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ELA GOSTAVA DE ENROLAR UM CIGARRO DURANTE O JANTAR, enquanto esperavam a sobremesa — e de guardá-lo numa caixinha de prata quase feita à medida, com um fecho de jaspe vermelho. Esse era o sinal. Depois, Paula brincava com o cigarro entre os dedos, um cigarro perfeito — Miguel dos Santos Póvoa recordava-se dos cigarros que saíam da máquina de Luís Ferreira, redondos, a ponta de filtro marcada com um V dourado, mas nenhum era tão generoso como os que Paula enrolava.

«Liamba pura, pura. Pedrada dos céus», dizia. Uma espécie de gourmet que gostava de sacrificar cada minuto de duração da cerimónia. Até lá, ela bebia vinho, acompanhava-o num whisky, mas nada a dispunha para um humor descontraído como o líquido gelado das caipirinhas, porque o sumo de lima combatia o stress, garantia. Miguel sabia que era o açúcar, o encontro perfeito de gelo e álcool, a mistura perversa com um fim muito preciso: deixar uma tontura que depois se acrescentava a todos os gestos de Paula, levemente alcoolizada. «Faz o que quiseres de mim.» Ele sorria, bebia whisky, misturava água e gelo para que a bebida fosse mais fácil, mais adolescente, enquanto Paula pedia nova caipirinha, ou ele pedia nova caipirinha para Paula.

Uma noite em Luanda, ele daria a vida por uma noite em Luanda vista do terraço do hotel, quando os bairros pobres desapareciam do horizonte, quando os ruídos do centro se limitavam a uma motorizada que passava, quando um carro da polícia atravessava as colinas — e se ouvia apenas uma espécie de eco de cada coisa que diziam. Uma noite em Luanda. A ilha vista daí, do terraço do hotel, a ponte que funcionava como uma restinga suspensa, uma gota de suor no lábio superior de Paula, o ombro, o colo imaculado, a pele lisa, aquele torpor, o cheiro a sexo à mesa do restaurante, o riso dos criados que adivinhavam aquele resultado e se afastavam quando Paula se levantava e levantava os braços, espreguiçando-se. Depois ele levantava-se também, segurava-a pela cintura, descia um dedo pelo ombro de Paula, deixava cair a mão, ela encostava o corpo ao seu, e Miguel pressentia que a felicidade existia ou, pelo menos, que uma espécie qualquer de felicidade havia de romper na sua vida e que Paula a anunciava com o seu sorriso.

O que sabia dela? Pouco, quase nada. O pai, um general reformado do Cuanza Sul que vivia num hotel. Estudos em França e na Suíça, depois nos Estados Unidos. «Nasci em Luanda, isso é suficiente.» Mas não era. Aos poucos conheceu os dormitórios de uma universidade em Rhode Island, os passeios na neve americana da Nova Inglaterra, o namorado que foi abandonado num terminal de aeroporto e que chorou quando ela partiu definitivamente para Angola, em julho de 2006. Conheceu um apartamento parisiense que o pai de Paula comprou para que ela pudesse, durante três anos, estudar os mistérios da ciência política (também aprendeu a dizer SciencePo). Conheceu dois jovens funcionários da embaixada de Angola em Paris, emitindo vistos e jantando em restaurantes brasileiros. Conheceu voos de longo curso entre África e a Europa. Hotéis em Londres, onde Paula era recebida como uma cliente regular e onde deixava uma mala com roupa para a próxima estada. O apartamento de Lisboa, voltado para um jardim onde um motorista branco lia os jornais enquanto aguardava o pai, e depois o levava a almoços no Guincho para tratar de negócios ou de política. Conheceu a areia da antiga Novo Redondo, do Sumbe, a ondulação do mar, as pontes de madeira sobre o leito do N’gunza, as nuvens brancas sobre a estrada para Cela. Conheceu a irmã de Paula, Liliane, que vive em Londres. Conheceu a varanda de uma casa debruçada sobre um planalto cuja descrição não pôde fixar, mas onde a chuva de abril se despede deixando nuvens de cinza pousando sobre toda a terra. Conheceu um caderno onde Paula compõe o seu diário incompleto, onde cola fotografias dos lugares por onde passa, cartões de embarque, pacotes de açúcar vazios, e onde escreve com canetas de três cores (preto, azul, sépia). E soube que o pai de Paula enviuvou antes de casar com Irene, a mãe de Paula e Liliane, e que Irene também morrera — há cinco anos, de cancro, em Lisboa. E que o prato preferido de Paula é camarão frito (com batatas fritas) nos restaurantes da Ilha de Luanda, que ela acompanha com cerveja. E que Paula gosta de cozinhar. Conheceu também a música que a acompanha nas suas viagens. Soube que as viagens se relacionam com o seu trabalho, e que esse trabalho é feito para um banco angolano que agradece todas as suas informações sobre investimentos, os seus pareceres sobre negócios em curso, os seus relatórios sobre as implicações políticas desta ou daquela decisão, as suas listas de pessoas a contactar para este negócio ou aquela operação financeira, os seus cálculos e previsões — porque foi isso que aprendeu a fazer em Rhode Island, sem falar no curso de SciencePo em Paris. Conheceu tudo isto através de Paula, em conversas longas depois de jantar ou na cama de um hotel onde se demoram a falar do que calha — e Miguel gosta disso, de conversar, de descer o braço pelo corpo de Paula, das pernas de Paula pousadas sobre o seu peito, da luz que vem da janela e que anuncia a madrugada africana, cedo de mais, sempre muito cedo.

Desde o primeiro encontro, em São Tomé, até ao mais recente, em Luanda, passaram quase oito meses. Ela enrolava um cigarro durante o jantar, enquanto esperavam a sobremesa — depois guardou-o na caixinha de prata. Miguel dos Santos Póvoa tomou nota mentalmente, como se precisasse de se recordar disso mais tarde.

«Tesão por ti», disse.

«Branco maluco», ela tocando com a perna o tornozelo de Miguel, por baixo da mesa. Era isto que, na altura, sabia de Paula.