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PARA INVESTIGAR É PRECISO SER PACIENTE. NÃO LER JORNAIS. Não olhar para o calendário. Resignar-se. Temer os resultados da investigação, temer voltar a página, temer descobrir que se acertou, ficar suspenso de uma intuição. Estranha ironia, estranho receio. Jaime Ramos enfrenta o último dia do mês com a habitual sensação de perda de mais um mês gasto, mas uma voz qualquer lembra o essencial: para investigar é necessário ser paciente, esperar ser tocado pelo deslumbre, uma luz que desce do céu e ilumina os corredores dos arquivos, as salas noturnas onde os agentes se reúnem para afastar a insónia e ouvir os autocarros que passam no cruzamento das ruas mais abaixo.
Ser paciente até que um sinal se transforme no parágrafo que, por sua vez, se transforma em toda a Sagrada Escritura do seu trabalho. E que Isaltino de Jesus, ao fim da tarde, se sente com ar de caso em frente da sua secretária e diga a palavra mágica, o sinal:
«Chegámos. Chegámos lá, chefe.»
Chegámos. Mas não chegámos a esta hora, ao fim da tarde; chegámos mais cedo, chegámos às primeiras horas da manhã quando Jaime Ramos pendurou no cabide o seu blusão molhado da chuva do último dia do mês de maio:
«E Olívia?»
«De baixa, chefe. Uma gripe, em casa. Pediu o dia.»
No dia anterior, à noite, Isaltino fizera o seu relatório a um Jaime Ramos tenso e arreliado — Olívia partira para Vigo e ele seguira-a, obediente e cauteloso. Ela conduz depressa demais, chefe, ela é uma acelera. De Tuy a Vigo como uma flecha.»
«E em Vigo?»
«Em Vigo mais calma, chefe.»
«Ela viu-te?»
«Não.»
«Tens a certeza?»
«Como ter estado sol ontem e ir chover amanhã.»
«Isaltino, tu não sabes se vai chover amanhã.»
«Sei, chefe. É o céu, vê-se pelo céu. E pelo calor. Há de chover daqui a nada, se não for uma trovoada.»
«Tu e a trovoada.»
«Maio é o mês das trovoadas.»
«Não vimos nenhuma.»
«Acaba amanhã o mês.»
«E Olívia?»
E Isaltino contou como Olívia estacionou a moto ao pé da Avenida Beira Mar. Como ele achou estranho, porque não fica no centro, mas foi aí que ela deixou a moto, levando o seu capacete pendurado da mão direita. Como ela andou a pé como se quisesse despistar alguém, subindo na direção dos bairros antigos, cruzando as ruelas daquela cidade de betão e granito, entrando num pequeno hotel, percorrendo as pracetas desarrumadas de uma cidade estragada, já não a Vigo de há vinte anos, que cheirava a calamares e a Ducados, até se sentar naquela esplanada do Café Don Gregorio, voltada para a Puerta del Sol. Como esperou aí até que o sol da manhã crescesse em luz e calor. Como Isaltino a vira pedir uma bebida, e depois outra — uma turista tranquila.
«E que bebeu ela, Isaltino?»
«Vinho branco.»
«E tu estavas onde?»
«Num barzinho pequeno ao lado do hotel. Do Puerta del Sol.»
«E daí em diante?»
«Pois aí é que eu fiquei surpreendido. Talvez o chefe tenha razão nas suas suspeitas e Olívia não tenha ido a Vigo fazer nada.»
«Eu não tenho suspeitas.»
«O que queira.»
«E daí em diante, Isaltino?»
«Desceu para o porto, chefe. Tal como chegara até ali. Perdi-a durante cinco minutos e esperei-a perto da moto, mas dentro do meu carro. Fácil. Foi à estação, aos comboios, pediu informações. Daí seguiu para o hospital e daí para a polícia, Guardia Civil. Repetiu o percurso, portanto. Isto segundo o que o chefe me disse. E às três da tarde voltou para a estrada.»
E Isaltino abriu o caderno e conferiu, folheando, fixando uma página, folheando outra vez, voltando a olhar Jaime Ramos de frente:
«Três e vinte, chefe, para sermos mais precisos. Às três e vinte estava nos semáforos à saída de Vigo. Nessa altura sabia que não ia para outro lado senão para aqui, para o Porto. Mas não veio pela autopista. Em vez de ir apanhar a autoestrada virou à direita e seguiu para Bayona e de Bayona desceu sempre pela estrada que vem para La Guardia. Parou um bocadinho depois de Oia, eu passei por ela e esperei mais à frente, antes de La Guardia.»
«Porque é que os galegos dizem A Guarda e tu dizes La Guardia?»
