22
Acordei de repente com a luz do relâmpago a entrar pelos meus olhos dentro e o barulho da trovoada logo a seguir.
A Rosa chorava e tossia.
Levantei-me e corri para o quarto dos meus pais. Eu não quero com isto dizer que tenho medo das trovoadas — que eu não tenho medo de nada e ninguém nos vai matar, como dizia a avó Lídia. Mas nestas alturas dá-me sempre vontade de ter gente ao pé de mim, de não ficar sozinha.
Os meus pais estavam acordados e tentavam acalmar a minha irmã.
— Nunca a vi assim — dizia a minha mãe, com ela ao colo. — Devem ser dores de ouvidos. E esta tosse que não pára, vai dar cabo dela!
Naquele momento percebi que as dores de ouvidos e a tosse da Rosa eram a maior tempestade daquela casa, e que os meus pais quase nem davam pelo que se estava a passar para lá do vidro das janelas. Ainda tentei conversar:
— Esta trovoada...
Mas logo me interromperam:
— Vê lá se tens medo das trovoadas! Vai mas é para a cama para não te constipares, e além disso amanhã é dia de escola e depois é um sarilho para acordares.
Corri a meter-me na cama, assim com uma espécie de nó na garganta, que eu nem sabia se me apetecia chorar se me apetecia beber água. Tal como naquela noite em que a Rosa nasceu e eu fui dormir para casa da avó Elisa, onde descobri que tudo me faltava: o colchão rijo, a voz do pai, as mãos da mãe a entalar a roupa.
Só que agora era tudo diferente. Agora tudo estava ali mas era como se não estivesse. A minha mãe estava no quarto ao lado mas era como se estivesse perdida nos confins do mundo. O colchão era o meu, mas era como se de repente eu o sentisse estranho, a magoar-me o corpo, a não me deixar dormir.
Comecei a pensar que a pobre princesa do grão de ervilha se devia ter sentido assim como eu, e isso fez-me ficar melhor, sempre era uma companhia para os meus males.
Fui buscar a Zica para a minha cama, coisa que a mãe não quer que eu faça porque — diz ela — «a Zica larga sumaúma e cabelos por toda a parte». Se largar, larga na minha cama, ninguém tem nada com isso, se alguém ficar com comichões sou eu. E só não vou buscar o Zarolho porque o aquário é pesado e podia entornar a água toda. Mas só a Zica e o Zarolho é que, neste momento, não estão preocupados com a minha irmã. Só eles parecem lembrar-se de que eu também existo. E também tenho tosse. E às vezes também me doem os ouvidos. E preciso de falar com pessoas, sobretudo em noites de relâmpagos e trovoadas.
— Quando tiver uma filha nunca me hei-de esquecer destas coisas e hei-de ser a melhor mãe do mundo — isto foi o que eu disse à Rita.
— Hás-de, hás-de... — riu-se ela. — Se calhar tu achas que a tua mãe e a minha também não pensavam assim como tu quando tinham a nossa idade? O pior é que depois cresceram e esqueceram-se. E se calhar nós também vamos fazer a mesma coisa!...
— Não vou nada! Faz tu, se quiseres. Eu cá não faço!
Fiquei muito ofendida com a Rita e a pensar na pouca sorte que vão ter os pobres dos filhos dela quando nascerem... Cá por mim, acho que nunca vou mandar os meus filhos cedo para a cama, hei-de encher-lhes a barriga de chocolates, gelados e batatas fritas, e depois se adoecerem a culpa é deles.
É claro que eu sei que isto são disparates, e que se não fosse a trovoada e a tosse da Rosa eu não pensava desta maneira. E também sei que a minha mãe e o meu pai não eram assim antes do nascimento da minha irmã.
Mas como posso explicar-lhes isto se eles nunca têm tempo para mim?
E fazem mal, porque bem precisavam de ouvir umas certas verdades que eu tenho engasgadas para lhes dizer.
Que isto é assim mesmo: se não formos nós a educar os nossos pais, quem é que os educa? Se não formos nós a ensinar-lhes certas coisas, quem é que os ensina?
Meu Deus, como os meus pais estão necessitados de lições minhas!
Meus Deus, como os meus pais precisavam de ser meus filhos!