23
Logo que a Margarida avisou, já dentro da carrinha, que eu ficava em casa da avó Elisa, percebi que havia qualquer coisa de estranho em tudo aquilo, que alguma coisa não estava bem.
Mas ninguém me sabia explicar fosse o que fosse.
— Foi o Pedro que me deu o recado — dizia a Margarida.
E jurava a pés juntos que não sabia mais do que isso: eu ia ficar em casa da avó Elisa e não na minha, como sempre acontece.
Eu gosto da avó Elisa, mas não sei porquê a casa dela está sempre ligada a coisas desagradáveis. A casa não tem culpa, eu sei. Mas é sempre para lá que me mandam quando alguém morre, como aconteceu no ano passado com a avó Lídia. E foi para lá que me mandaram quando a minha mãe foi operada. E quando a Rosa nasceu.
A casa da avó Elisa é sempre um lugar para onde entro triste. Se a tristeza tivesse cheiro, acho que tinha o cheiro das paredes da casa da avó Elisa.
Cheiro que não tem nada a ver com humidade ou bafio, como as paredes da casa da tia Magda. Aí é diferente. Aí penso que tudo (e não apenas as paredes) cheira a um tempo vazio, mal aproveitado, tempo guardado para coisas e pessoas que nunca hão-de chegar, e por quem a tia Magda vai esperar sempre e sempre mais.
Penso em tudo isto enquanto a carrinha vai andando, atravessando ruas, parando nos sinais vermelhos e nos cruzamentos. Volto a insistir com a Margarida:
— Mas o Pedro não te disse mesmo mais nada?
— Disse que não havia ninguém em sua casa e que por isso a gente tinha de a deixar à sua avó, que está à sua espera. Não disse mais nada.
Para me sossegar fez-me uma festa na cabeça e acrescentou:
— Vá lá, não faça dramas que não deve ter acontecido nada de especial.
Ainda esperei que dissesse: «e a gente só dá valor quando nos toca a nós». Mas não. Conversava já com o Luís Miguel, «despache-se a pegar na pasta que estamos quase a chegar à sua porta». Em dias normais eu saio logo a seguir ao Luís Miguel, mas hoje a carrinha tem de dar uma volta maior para me deixar à porta da avó. Que deve estar cá em baixo, na rua, à minha espera. Como fazia a avó Lídia.
Mas agora eu já sou crescida, já não preciso que ninguém venha cá abaixo buscar-me. Como costuma dizer o meu pai, há muitas crianças mais novas do que eu que têm de caminhar quatro e cinco quilómetros sozinhas para chegarem à escola. Mesmo eu, para o ano, já vou a pé sozinha para a escola do ciclo, que nem fica longe da minha casa. Mas sempre tenho a companhia da Rita, que também para lá vai.
Gosto sempre de ter companhia quando ando na rua, para poder falar, rir, contar coisas, eu sei lá. A minha mãe um dia disse-me que eu falava pelos cotovelos. A primeira vez que a ouvi dizer isso desatei a rir, porque de repente comecei a ver como seriam os meus cotovelos com boca e dentes, quem sabe mesmo se com um dente de ouro como a tia Magda... Bocas a espirrar quando estivessem constipadas, e a tossir como a Rosa... Bocas mesmo a nascer nos cotovelos... Havia de ser engraçado...
Mas a verdade é que, com cotovelos e bocas ou sem elas, eu gosto muito de falar com as pessoas. Às vezes se estou muito tempo calada, parece-me que alguma coisa estala dentro de mim.
Ouvi um dia a minha prima Isaura contar à minha mãe que, de uma vez que lhe levaram o pai para a prisão e ela ficou sozinha em casa, sem ninguém com quem conversar durante dias e dias, noites e noites, ia sentar-se diante do espelho e ali ficava horas seguidas a falar com ela mesma, a fazer companhia a si própria.
Mas agora já não prendem as pessoas que lutam por bem, como neste tempo. Por isso não é essa a razão por que vou ficar a casa da minha avó Elisa. Também me parece que não está ninguém a morrer. E a minha mãe ainda não teve tempo de ter outro filho.
— Por que é que vamos hoje tão devagar? — pergunto.
Impressão minha, dizem.
Levamos a velocidade do costume, dizem.
Já saíram quase todos. A Margarida estende-me a pasta.
— Tome, já estou a ver a sua avó.
À esquina da rua, em frente da porta, a avó Elisa sorria para mim. E eu vi logo que não era um sorriso habitual mas sim uma maneira de não me assustar — aquela maneira que têm quase todos os crescidos, sem nunca entenderem que assim nos assustam ainda muito mais. Porque assim a gente fica a perceber que eles também têm medo como nós, e que talvez não sejam tão diferentes, nem tenham a certeza de tantas coisas como querem dar a entender.
Saltei da carrinha e corri para a avó.
— Que foi que aconteceu? Por que é que vim hoje para tua casa? Morreu alguém, avó? Quem foi que morreu? Diz, avó! Foi a mãe?
— Não digas disparates, Mariana! Mas que tolinha me saiu a minha neta! Vamos lá entrar e não digas mais tontices.
Fiquei mais calma, consegui suportar o elevador a chegar até ao quinto andar, devagar, devagar, e não fiz mais perguntas. Ninguém tinha morrido — isso, pelo menos, eu já sabia.