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«Se A intersecção com B for igual a 3 e 4; se A união com B for igual a 1, 2, 3, 4, 5 e 6... Se C for igual a 8, 9, 10 e 11 e a relação inversa de C para A é Z-7 = X...» Rita, Rita, como eu gostava de ter assim um nome destes, nomes que soam tão bem, cheios de letras que parecem música...
Fecha os olhos e diz comigo: iguana, salamandra, madrépora, lisambra, atália, zimbro, centáurea, hibisco, albatroz, acará... Se o ângulo A tiver 50 graus e o ângulo B tiver 210 então as flores vão encher esta sala, do chão ao tecto, flores que podem ser lírios, tulipas, helicónias, acácias, rododendros, e todos os insectos do mundo virão poisar no ângulo A, quer tenha ou não 50 graus, e as abelhas hão-de procurar o pólen por entre a intersecção de A com B, e havemos de ver as formigas nos seus carreiros perfeitos procurando as companheiras na relação inversa de C...
Rita, Rita, traz também o teu cacto para a nossa festa e ele será baptizado de guiabento, grandifloro ou flor-de-baile, e dos meus bolsos há-de saltar o Zarolho, que todos irão conhecer pelo título de «combatente de Sião», que é o nome dos peixes mais belos e valentes que existem em todas as águas dos oceanos, e ninguém se há-de rir por ele ter só um olho, e em vez de lhe atirarem à cara com «para que quero eu um peixe zarolho cá em casa», como disse a minha mãe quando o meu pai o comprou, irão antes desfazer-se em mesuras e procurar a melhor água e a mais verde vegetação, que tudo será pouco para o grande combatente de Sião.
Rita, Rita, olha como de repente se erguem os números pares e ímpares, e fogem dos nossos cadernos, e dançam de roda com as circunferências, e trepam pelos losangos, e andam de baloiço nas vírgulas, e adormecem cansados e felizes nos lagos azuis dos ângulos rasos. E eu apanho um ramo de números pares e tu apanhas um ramo de números ímpares e eles têm a resistência dos minerais, e então abrimos a nossa caderneta e vamos colá-los, e ao 2 chamamos, por exemplo, ametista, e o 4 poderá ser galena, e tu darás ao 1 o nome de opala, e ao 3 chamarás azurite, e havemos de rir como ria a avó Lídia.
E no quadro o Pedro manda fazer uma máquina com duas saídas, e por uma saída voam os terços dos números 4, 6, 8, 9, 12, 15, 18, e de repente da máquina salta o rouxinol da árvore da minha rua, é ele, não pode ser outro, e com ele os rouxinóis de árvores espalhadas por outras ruas, e cada um procura amigos perdidos nos jardins desconhecidos de todos os países, e vão encontrá-los estampados nos nossos cromos, e são os rouxinóis que trocam com eles de lugar para que eles possam respirar um pouco de ar fresco, e a ave-do-paraíso poisa na minha cabeça e ri-se da máquina de duas saídas, e tu agarras nas mãos o bico-de-tesoura e escreves no quadro:
«No mês de Novembro passei 300 horas a dormir, 105 horas a trabalhar, 60 horas a comer, e 255 horas em coisas que não me lembro.»
E toda a aula desata às gargalhadas, e o Pedro grita «viva a matemática!», e todas nós gritamos «vivam as 255 horas!», e o barulho é tanto que a avó Elisa espreita à porta e abana a cabeça dizendo «se fosse no meu tempo...», e a tia Magda entra com um grande jarro de água e vai salpicando todas as flores que enchem a sala, do tecto ao chão, lírios, tulipas, helicónias, acácias, rododendros, «não as deixem morrer à sede!», diz ela, enquanto pergunta ao Pedro:
— Por que razão não estão aqui estrelícias nem antúrios? É perfeitamente inadmissível! Vou queixar-me ao Ministério da Educação!
E depois de ela sair da aula a Joana pôs-se de pé na cadeira e começou a recitar:
— Eu sou um número inteiro com quatro algarismos. Se me aumentassem uma unidade eu continuaria com quatro algarismos, mas se me diminuíssem duas unidades ficaria com três algarismos. Quem sou eu?
E todos nós fizemos uma roda em volta dela, gritando «és a Joana! És a Joana!», e o Pedro batia com a mão na mesa e escrevia cartas para os nossos pais dizendo «têm de se aplicar mais na matemática».
E o Luís Miguel, para não ficar atrás das raparigas, recitou por sua vez:
— Gastei cem escudos a comprar um monte de livros; se paguei com uma nota de quinhentos e me deram o troco em notas de vinte, quantas notas me deram?
E então eu gritei do fundo da sala:
— Com cem escudos não podes ter comprado assim tantos livros, com certeza!...
E a minha mãe fez-me sinal do lado de fora da janela:
— Não sei onde iremos parar, Mariana!
E a Margarida bateu ao de leve na porta da aula para avisar que eram horas do almoço e concordou com as palavras da minha mãe, acrescentando, como sempre:
— E a gente só sabe dar o valor quando nos toca a nós...
Rita, Rita, vamos correr para o pátio, apanhar borboletas que nos cromos se chamam lisambras, catagramas e vanessas, mas têm à mesma as cores do arco-íris dentro de si, deixar na sala os algarismos e os ângulos, e guardar em nós o sol desta manhã de Maio.
E corro atrás de uma castanha e dourada até tropeçar numa pedra do caminho e bater com a cabeça no chão. E de súbito a pedra transforma-se num gigantesco número de três algarismos que a pouco e pouco se vão definindo, até ficar 255, e o número-pedra grita para mim:
— Que fizeste de nós no mês de Novembro?
E eu não sei que responder, digo apenas:
— Novembro já foi há tanto tempo...
Mas o número-pedra insiste:
— Não importa! Quero saber que fizeste de nós, em que foi que gastaste o nosso tempo? As nossas horas?
E o 255 agarra-me pelos ombros, e sacode o meu corpo enquanto vou gritando:
— Não tenho medo de ninguém! Não tenho medo de ninguém!
E de repente tudo se mistura dentro dos meus olhos, Rita, Rita, onde estás?
Quando a minha mãe me acordou, toda eu transpirava. Mas era decerto por causa do calor que fazia.
Porque eu não tenho medo de ninguém, nem de nada.
Muito menos de um sonho.