12
Quando cheguei em casa naquela noite de domingo, Rube e eu cumprimos nossa tarefa habitual de levar o Miffy para passear. O bicho estava ainda pior que de praxe. A tosse soava mais grave, como se viesse direto dos pulmões.
Ao voltarmos, perguntei ao Keith se iria levá-lo ao veterinário.
— Acho que não são bolas de pelo — observei.
A resposta de Keith foi bem curta e simples:
— É, acho que é melhor. Ele está com uma cara horrorosa.
— Pior.
— É, ele já ficou assim antes — explicou, mais por esperança que por qualquer outra coisa. — Nunca foi nada muito grave.
— Bem, nos avise sobre o que acontecer, está bem?
— Tá. Tchau, parceiro.
Pensei no cachorro por um instante. Miffy. Acho que, por mais que Rube e eu reclamássemos dele, sabíamos que sentiríamos certa saudade se alguma coisa lhe acontecesse. É engraçado como há coisas neste mundo que só nos enchem o saco, mas de que a gente sabe que vai sentir falta quando se forem. Miffy, o superlulu-da-pomerânia, era uma dessas coisas.
Mais tarde, sentado na sala de estar com o Rube, perdi muitas oportunidades de contar sobre a Octavia e mim.
Agora, dizia a mim mesmo. Agora!
Mas nenhuma palavra saía, e apenas ficamos por lá.
Na noite seguinte, fui fazer uma visita ao Steve. Fazia algum tempo que eu não o via e, de certo modo, estava com saudade. É difícil explicar exatamente por quê, mas eu tinha passado a gostar muito da companhia do Steve, apesar de sempre falarmos muito pouco. É claro que conversávamos mais do que antes, mas ainda não era grande coisa.
Quando cheguei, apenas a Sal estava em casa.
— Mas ele deve chegar a qualquer momento — disse ela, não parecendo muito entusiasmada. — Quer alguma coisa para comer? Ou para beber?
— Não, estou bem assim.
Ela não me fez sentir-me muito bem-vindo naquela noite, como se simplesmente não estivesse disposta a me tolerar dessa vez. Sua expressão parecia atirar palavras em mim. Palavras do tipo:
Perdedor.
Sacaninha de merda.
Tenho certeza de que, em algum momento, tempos atrás, antes de Steve e eu nos entendermos melhor, ele deve ter falado com a Sal sobre a dupla de panacas imprestáveis que eram seus irmãos. Sempre havia menosprezado o Rube e a mim, quando morávamos juntos. A gente fazia muitas coisas idiotas, admito: roubar placas de trânsito, entrar em brigas, apostar em corridas de cachorros... Não era muito a praia do Steve.
Quando chegou, uns dez minutos depois, ele sorriu de verdade e disse:
— Ei, faz tempo que não vejo você!
Por um momento, retribuí o sorriso e achei que ele estava falando comigo, e então percebi que era à Sal que se referia. Ela andara trabalhando muito fora do estado nos últimos tempos. Steve se aproximou e lhe deu um beijo. Depois, notou o irmão sentado no sofá.
— Oi, Cam.
— Oi, Steve.
Percebi que eles queriam ficar sozinhos, por isso esperei alguns segundos e me levantei. A luz da cozinha se derramava sobre eles quando parei na penumbra da sala de estar.
— Ei, eu volto outra hora — falei, superdepressa.
Tratei de me levantar rápido e me mandar de lá. Sal estava me lançando o maior olhar de cai fora que eu já tinha visto.
— Não.
Eu praticamente havia cruzado a porta quando a palavra me acertou nas costas como um chute. Dei meia-volta e o Steve estava parado atrás de mim. Tinha o rosto sério ao dizer:
— Você não tem que ir, Cam.
Tudo o que fiz foi olhar para meu irmão e dizer “Não se preocupe”, depois virei-me e saí sem me preocupar com o assunto. Eu tinha outros lugares para ir agora, de qualquer jeito.
Ainda era bem cedo, por isso decidi correr até a estação e pegar o metrô para Hurstville. Na janela do trem, vi meu reflexo — o cabelo estava crescendo de novo e se eriçando, rebelde e despenteado. Era preto. Preto feito piche na janela e, pela primeira vez, meio que gostei dele. Balançando com o trem, olhei para dentro de mim.
A rua de Octavia estava envolta em trevas. As luzes das casas pareciam lanternas. Se eu fechasse bem os olhos e então os abrisse de novo, era como se as casas tropeçassem no escuro, tentando encontrar o caminho. Fiquei esperando que sumissem a qualquer momento. Vez por outra, sombras humanas as cruzavam enquanto eu esperava em frente ao portão.
Por algum tempo, imaginei-me indo até a porta da entrada e batendo, mas me lembrava muito bem das palavras do Rube. Ele nunca estivera lá dentro. Nunca chegara sequer a ver a porta da frente de perto. A última coisa que eu queria era passar dos limites. Continuava doido para que ela saísse; quanto a isso não tenha dúvida. Mas sabia que, se tivesse que ir embora sem nem mesmo ter um vislumbre dela, eu iria. Se fizera isso por uma garota que não estava nem aí para mim, poderia fazê-lo por Octavia.
