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No domingo não fomos sair porque a minha irmã estava com febre. Todo o mundo doido, o que é, o que não é, a avó Elisa agarrada ao telefone à procura do médico que não estava em parte nenhuma, a tia Magda a perguntar para cá de cinco em cinco minutos se a menina não estaria com sede, que ela bem se lembrava do que tinha acontecido comigo, a prima Isaura a recomendar água morna com açúcar, a vizinha do lado a garantir que tudo passava com um banho frio, até a mãe da Rita afirmando:
— São convulsões.
— Um dente! Vocês vão ver que não é mais do que um dente a querer romper — dizia o pai, que nestas coisas é sempre aquele que fica mais calmo.
— Quando era da Mariana nunca te vi assim tão tranquilo! — resmungava a avó Elisa, os dedos continuamente discando o número de telefone do médico.
— A Mariana era o primeiro filho. Nunca sabemos nada nessa altura. Mas aprendemos muito. Acho que nunca aprendi tanto na minha vida como no ano em que a Mariana nasceu. Penso que até aprendi a compreender melhor as pessoas, a gostar mais delas, sei lá. E aprendi a não me assustar, a não entrar em pânico, a não perder a cabeça. Por isso, enquanto não se encontra o Dr. Cunha, deixem estar a Rosa sossegada, dêem-lhe um bocadinho de aspirina e pronto, daqui a bocado já ela está fina, vocês vão ver.
Enquanto toda a gente sofria com o primeiro dente da minha irmã, peguei na caderneta, na Zica, no casaco, e fui para casa da Rita, que nesse domingo também não tinha saído.
Já ia na rua quando me lembrei: «e a matemática?». Não era que me apetecesse muito estudar ou fazer fichas com um dia tão bonito. Mas a verdade é que também não me apetecia fazê-las quando os dias estavam feios. O que, infelizmente, queria dizer que nunca me apetecia fazê-las. E eu sabia que não podia ser assim.
Voltei a casa e num instante agarrei no caderno das fichas e lá fui para casa da Rita. A mãe dela ficou muito satisfeita quando me viu entrar de caderno de matemática debaixo do braço. Tão satisfeita («assim é que é, Mariana, aproveitar o tempo todo para estudar!») que nem sequer reparou nas «Maravilhas da Natureza» que vinham debaixo do outro braço.
Entrei logo para o quarto da Rita, que ficou muito contente por me ver. A Rita tem a mania que, desde que nasceu a minha irmã, eu não estou tanto com ela como dantes estava. Mania da Rita, mais nada. Só que às vezes a minha mãe pede que a ajude e eu não posso dizer que não. E lá tenho de trocar algumas tardes com a Rita por algumas tardes de pôr e tirar fraldas e de biberões preparados a horas certas, senão a Rosa abre as goelas e não há quem a sossegue.
Mas a Rita não tem irmãos, não entende nada disto. Amua e repete constantemente:
— És tu que não queres vir! Eu bem sei que és tu!
Hoje quando entrei no quarto, riu-se e veio logo pegar na Zica. Sentámo-nos no chão e lá fomos misturando fichas e flores, ângulos agudos e anfíbios, conjuntos e rochas, fracções e répteis, números complexos e aves estranhas, três-vezes-nove-vinte-e-sete e mamíferos de nomes nunca vistos nem ouvidos.
Quando voltei para casa tudo estava muito mais sossegado, incluindo a Rosa, que dormia na alcofa, tão longe ainda destes problemas da matemática. Gostava de lhe poder soprar ao ouvido:
— Aproveita agora que ninguém te maça, que podes dormir o tempo que te apetecer, que não tens de te levantar cedo para apanhares a carrinha, que não sabes o que são conjuntos, que podes berrar e gritar quando estiveres maldisposta sem que te venham dizer «que vergonha!», que podes fazer todos os disparates possíveis porque há sempre a justificação dos dentes a quererem romper... Aproveita agora a sorte que tens em não seres ainda crescida...
Às vezes gostava realmente de lhe dizer isto tudo. Mas depois penso:
«Dormir o dia todo também não deve ser lá muito divertido. Estar sempre deitada na alcofa de manhã à noite, ou então ter de andar de colo em colo sempre que aparecem tias e primas e visitas e parentes... Não poder brincar com os amigos, nem andar de patins, nem saltar à corda, nem ler livros, nem comer gelados ou batatas fritas... Não, afinal acho que a Rosa não tem uma vida muito divertida, não... E vai ser bom ela crescer depressa, como disse a mãe.»
Crescer depressa e arranjar ainda mais depressa os dentes todos, que é para a gente não andar nestas aflições e poder sair aos domingos.