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«As pessoas não entendiam muito bem e depois disso chamaram-lhe maluca e outras coisas assim. Nem eu entendi também, miúda que então era, ainda um pouco a pensar pela cabeça e pelas palavras dos outros. Devo ter-lhe chamado maluca muitas vezes. E todas as outras coisas que lhe chamavam. E afinal vejo agora como tudo era tão simples de entender. E como todos fomos tão cruéis.
«Mas a verdade é que as pessoas não compreendiam e chegaram a pensar que a tia Emília tinha perdido o juízo com o desgosto do marido. Talvez tivesse perdido de facto. Mas nunca me lembro de a ouvir falar noutro nome que não fosse o da Malhada.
«No entanto agora penso se não há animais que nos fazem mais falta do que muitas pessoas. Do que tantas pessoas. Não sei se te devia estar a contar isto a ti, que és tão pequena. Dizem que há coisas de que só se deve falar aos adultos porque só eles são capazes de entender. Não estou muito certa disso. Às vezes penso que há coisas que só mesmo as crianças são capazes de entender e aceitar. Penso, por exemplo, que tu eras capaz de ter entendido a tia Emília. E talvez não tivesses sido tão cruel como nós fomos.
«A Malhada... Se tu a visses...
«Não tinha estrela na testa como aquelas de que falam os livros de histórias. Mas nunca vi olhos tão doces como aqueles. E nós estávamos tão habituados a ela como a tia Emília. Fazia parte da casa, entendes? Era assim uma espécie de outro braço da tia Emília, e sem ela a vida era impossível. Mulher sem filhos, com o marido entrevado sempre ao canto da lareira, era da Malhada que aquela mulher vivia. Da Malhada que lhe dava o leite, a manteiga, o queijo, o requeijão, um vitelo por ano.
«Às vezes íamos dar com a tia Emília sentada junto da Malhada, fazendo-lhe festas e chamando-lhe todos os nomes de ternura que um dia se inventaram para as mães chamarem aos filhos. Já nessa altura se dizia que a tia Emília não tinha o juízo todo. Já nessa altura os rapazes corriam atrás dela gritando "velha tonta, velha tonta". Mas ela nem os ouvia: só tinha ouvidos e olhos e coração para a Malhada.
«Nunca cheguei a saber o nome do marido. Para todos ele era "o da tia Emília", e duvido mesmo que alguém soubesse ao certo como ele se chamava, ou que idade tinha. Se é que ele tinha nome ou idade.
«Sentado ao canto da lareira no Inverno, ou à porta de casa no Verão, nunca da sua boca saíra som algum, uma ligeira baba sempre a pender-lhe pelo queixo.
«Contava a minha mãe que ele tinha ficado assim há muitos anos, depois de um tractor lhe ter esmagado as pernas. Sem médicos nem dinheiro para os ir buscar à cidade, nada lhe pôde valer, e para ali foi ficando, ao canto da lareira ou à entrada da porta.
«Porque médicos era coisa que não havia na aldeia. E se precisássemos de um remédio tínhamos de ir buscá-lo à farmácia, a 40 quilómetros de lá. E isto se houvesse dinheiro para o pagar, é claro. Por isso morreu tanta criança que se podia ter salvo. Tu não podes imaginar bem como era, mas eu digo-te que eram tempos muito duros.
«Talvez que o marido da tia Emília se tivesse podido salvar se estivesse na cidade e tivesse dinheiro para o médico e para os tratamentos. Assim, para ali ficou, mais morto que vivo, olhando as pessoas sem dizer palavra, a baba sempre a cair-lhe pelo queixo. E quando era tempo de trovoada metia os braços à roda da cabeça e chorava, chorava, nunca a gente sabia porquê.
«Foi no dia em que ele morreu que a Malhada adoeceu. As pessoas da aldeia enchiam a casa da tia Emília e todos procuravam consolá-la da morte do marido. Ela tinha os olhos muito abertos e parecia não entender uma palavra do que lhe diziam, não entender sequer o que se tinha passado. De vez em quando desaparecia e íamos dar com ela no estábulo, a fazer festas à Malhada, que gemia e não conseguia pôr-se de pé, e eram ainda mais doces os nomes que lhe chamava. Mas nós não percebíamos algumas coisas. Por isso rimos de a ver assim. Ela olhou para nós e disse apenas:
«— Se ela morre o que vai ser de mim?
«A gente ainda riu mais, e saiu cá para fora a gritar:
«— A tia Emília está maluca! A tia Emília está maluca!
«E as mulheres de preto vieram ter connosco e deram-nos razão. Disseram que tinha sido o desgosto que a tinha transtornado daquela maneira. Que só assim se entendia. Quiseram levá-la para dentro de casa, mas ela agarrou-se com força ao estábulo e só repetia:
«— Se ela morre o que vai ser de mim? Se ela morre o que vai ser de mim?
«E de novo as palavras de ternura guardadas durante anos para os filhos que nunca chegara a ter.
«Conseguiram levá-la ao enterro do marido amparada por duas vizinhas. Mas logo à descida do cemitério para casa a sua preocupação voltava:
«— E se ela morre?
«Não morreu.
«O ferrador lá da aldeia fez-lhe um tratamento e depois de muitos dias a Malhada arribou. Mas a tia Emília parecia ter envelhecido dez anos naqueles dias.
«As pessoas diziam então:
«— A morte do marido é que a pôs neste estado. Foi um grande choque para ela.
«Porque as pessoas às vezes esquecem depressa. Mas nós, que éramos miúdos nessa altura, sabíamos que não tinha sido assim que as coisas se tinham passado. Tínhamos rido, tínhamos-lhe chamado doida, como os outros, mas no fundo sabíamos que não havia loucura nenhuma na cabeça da tia Emília. E que sem o leite, a manteiga, o queijo, o requeijão e os vitelos que vendia, difíceis seriam os dias que a tia Emília ainda tinha para viver. Quem iria cuidar dela se a Malhada morresse?
«É por isso que eu digo que a gente pode amar tanto as pessoas como os animais. Dever-lhes a vida, quantas vezes. E quantas vezes também somos injustos ou esquecidos. As mais das vezes por falta de tempo, eu sei.
«Há que trabalhar, fazer pela vida, e fica pouco tempo para pensarmos nisso. E é pena. Porque depois, quando temos tempo, já eles morreram, ou se perderam por esse mundo, e já não lhes podemos mostrar como os amámos, como a nossa vida teria sido diferente se os não tivéssemos encontrado. Como teríamos ficado mais pobres e vazios.
«Para a tia Emília a Malhada era uma pessoa. Tenho a certeza. E embora nós não conseguíssemos ouvir nada, eu ia jurar que as duas conversavam longamente todos os dias.»
Isto contava muitas vezes a avó Lídia.
Acho que sou capaz de me lembrar de todas as palavras para um dia o contar à Rosa. Só que não lhe vou dizer que havia quem chamasse maluca à tia Emília.
E também acho que não faz mal se eu disser que a Malhada tinha uma linda estrela na testa. Tal como acontece nos livros de histórias.