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O Pedro avisou-nos que amanhã temos provas de avaliação. A avó Elisa diz que no tempo dela não existiam estas coisas: uma pessoa chegava à escola, aprendia a ler, a escrever, a contar, e no fim do ano fazia um exame. Por isso ela encolheu os ombros quando lhe falei nas provas, e ficou toda escandalizada por eu chamar Pedro ao professor.
— Se alguma vez isso se admitia no meu tempo! Levávamos logo uma data de reguadas e ficávamos o dia todo no fundo da sala virados para a parede sem podermos falar com os outros... De resto, nem a gente se atrevia, credo! Era «minha senhora», ou «senhor profes sor», e tudo com grande respeitinho... Mas vocês agora sabem lá o que isso é...
Reguadas, não sei, não. (E, aqui para nós, não tenho grande pena dessa minha ignorância.) Mas respeito, sei. Só que me parece falar das mesmas coisas com palavras diferentes das que usa a avó Elisa.
No outro dia ela disse-me:
— A tua amiga Rita tem grande respeito ao pai.
Eu não respondi porque estava entretida a colar cromos novos na caderneta, mas fiquei a pensar naquilo durante muito tempo. E ainda penso. Sobretudo quando converso com a Rita lá em casa. Ainda aqui há poucos dias.
— Se eu estivesse na minha sala com um frasco de cola e um pincel, como tu estás, levava logo do meu pai — disse ela.
— Levavas o quê? — perguntei eu.
— Às vezes parece que és parvinha ou que andas a navegar por outros mundos... Levava uma tareia, o que havia de ser?
E riu, como se tivesse acabado de contar a história mais divertida do século XX.
— Mas levavas uma tareia porquê? — insisti.
— Ora... Porque podia sujar a sala, porque a sala é para as visitas, sei lá por que mais... Por tudo... Por isso é que eu fujo logo para o meu quarto mal oiço o meu pai entrar em casa. E mesmo assim... «Rita, não desarrumes nada!», «Rita, não te sujes!»... É sempre isto, mesmo quando estou quieta no meu canto... A mãe diz que a casa tem de estar sempre arrumada e que eu desarrumo tudo.
— E não desarrumas?
— Não, não desarrumo. O que acontece é que arrumo de outra maneira, e é sempre de uma maneira de que a minha mãe nunca gosta... De resto, as coisas nunca mudam de lugar lá em casa. Um dia o meu pai bateu-me porque eu pus o cacto em cima da secretária dele... O cacto era meu, parecia quase uma rosa verde com muitas folhas, e eu pensei que ele gostasse de ter uma planta bonita a fazer-lhe companhia, quando estivesse a trabalhar... Mas ele só disse que eu tinha entornado terra e água e agora a secretária estava manchada... Nem sequer reparou se o cacto era bonito ou feio... Eu olhei para a mesa e não vi lá nada, mas ele teimava que se via muitíssimo bem uma mancha mais clara no sítio onde eu tinha posto o vaso... E que mais desastrada que eu não conhecia ninguém...
Nunca falei nestas coisas à Rita, mas penso que é medo que ela tem do pai, e não respeito, como pensa a avó Elisa. E acho que deve ser horrível ter medo de alguém, sobretudo se esse alguém for nosso pai ou nossa mãe. E também acho que deve ser muito triste viver numa casa onde não podemos mexer em nada, numa casa tão arrumada como a da Rita. É claro que eu gosto de casas arrumadas (a minha irmã irá mexer nas minhas coisas?...), mas a casa da Rita cheira a museu, não cheira a casa onde vive gente. Lembro-me de uma tarde ouvir a minha mãe dizer para o meu pai:
— Aquilo é um lugar sem vida, quase nem nos atrevemos a respirar lá dentro com medo de sujar os vidros.
E era da casa da Rita que estavam a falar.
Onde a avó Elisa diz que há tanto respeito. Talvez no seu tempo fosse assim. Por isso eu gosto de viver agora, apesar de a minha mãe ainda não estar em casa, apesar de a minha irmã não ser nada como eu pensava, apesar das provas de avaliação marcadas para amanhã. As tais de que a avó Elisa nunca ouviu falar. As provas de texto livre, de desenho, de gramática, não me assustam. Só me assusta um bocadinho a de matemática. Mas o Pedro disse que eu «produzia o suficiente», por isso acho que não vai haver complicações.
Mesmo assim vou ver se trabalho um pouco mais.