13

O telefone tocou. Era noite de quarta-feira. Pouco depois das sete.

— Alô?

— Ruben Wolfe?

— Não, é o Cameron.

— Seguinte — prosseguiu a voz, com um toque de amável malícia. — Você pode chamar o Ruben para mim?

— Sim. Quem quer falar?

— Ninguém.

— Ninguém?

— Escute, parceiro. Só ponha o seu irmão no telefone, senão vamos cobrir você de porrada também.

Levei um susto. Afastei o fone, tornei a colocá-lo no ouvido.

— Vou chamá-lo. Espere um minuto.

Rube estava no nosso quarto com Julia, a Vadia. Bati à porta e entrei, dizendo:

— Rube, tem alguém no telefone.

— Quem é?

— Não quis dizer.

— Vá perguntar.

— Eu tenho cara de secretário? Levante daí e vá atender o telefone.

Ele me olhou de um jeito estranho, levantou-se e saiu, deixando-me sozinho no quarto com Julia, a Vadia.

Julia, a Vadia: — Oi, Cam.

Eu: — Oi, Julia.

Julia, a Vadia, sorrindo e chegando mais perto: — O Rube me contou que você não é muito meu fã.

Eu, afastando-me aos poucos: — Bem, acho que ele pode contar o que quiser.

Julia, a Vadia, percebendo meu completo desinteresse: — É verdade?

Eu: — Bem, para ser sincero, não sei. Na verdade, o que o Rube faz não é da minha conta... O que sei é que quem está naquela ligação quer acabar com ele, e tenho a impressão de que é por sua causa.

Julia, a Vadia, rindo: — O Rube já é grandinho. Sabe cuidar de si.

Eu: — É verdade, mas ele também é meu irmão, e de jeito nenhum eu o deixaria sangrar sozinho.

Julia, a Vadia: — Quanta nobreza a sua.

Rube voltou, dizendo:

— Não sei do que você está falando, Cam. Não tinha ninguém no telefone.

— Estou lhe dizendo — retruquei, já saindo. — Um cara ligou, Rube, e ele parecia querer matar você. Portanto, da próxima vez que o telefone tocar, levante e vá atender.

O telefone realmente tocou de novo e, dessa vez, Rube saiu correndo do quarto e atendeu. Desligaram na cara dele de novo. Na terceira vez, meu irmão vociferou ao telefone:

— Que tal começar a falar? Se você está procurando o Ruben Wolfe, sou eu mesmo. Então pode falar!

Não houve resposta do outro lado, e o telefone não voltou a tocar nessa noite, mas, depois que a Julia saiu, percebi que Rube ficou meio pensativo. Estava tão preocupado quanto Ruben Wolfe chega a ficar, porque agora ele sabia sem sombra de dúvida, como eu, que alguma coisa iria acontecer. No nosso quarto, ele olhou para mim. No olhar que trocamos, disse-me que uma briga se aproximava.

Sentou-se em sua cama.

— Acho que aquele mau pressentimento que você teve estava certo — começou. — Sobre a Julia.

Assustar-se não era do feitio do Rube, pois nós dois sabíamos que ele era capaz de cuidar de si. Era uma das pessoas mais queridas, porém também mais temidas, do nosso bairro. O único problema, agora, era que não havia nada certo. Era um pressentimento, só isso, e eu percebi que o Rube também o tinha. Dava para sentir o cheiro.

— Se acontecer alguma coisa — falei —, pode contar comigo, viu?

Rube assentiu.

— Obrigado, mano.

Sorriu.

O telefone também tocou na noite seguinte, e na outra.

Na terceira ligação da noite de sexta-feira, Rube pegou o telefone e berrou:

— O que é!?

Em seguida, calou-se.

— É. — Pausa. — Sim, me desculpe por isso. — Deu uma olhada para mim e deu de ombros. — Vou chamá-lo. — Afastou o fone e cobriu o bocal: — É para você.

Estendeu-me o fone, pensativo. No que estaria pensando?

— Alô.

— Sou eu — disse ela. Sua voz me alcançou pelo telefone e me agarrou. — Você vai trabalhar amanhã?

— Até umas quatro e meia.

Ela pensou por um momento.

— Talvez possamos fazer algo quando você voltar. Vou levá-lo a um lugar — disse, com palavras suaves, mas intensas. — Vou lhe contar umas coisas.

A voz era excitação. A voz era arrepio.

Sorri. Não pude evitar.