Naquele segundo roubado, pensei na garota de Glebe. Ela entrou na minha mente como um ladrão e tornou a sumir sem levar nada. Foi como se a humilhação do passado tivesse sido instantaneamente retirada das minhas costas e largada no chão. Pensei por um instante em como pudera ficar diante da casa dela tantas vezes. Cheguei até a rir. De mim. Ela já se apagara por completo, minutos depois, quando Octavia afastou a cortina da cozinha e saiu ao meu encontro.
A primeira coisa que notei, antes que qualquer palavra atingisse o ar, foi a concha. Estava amarrada em um cordão, pendurada no pescoço dela.
— Ficou bonita — comentei, apontando a concha com a cabeça e estendendo o braço direito para segurá-la.
— Ficou mesmo — concordou Octavia.
Fomos ao mesmo parque da primeira noite, mas, dessa vez, não sentamos no banco lascado. Dessa vez, andamos pela grama orvalhada e acabamos parando junto a uma árvore antiga.
— Tome — disse eu, e entreguei a Octavia as palavras que tinha escrito na noite anterior, na cama. — Para você.
Ela leu as palavras, beijou o papel e passou um bom tempo abraçada a mim. Durante aquele tempo, surgiram inúmeras perguntas que tive vontade de fazer. Eu queria saber que histórias havia na casa dela, o que ela fizera com o Rube, por que ele nunca havia entrado, e se ela, como eu, tinha irmãos e irmãs. Mas não perguntei nada. Havia uma parede claramente erguida ali e, mesmo sabendo que teria que enfrentá-la um dia, não me atrevi a fazê-lo tão cedo.
Eu lhe disse que adorava o som uivante da sua gaita. Esse pareceu ser o limite da minha coragem naquela noite, e até essas palavras faladas tiveram que lutar para sair da minha boca. Tudo bem que as palavras construam pontes, mas, às vezes, acho que a questão é saber quando falar. Saber qual é a hora certa.
Ao voltarmos para o portão, eu lhe disse uma coisa quase por engano. Minha voz simplesmente pareceu falar sozinha.
— Talvez você possa me dizer mais coisas a seu respeito em breve.
Não houve hesitação na minha voz. Nenhum sentimento de dúvida.
Ela olhou para sua casa, para a luz opaca que se espalhava pela janela.
— Está bem. — Seu rosto era bondoso. Franco. — Acho que não posso fazer tudo do meu jeito, não é? — perguntou. — Ninguém pode afogar-se em uma pessoa se ela não deixar. — Tinha razão. — Vejo você no domingo?
— É claro.
Beijei sua mão logo depois e fui embora.
Em casa, ao voltar, levei um susto ao encontrar Steve na nossa varanda, esperando por mim.
— Eu estava pensando em quanto tempo teria que ficar sentado aqui — disparou quando apareci. — Estou aqui há uma hora.
Cheguei mais perto.
— E você veio por quê?
— Vamos — retrucou ele, levantando-se. — Vamos voltar lá para casa.
— Só vou entrar e...
— Já falei com eles.
O carro do Steve estava estacionado mais adiante na rua, e pouquíssimas palavras foram trocadas entre nós depois de entrarmos. Liguei o rádio, mas não me lembro da música.
— E aí, que história é esta? — perguntei.
Olhei para ele, mas Steve tinha os olhos fixos na rua. Passei algum tempo sem saber se ele havia sequer escutado minha pergunta. Seus olhos me examinaram por um ou dois segundos, mas ele não disse nada. Ainda estava esperando. Ao saltarmos, falou para mim:
— Quero que você conheça uma pessoa. — Bateu a porta do carro. — Ou melhor, na verdade, quero que ela conheça você.
Subimos a escada e entramos no apartamento. Não havia ninguém.
— Ela ainda está no banho — comentou meu irmão.
Fez café e pôs uma xícara diante de mim. O líquido ainda girava, levando consigo meu reflexo. Puxando-me para baixo.
Por um instante, achei que estávamos em vias de cumprir nossa rotina habitual de perguntas e respostas sobre todos em casa, mas percebi que ele decidiu não segui-la. Já passara antes lá em casa e tinha descoberto como eles estavam por si. Não era típico do Steve fabricar conversas.
Fazia algum tempo que eu não o via jogar, por isso perguntei como ia o futebol. Ele estava no meio da resposta quando Sal saiu do banheiro, ainda enxugando o cabelo.
— Oi — disse ela para mim.
Assenti e abri um meio sorriso.
Foi então que Steve se levantou e olhou para mim, depois para ela. Naquele exato momento eu soube que, em alguma ocasião, como eu havia suspeitado, ele lhe falara do Rube e de mim. Eu havia imaginado a cena em um banco do parque em Hurstville, por alguma razão, e pudera ouvir a voz marcante e serena do Steve praticamente renegando os irmãos. Ele estava reescrevendo a história, ou, pelo menos, tentando corrigi-la.
