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Desde que a minha irmã chegou, nunca mais houve sossego nesta casa.
A minha mãe anda nervosa, diz que já está destreinada, que não se entende com tanto biberão e tanta fralda.
A avó Elisa, na ajuda que vem dar todos os dias, diz que a menina está a engordar pouco, e que eu com a idade dela era muito mais desenvolvida.
A tia Magda vem cá dia sim dia não, e diz que a menina está cheia de sede, e que nunca se há-de esquecer como, se não fosse ela, eu teria morrido com falta de água exactamente naquela idade.
Só o meu pai vai mantendo a calma no meio disto tudo.
Para ajudar à festa, tem sido um corrupio de visitas e familiares (daqueles que só vemos lá de ano a ano e depois olham para nós e dizem «mas que crescida!»), todos a quererem ver o bebé, todos a quererem saber mais do que os outros, todos a quererem mostrar como se trata de crianças.
No outro dia a minha prima Isaura disse para a minha mãe:
— Já nem sabes pegar na menina como deve ser!
Fiquei a olhar para ela muito espantada. A prima Isaura nunca casou, não tem filhos, como há-de pretender ensinar a minha mãe, que já me teve a mim há dez anos?
Foi por isso que eu lhe disse:
— Então mostre lá como é!
Ela tirou a minha irmã da alcofa, passou-lhe um braço por volta do pescoço e outro pelas costas, que a minha irmã ficou toda aninhada e as mãos dela pareciam um barco ou um berço.
— Vês? — disse-me ela. — É assim. Lá saber de crianças, sei eu.
E os seus olhos ficaram de repente diferentes. Não sei bem se era tristeza, mas era um olhar que quase nos dava vontade de chorar ou de lhe fazer festas sem razão.
Notei que todos se tinham calado e a minha mãe fingiu andar à procura de um alfinete-de-ama pelo chão, mas eu bem vi que era para disfarçar e que ela sabia que não havia nenhum alfinete por ali caído.
A prima Isaura pôs a minha irmã de novo na alcofa, sorriu e disse:
— Vá! Volte para a sua cama que não lhe quero criar maus hábitos.
E tudo pareceu voltar ao normal.
Mais tarde o pai explicou-me que a prima Isaura tinha criado os irmãos todos como se fossem seus filhos. A mãe morrera quando nascera o mais novo (de repente pensei nas palavras da avó Elisa ao telefone naquela noite em que a minha irmã nasceu — «correu tudo bem» — e sinto cá por dentro uma espécie de arrepio ao pensar que ela podia ter dito «correu tudo mal»...), e o pai passara depois muitos anos na prisão. O meu pai diz que nunca conheceu homem tão bom como o pai da prima Isaura, e que dantes as pessoas eram presas quando lutavam para que todos tivessem comida, e casa, e trabalho. Eu não sei como é que se luta por isso, mas hei-de um dia perguntar ao meu pai. E hei-de conversar com ele sobre estas coisas todas.
Mas por agora é impossível conversar nesta casa. Anda tudo à volta da minha irmã, todas as conversas começam ou acabam nela, coisa tão pequena que, de repente, enche uma casa e se torna na pessoa mais importante da família.
Agora «a menina» é ela.
Se alguém telefona e pergunta «a menina?», já sei que isso deixou de ser comigo. Eu agora sou «a Mariana» e mais nada. Não é que me importe, pelo contrário, até me dá certo ar de rapariga crescida. Só que alguém podia ter tido a delicadeza de me prevenir.
Quando a confusão aumenta, geralmente por volta das sete horas, a minha vontade era meter-me no meu quarto e não voltar a sair de lá. Mas é nessa altura que todos se lembram de mim.
«Mariana vai pôr a mesa.»
«Mariana olha o telefone.»
«Mariana apanha o sabonete.»
Porque às sete horas é hora de tudo e não há tempo para nada. É hora do banho da minha irmã, é hora do biberão, é hora do pai chegar, é hora de ter o jantar pronto e — nunca percebi bem porquê — é hora de toda a gente se lembrar de telefonar cá para casa. E é hora em que já não há ninguém para ajudar. Esquisito, como todas as pessoas querem ajudar quando não são necessárias, e desaparecem na altura exacta em que precisamos delas... Por isso o meu pai ao chegar a casa fez-me uma festa e disse:
— Tens que ter paciência... Isto é sempre assim ao princípio... Contigo ainda foi pior... Mas daqui a uns dias vais ver como tudo caminha bem.