«Não sei falar galego, chefe. E sempre é Espanha, se me faço entender.»
«Veio para aqui a seguir?»
«Para casa. Segui-a até casa, e vi que arrumou a moto na garagem do costume. Entrou em casa e vim-me embora. Está com gripe.»
Depois, com efeito, choveu ao longo de quase toda a noite, e Jaime Ramos ficou sentado na cama, um livro sobre os joelhos, como se tivesse esperado pela chuva para confirmar a intuição de Isaltino, o meteorólogo de Valongo. Adormeceu a custo e acordou cedo de mais, pelas quatro e meia, cheio de fome, o mesmo livro aberto na mesma página, os óculos caídos no chão, ao lado da cama. Depois de ligar o rádio, em boxers e T-shirt, descalço, abriu as portas da varanda para ouvir melhor a chuva a cair nas lajes de tijoleira do pátio e escoar-se junto dos canteiros, como um regato. Ficou ali por instantes mas a fome arredou-o para a cozinha, onde começou por preparar café numa cafeteira italiana até chegarem as notícias das cinco, chove em todo o país, várias corporações de bombeiros foram esta noite chamadas para acorrer a situações de alguma gravidade, uma casa ruiu, uma árvore caiu sobre a rua, um ministro irá esta manhã ao parlamento, um incêndio em Buenos Aires, chove em todo o país. Jaime Ramos gostaria de saber dançar — convidaria Rosa para uma viagem até Buenos Aires, como acontece a alguém da sua idade sonhar pelo menos uma vez na vida. Tinha de passar a pedir mais café colombiano. Tinha de passar a comer cereais sem açúcar. Tinha de passar a ser outra pessoa qualquer. Entretanto, retirou dois ovos do frigorífico (os solitários guardam os ovos no frigorífico) e bateu-os numa tigela até que a sua consistência o comoveu. Uma pitada de sal, ligeira. Que descansem. Com a frigideira ao lume, Jaime Ramos corta fatias muito finas de cebola, meia cebola basta. Um fio de azeite, um fino fio de azeite apenas para que a cebola deslize sobre a superfície quente da frigideira. Uma pequena nuvem de colorau, e uma colher de pau para mexer a cebola e amaciá-la devagar. Quatro, cinco, seis rodelas de chouriço que caem sobre a cebola e rapidamente são absorvidas. Entretanto, colhe alguns ramos de salsa nos vasos da varanda e pica-os na tábua, juntando-os à cebola. Mexe uma vez e outra. Mexe de novo e, antes que a cebola comece a dourar, junta tudo na tigela onde os ovos aguardam. As batatas cozidas da véspera (sobras que guardara, porque tudo se guarda na cozinha) são agora cortadas em fatias finas e depois conduzidas à frigideira para que salteiem e algumas fiquem estaladiças. O café pede-lhe atenção, e Jaime Ramos serve-se de uma chávena grande a que junta açúcar. Rosa bebe café sem açúcar, mas Rosa está a dormir no andar de cima — e ele concluiu, entretanto, que em nenhum país produtor de café se bebe café sem açúcar, e que o mundo sofreria bastante se se deixasse de consumir café sem açúcar. Bebe um pouco. Sacia o seu apetite de café, o sabor reconcilia-o com o aroma igualmente doce da cebola e, agora, das batatas que vão ficando estaladiças de um dos lados. Saltear as batatas em pouca gordura, sujeitá-las ao calor sem fritá-las, absorvendo o resto do azeite. Dois comprimidos matinais em jejum. Mais um, a seguir, com o pequeno-almoço. Pão torrado. Voltear a mistura de ovos, cebola, salsa, rodelas de chouriço (garantiram-lhe na mercearia que vinha de Vinhais), vertê-la sobre as batatas, ajeitá-la com o garfo, deixar que o calor seque os ovos, agitar a frigideira para que não seja necessário virar a tortilha, ver como o aroma se transforma em perfume e pede apoio a um apetite ingénuo e matinal. Servir tudo num prato que espera na mesa da sala, ao lado do café e do pão torrado, diante das portas abertas para a pequena varanda onde caem algumas gotas de água da chuva. 5h10, ouve na rádio. Onde estará Olívia a esta hora? Onde estará Béni? Onde estará Irina? A primeira garfada comove-o. Rosa não aprovaria as batatas — mas Rosa está a dormir no andar de cima, e ele estudou, investigou, e sabe que as batatas elevam o nível de serotonina, o que explica que as pessoas magras tenham mau humor. Assim, vai construindo teorias à medida que o pequeno-almoço o desperta e a melancolia se mistura com o som da chuva, até serem uma e a mesma coisa.