— Com certeza.

— Está bem, passo por aí logo depois das quatro e meia.

— Ótimo; a gente se vê.

— Tenho que desligar. — Ela quase me interrompeu e não se despediu. — Estou vigiando o relógio. — E desligou.

Quando coloquei o fone no gancho, Rube me perguntou o que eu sabia que perguntaria:

— Quem era? — Mordeu uma maçã. — A voz me pareceu conhecida.

Aproximei-me, sentei à mesa da cozinha e engoli em seco. Concentrei-me em respirar. Tinha chegado a hora. A hora era aquela e eu tinha que falar.

— Você se lembra da Octavia? — perguntei.

Nada.

A torneira pingou.

O pingo explodiu na pia.

Rube estava no meio de outra dentada quando se deu conta do que eu estava dizendo.

Sua cabeça inclinou-se. Ele engoliu o pedaço de maçã e fez as contas, enquanto eu pensava: Ah, não, que diabo vai acontecer aqui?

Aconteceu uma coisa.

Aconteceu quando Rube foi fechar melhor a torneira, virou-se de novo para mim e disse:

— Bem, Cam.

Ele riu.

Seria uma risada boa ou má? Risada boa ou risada má? Risada boa ou risada má? Não consegui decidir. Aguardei.

— O que é? — perguntei. Já não aguentava mais. — Fale.

Nervoso, comecei a contar o que havia acontecido. Falei de estar em frente àquela casa em Glebe. De Octavia ter aparecido. Do trem e de ter ido até lá, e da concha e...

— Está tudo bem — disse ele, com uma expressão quase de orgulho. — ... Aquela Octavia... — E abanou a cabeça. — Ela é uma ótima garota, sabe? Meio maluquinha, é claro, mas é gente boa. Você a merece, Cam, mais do que eu. — Esperou que eu o olhasse. O que demorou um pouco. — Tudo bem?

Balancei a cabeça devagar, concordando.

— Tudo bem.

— Ótimo.

— Você não está com raiva?

— Ora, por que diabos eu ficaria com raiva? Uma garota daquelas precisa ser bem-tratada, e você pode fazer isso. Eu, não. — Em seguida, ele descarregou uma verdade muito mais dura do que o Steve jamais poderia sonhar. Só que o Rube o fez consigo mesmo. — Já eu — disse com seus botões — tratei aquela garota feito lixo, e agora ela está com você. Você provavelmente vai tratá-la como uma deusa. Não vai, Cam?

Sorri, mas sem mostrar os dentes.

Ele repetiu a pergunta:

— Não vai, Cam?

Porque ambos sabíamos a resposta.

Dessa vez, não consegui esconder. Rube e eu rimos e ficamos mais um pouco juntos na cozinha.

— Por que vocês estão tão contentes? — perguntou Sarah, ao entrar. — Isto aqui está parecendo o fim da porcaria de um episódio de Scooby-Doo...

Rube bateu palmas.

— Espere até ouvir isto — quase gritou. — Você se lembra da Octavia?

— É claro.

— Bem, pois eu vou lhe contar. Você vai tornar a vê-la mais um pouco, porque...

— Eu sabia! — interrompeu-o Sarah. Apontou para mim. — Eu sabia muito bem que havia uma garota, seu safado, e você não quis me contar nada!

Eu nunca tinha visto a Sarah sorrir daquele jeito.

— Esperem! — exclamou ela, e, talvez uns trinta segundos depois, voltou com sua câmera polaroide e tirou uma foto do Rube e de mim, os dois encostados na pia, conversando e rindo.

Juntamo-nos em volta da foto para ver a imagem se formar, e logo pude discernir um esboço do contorno do cabelo do Rube e do sorriso na minha boca. A maçã ainda se equilibrava na mão dele e estávamos ali de pé, encostados, rindo, os dois de jeans velhos, o Rube com uma camisa xadrez flanelada, usada no trabalho, eu com minha velha jaqueta impermeável. Rube olhava para mim, dizendo alguma coisa, e meu rosto estava marcado pelo riso.

Sarah puxou a foto para mais perto.

— Adorei essa foto — disse, sem pensar. — Tem cara de irmãos.

De como os irmãos devem ser, pensei, e ficamos mais um tempo contemplando-a, enquanto a torneira continuava a pingar, as gotas explodindo mais baixinho na pia.

Mais tarde, fui ao quarto da Sarah dar outra espiada na foto.

— Octavia, hein? — disse ela. