um aparelho de musculação, com pesos, de onde pendia uma toalha, o armário da roupa com as camisas penduradas em cabides de uma lavandaria, caixas de sapatos, malas vazias guardadas debaixo da cama, duas mesas de cabeceira, um tapete junto da cama e da janela, um par de chinelos de uma marca desportiva, um par de ténis, um cinzeiro, uma mochila preta — tudo inspecionado. E, depois, uma varanda deserta onde Jaime Ramos imaginou que podiam crescer plantas e colocar-se uma cadeira de repouso voltada a sul; foi lá que acendeu a sua primeira cigarrilha do dia (fumava cada vez mais tarde, teria de perceber se era a idade a exigir-lho) enquanto José Corsário, Isaltino e Jacinto abriam gavetas e deslocavam móveis lá dentro. Mas ele sabia que poderiam retirar-se: aquele apartamento era apenas uma amostra, um lugar onde Tarasov dormia alguns dias por mês — notava-se pelo cheiro, pela arrumação, pela falta de uso da cozinha, pelo tapete limpo à entrada, pela varanda imaculada. Por isso, quando Isaltino veio ter com ele e se encostou à porta de vidro, limitou-se a perguntar:
«Papéis?»
«Nada. Não há passaporte, não há bilhete de identidade, nem papéis de identificação, nem cartas de bancos. Só contas de luz e água, em nome de uma mulher que, já vimos, é a senhoria. Os recibos de aluguer também estão ali. E os da televisão, em nome dele. O Corsário fica com a lista. O chefe quer dar uma vista de olhos?»
«Não vale a pena. Traz só as fotografias da sala», disse ele sem desviar o olhar, como se estivesse a seguir os movimentos invisíveis dos cargueiros ao largo de Leixões.
Daí a pouco voltou-se para trás e, antes de entrar, olhou-se no vidro da grande janela. Um homem a envelhecer e a tratar da vida dos outros, é isso que vês. E um homem ligeiramente gordo, que devia fazer caminhadas de uma hora diária nos passeios do mar da Foz. E com cabelo curto e grisalho. E com um gosto excessivo por T-shirts cinzentas ou azuis que vestia a partir de abril, juntamente com blusões de tecido de gabardina e calças de ganga que variam conforme a sua preguiça e falta de originalidade. E sapatos que usava há três, há cinco, há oito anos. E os braços caídos ao longo do corpo. E é isso que vês: um homem que podia ser outra coisa qualquer, mas que é exatamente isto — um homem que se confunde com toda a gente que desce ou sobe a Avenida dos Aliados, que se senta à mesa de um café e que não surpreende o criado quando faz o pedido, que usa um telemóvel cuja tecnologia arranca sorrisos a José Corsário («Desde que os portugueses chegaram a Cabo Verde, chefe, desde essa altura já inventaram outros telefones. Devia experimentar.»), que escreve à mão, que se olha naquele espelho improvisado — o vidro da varanda de um apartamento vazio, onde supostamente vive um antigo militar soviético, um herói de Cabul, um herói de Angola, um resignado de Rogachevo, um imigrante que percorre a sua via sacra até chegar a um pinhal nos arredores de Vila do Conde, de onde é retirado já cadáver.
«Este homem vivia sozinho?», ouviu-se a si próprio a perguntar para os três homens que abriam e fechavam gavetas e portas de armários.
Isaltino, Corsário e Jacinto olharam-no com surpresa. Foi o primeiro que lhe respondeu:
«Não há sinais de mulher. Nem na casa de banho nem na cozinha.»
«Nem no quarto», acrescentou Corsário, como se quisesse corrigir o machismo quase deplorável de Isaltino, que confinava uma mulher inexistente aos domínios do banho e da cozinha.
«Não é uma casa, não é um apartamento», voltou Isaltino. «É um quarto de hotel.»
«Tragam as fotografias da sala», mandou Jaime Ramos, abrindo a porta de saída.