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AH, FAMÍLIAS ESTÁVEIS, JAIME RAMOS CONHECIA-AS, FAMÍLIAS ESTÁVEIS, DURADOURAS, com tradições e uma casa no Minho, entre arvoredos e vinhas antigas. Um dia, a filha mais nova desaparece: é como um turbilhão invadindo as vinhas que descem para a estrada, ao longe, arrastando os primeiros perfumes de primavera.
Uma história de família? Já não existem. Pelo menos como elas eram há vinte, trinta anos, com hierarquias estáveis e relações duradouras, autoridade que não se questionava, destinos medidos por etapas: primeiro a infância, depois a adolescência, dois ou três erros de juventude desculpados mas punidos, a entrada na idade adulta, o primeiro emprego. Agora não há primeiro emprego, não há primeira casa própria, ou alugada num bairro dos subúrbios ou numa rua não tão no centro da cidade, mas onde há autocarros que passam, uma mercearia, uma tabacaria, um café que fecha aos domingos; agora, o mundo mudou. Os filhos fumam cedo demais, recusam ir às aulas suplementares de Matemática, chegam tarde a casa, trazem droga nos bolsos (um pouco de erva, um pouco de haxixe), bebem álcool, roubam pequenos objetos de casa, imitam personagens de televisão e vidas do cinema. São estrelas de rock ou têm más companhias, não conhecem os avós. Ou os avós mudaram de repente e são prisioneiros do passado, nostálgicos da revolução, do maio de 68, de Woodstock ou de um mundo que não foi capaz de existir; as avós já não sabem cozinhar, impor regras, ouvir queixas, limpar as lágrimas ou o nariz sujo, obrigar os netos a tomar banho e a aparar as unhas. Os tios tiveram azares na vida — faliram, morreram, estiveram à beira da morte, vêm de outra vida, escrevem em blogues sobre política e literatura, copiam poemas que circulam de mão em mão, atrasam-se a pagar as contas e a liquidar os impostos, têm cancro aos quarenta anos, fogem para um país distante, sonham voltar a África, perder-se num bairro de Marraquexe, ou entregar-se a um amor que falhou há muito tempo. Às vezes, as pessoas sensatas têm saudade de um mundo em que havia ordem e disciplina, e contrariedades, mas tudo as cansa — a ordem, a disciplina sobretudo —, tudo as comove, tudo as impede de voltar a lutar até ao fim.
Uma história de família seria bom. Em plena crise económica, as famílias despedaçam-se facilmente. Falta o dinheiro para as coisas essenciais: férias à beira do mar, pão fresco aos sábados, os jornais de fim de semana, roupas novas para os filhos em setembro, discos que se juntam numa sala. E para o arroz, para o frango cortado em pedaços, para o tabaco, para o vinho, para a melancolia, para os passeios pela serra, para a vida que há de terminar mais cedo do que se supõe. Tanta falta de vida, tanta falta de amor, tanta falta de alegria.
Jaime Ramos passa em revista casos e casos que vieram ter à sua mão nos últimos dois meses: um rapaz de dezasseis anos que fica em casa, a viver sozinho, abandonado pelo pai, que tinha ido viver com a jovem namorada de vinte e oito anos, enquanto a mãe se dedica a descobrir as margens da Atlântida numa cidade marroquina, onde se perdera há dois anos por causa de um guia local que lhe oferecera sexo e haxixe; um homem que abandona os seus dois filhos, de seis e oito anos, numa estrada algarvia, a meio da noite; uma mulher que, depois de consumado o divórcio, se tranca no quarto durante uma semana, urinando e defecando na cama, deixando a filha menor, de cinco anos, abandonada no seu quarto, sem comida; um empresário bem-sucedido que decide fazer as malas a meio de uma semana e abandona a família feliz, partindo sem deixar outro rasto que não seja o de dois bilhetes comprados, em simultâneo, um para a África do Sul e outro para a Venezuela; um dia o marido levanta-se da cama para acordar os filhos e vê que a mulher tinha saído de casa levando duas malas de roupa — ah, ele conhecia as famílias perfeitas que dão grandes passeios de bicicleta em caminhos junto do mar. Ele conhecia todo o género de famílias mas não queria nenhuma delas para si, até que um dia todas desaparecessem da face da terra, e a memória de Jaime Ramos também, e a de Rosa, e a de Béni, e a de Isaltino de Jesus, e a de José Corsário, e a de Olívia — que eram a sua família verdadeira, o seu pão e a sua chuva de verão, aqueles que o compreendiam e não o desculpavam.