— Levante-se — disse ele, e obedeci. — Sal — A moça me olhou. Olhei para ela enquanto Steve continuava. — Este é o meu irmão Cameron.
Trocamos um aperto de mão.
Minha mão áspera de garoto.
Sua mão macia e limpa, que cheirava a sabonete perfumado. Sabonete que imaginei ter sido obtido em quartos de hotel que eu nunca visitaria.
Sal me reconheceu com o olhar e passei a ser Cameron, e não apenas o irmão perdedor do Steve.
No trajeto de volta para casa, algum tempo depois, Steve e eu conversamos um pouco, mas apenas sobre trivialidades. No meio da conversa, eu o interrompi. E disse, com palavras cortantes como facas:
— Quando você falou com a Sal pela primeira vez sobre mim e Rube, você lhe disse que éramos dois perdedores. Disse que tinha vergonha de nós, não foi?
Minha voz ainda estava calma, nem um pouco acusadora, embora eu estivesse fazendo um esforço danado.
— Não — negou ele, quando o carro parou em frente à nossa casa.
— Não?
Percebi a vergonha em seus olhos e, pela primeira vez na vida, vi que era vergonha que ele sentia de si mesmo.
— Não — repetiu Steve, e naquele momento me olhou com algo semelhante a raiva, quase como se não conseguisse engolir aquilo. — Não de você e do Rube — explicou, e seu rosto pareceu magoado. — Apenas de você.
Caramba.
Caramba, pensei, e fiquei boquiaberto. Foi como se Steve houvesse enfiado a mão dentro de mim e arrancado minha pulsação. Meu coração estava em suas mãos e o olhava fixamente, como se também pudesse vê-lo.
Batendo.
Jogando-se no chão e levantando de novo.
Não teci comentários sobre a verdade que Steve acabara de contar.
Apenas tirei o cinto de segurança, peguei meu coração e desci do carro o mais depressa que pude.
Steve me seguiu, mas era tarde demais. Ouvi os passos atrás de mim quando entrei na varanda. As palavras caíram entre seus pés.
— Cam! — chamou ele. — Cameron! — Eu estava quase do lado de dentro quando ouvi sua voz gritar: — Desculpe. Eu estava... — Elevou ainda mais a voz. — Cam, eu estava errado!
Cruzei a porta e a fechei, depois me virei e olhei para fora.
A figura de Steve caía como uma sombra na janela da frente. Estava calada e imóvel, pregada na luz.
— Eu estava errado.
Ele repetiu, embora com a voz mais fraca dessa vez.
Passou-se um trêmulo minuto.
Cedi.
Andando devagar até a porta de entrada, abri-a e vi meu irmão do outro lado da porta de tela.
Esperei, depois disse:
— Não se preocupe com isso. Não tem importância.
Eu ainda estava magoado, mas, como falei, não tinha importância. Eu já havia sido magoado antes e seria magoado outras vezes. Steve devia desejar nunca ter tentado me fazer o favor de mostrar à Sal que eu não era o perdedor que ela supunha. Tudo que conseguira fazer fora provar que não apenas houvera uma época em que ele achava que eu era uma causa perdida, como também que eu era o único.
Logo depois, porém, senti a facada.
Um sentimento me atravessou e me libertou. Todos os meus pensamentos se desprenderam da corrente, até surgir uma frase solitária que não quis me largar.
As palavras e Octavia.
Foi essa a frase.
Ela se agitou dentro de mim.
Salvou-me, e, quase em um sussurro, eu disse ao Steve:
— Não se preocupe, meu irmão. Não preciso que você diga à Sal que não sou um fracasso. — Ainda estávamos separados pela porta de tela. — Também não preciso que você diga isso a mim. Eu sei o que sou. Sei o que vejo. Talvez, um dia, eu lhe fale um pouco mais de mim, mas, por enquanto, acho que teremos que esperar para ver o que acontece. Não estou nem perto do que serei, e... — Senti uma coisa em mim. Uma coisa que sempre havia sentido. Fiz uma pausa e captei o olhar de Steve. Saltei para dentro dele através da porta e o prendi. — Você já ouviu um cachorro chorar, Steve? Sabe como é, uivar tão alto que quase chega a ser insuportável? — Ele fez que sim. — Acho que uivam assim porque estão com tanta fome que chega a doer, e é isso que sinto em mim, todos os dias da minha vida. Tenho uma fome enorme de ser alguma coisa, de ser alguém. Está me ouvindo? — Ele estava. — Não vou me rebaixar nunca. Não diante de você. Nem de ninguém. — Encerrei o assunto. — Eu tenho fome, Steve.
Às vezes acho que essas foram as melhores palavras que eu já disse.
“Eu tenho fome.”
E, depois disso, fechei a porta.
Não a bati.
Não se atira em um cachorro que já está morto.