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ÀS OITO E MEIA, DURANTE A PRIMEIRA SEMANA DE JUNHO, A NOITE AINDA NÃO POISOU SOBRE TODA A TERRA DO LITORAL. Aqui e ali, entre o farol e a ondulação do mar que ameaça a pequena fortaleza, pequenos barcos passeiam como se não tivessem destino, lançando redes, regressando aos poucos ao areal; há trinta anos, as praias cobriam-se de sargaço ao fim da tarde, principalmente em redor do molhe de Vila Praia de Âncora, diante da avenida que acendia as luzes e primeiro sentia as neblinas que desciam ao longo da costa.
O homem estava sentado sobre uma das dunas, perto das armações de madeira que no fim de semana receberiam os primeiros toldos do ano. Uma praia deserta tranquiliza mais do que o próprio ruído do mar; depois de alguns dias de chuva, as marés baixas são suaves, de ondulação limpa, como um metrónomo que se pode controlar à distância. Jaime Ramos sabe o que vai acontecer — porque previu tudo, desde o início. Deixara Isaltino de Jesus à porta do bar, no Porto, e entrara na autoestrada depois de Jacinto ter confirmado que Miguel dos Santos Póvoa tinha desviado o carro da estrada nacional, atravessara os pinhais, à esquerda, e parara em frente de um dos bares da praia, em Moledo. Quando se cruzaram, Jaime Ramos mandara-o embora, acenando-lhe com a mão e recomendando-lhe silêncio: o homem estava à vista do muro, sentado na coroa de uma duna. O polícia desceu as escadas. Agora, a escuridão começara a envolver toda a praia e deixara de se ver o forte da Ínsua, recortado contra o vulto da montanha de Santa Tecla. Olhou o relógio e confirmou que passara uma hora desde que aterrara o avião de Genebra. Jaime Ramos precisava de se certificar que a mensagem tinha sido entregue.
«O chefe, afinal, é um romântico.»
«Cumprimos o nosso dever, Isaltino, cumprimos o nosso dever.»
«Ele era uma marioneta, no fundo. E sem saber, sem suspeitar de nada. Levava dinheiro de um lado a outro, e dentro do dinheiro o que calhava. Porquê transportar dinheiro, chefe?»
«Os portugueses são desconfiados em quase tudo, menos no que devem. E não vão em depósitos no banco, Isaltino. Depósitos no banco deixam rasto, aparecem fiscais das finanças, polícias como tu e eu, curiosos que não desarmam. Mas um homem que transporta amostras de petróleo, de rochas, de sedimentos, disso ninguém desconfia. Tudo certificado, exceto os diamantes que toda a gente recolhia em toda a parte. Em toda a parte.»
«E ela, a angolana?»
«Sabia que os russos desviavam dinheiro e faziam negócios por conta própria. Ela não. Ela limitava-se a fazer o seu trabalho, a transportar o que havia a transportar de um lado para o outro. Mas sabia de tudo.»
«Vamos ter de abrir inquérito?»
«E porquê, inspetor Isaltino? Dá-me a impressão que não temos uma única prova de que a rapariga se dedicava ao crime. Também deve ter feito negócio por conta própria. Ela foi morta por Tarasov enquanto Polianov estava a ser morto pelo general. Depois, o general meteu o cadáver do primeiro russo no carro, esperou pelo outro e levou-o para Vila do Conde. A Medicina Legal há de confirmar tudo.»
Isaltino encolheu os ombros, conformado. Bebera a sua primeira cerveja de trigo sentado ao balcão do Bonaparte. Depois, Jaime Ramos partiria, confirmando que Jacinto seguira Miguel dos Santos Póvoa até Moledo. Mas antes, voltando-se para o balcão, deixando o dinheiro da conta:
«A Medicina Legal há de confirmar tudo, Isaltino. Só não pode confirmar a morte de Paula.»
«E porquê?»
«Porque Paula Ana Paz Oliveira, um nome assim dá vontade de ser angolano, não foi assassinada. Aquela mulher não é a amiga do nosso Póvoa.»
Quarenta minutos depois, Jaime Ramos descera as escadas para a praia. Estava a começar a tornar-se um hábito terminar as suas histórias em redor deste lugar, que agora era uma espécie de clarão de luz no litoral. Olhando o mar para confirmar que ele continuava sentado no mesmo lugar, sentiu também aquele perfume de pinheiro, de terra queimada, de carqueja e giesta entre os eucaliptos, e voltou-se, cabeça inclinada para trás, sorvendo o ar. Foi então que a viu, saindo de um táxi, vestido preto, sapatos de salto alto, o cabelo frisado solto. Ao chegar às escadas, descalçou-se e olhou para a espuma branca das pequenas ondas, antes de descer. Jaime Ramos estava logo abaixo, e viu-a passar. Um anjo de prata no fio do pescoço. E só então ele voltou para trás, subindo as escadas, deixando as coisas entregues ao seu destino.
Estás um pouco velho, ligeiramente trôpego. Se tivesse outra profissão, poderiam festejar a tua carreira. Por exemplo: quanrenta anos de vida literária, inspetor Ramos. Quarenta nos de vida artística comemorados com o esplendor de uma vaga recordação profissional. Quarenta anos de carreira e a promessa de uma reforma adiada por mais uma década — e, a bem ver, inspetor Ramos, o que irias tu fazer de uma reforma garantida por anos de economias mal guardadas? O vendaval passou, nada mais resta. Irias trautear canções velhas e tão fora de moda como tu próprio. Irias retomar o hábito de ir pescar para a ria de Aveiro ou num rio do Gerês onde não chegam nem o ruído da cidade nem as vagas de uma multidão que passou por todos os anos da tua vida. Irias esperar Rosa junto do portão da escola e aguardarias que ela contasse como a ignorância tomou conta da humanidade e ninguém se interessa por Matemática, por Física, por Química, pelos segredos do Cosmos. Irias cozinhar para que o teu pequeno apartamento tivesse um aroma e uma história pessoal, e para que Rosa abandonasse a sua busca por uma dieta perfeita. Irias ser como és, nada mais.