Ele não entendia nem julgava a vida dos outros. Limitava-se a enumerar desordens. Nunca tivera filhos, nunca sentira qualquer tipo de cumplicidade em relação aos filhos dos outros ou aos adolescentes que via na rua, em ajuntamentos, ou solitários, ou acompanhados uns pelos outros, suspeitos de pequenos crimes, de pequenos delitos — furtos, alcoolismo, consumo de droga, vandalismo — que desculpava como um indicador da idade. Via-os passar na rua, altas horas, bebendo cerveja por garrafas de litro, rindo alto, mas continuava sem fazer um esforço para o degrau seguinte; continuava sem entender nem julgar. Estranho no meio de estranhos, fingia que o mundo não o surpreendia, e essa era a sua defesa contra a adolescência. Como fora a sua adolescência, depois da morte do pai? Ele vira o caixão descer à terra, levando-o, um homem triste e brutal, transformado numa espécie de resíduo à medida que os anos passavam e se repetiam os rituais de uma vida com poucas alegrias: o enxofre na vinha, a cor das abóboras, a rama verde dos campos de batatas, o ondular do milho nas encostas, os bois arrastados pelos lameiros logo de manhã. Não tinha nenhuma marca de sentimentalismo, nenhum sinal de sentimentalismo na sua vida. Recordava o caixão que levava o pai para o interior da terra e do xisto; recordava a mãe, cozinhando, sentada num banco diante da lareira, aguardando que um novo dia chegasse para pôr fim ao anterior, envelhecendo até morrer num país de merda que escondia o sofrimento dos outros — uma espécie de escândalo — com medo de olhá-lo de frente. Nessa altura visitava-a com frequência e ajudava nos trabalhos do campo ao lado do irmão: a época do milho, a época das batatas, o cabo nodoso da enxada que herdara do pai e que o seu irmão nunca quisera utilizar, as queimadas de verão, as trovoadas, o ruído da chuva a cair no pátio da casa, rente aos vasos de malvas e cravos, o cheiro quase putrefacto das arrecadações. O irmão, precisamente, casado com uma namorada de infância naquela aldeia onde não havia infância ou onde a infância era substituída por fugas para o rio, saltando do alto dos penedos para o coração da água fria, ou por corridas até às eiras solitárias e poeirentas. E por lembranças. Não memórias. As memórias são outra coisa, pensou Jaime Ramos. As memórias são o nome das árvores ao longo de uma estrada nas montanhas, um sabor que nunca terá um nome nem uma história, uma bicicleta que ficou tingida de ferrugem, um barco no meio do rio, um livro aberto ao lado da cama, uma manhã de nevoeiro, um comboio que atravessa a fronteira, os picos de neve entre as minas das Astúrias (os seus tios trabalharam lá durante anos), um bilhete de cinema deixado no bolso de um casaco que já não se usa, o riso da primeira namorada, ou da segunda, o cheiro da pólvora num descampado em chamas, o piar das corujas tão infantil, o ruído dos helicópteros rondando a estepe africana, o vento quente e salgado das ilhas da Guiné, o cheiro do peixe no mercado de Espinho, o rosto de Rosa aguardando que lhe respondesse às perguntas que ela raramente fazia, o ruído das portas que se fecham pelos corredores vazios da polícia ao fim do dia, as orações que aprendera em criança, a confissão de que estava a envelhecer sem remédio, e tudo o que nem o tinha mudado nem o tinha deixado indiferente, como o vazio das praias a meio da noite, as casas coloridas da Costa Nova, as dunas de São Jacinto onde costumava sentar-se a observar as garças que atravessavam a língua de areia que subia desde a ria, as luzes isoladas dos faróis, o ondular do mar rente à Afurada, os cadáveres arrumados em gavetas — era essa a sua vida: um grão de sal a desfazer-se na boca. O seu prazer secreto, o seu esconderijo.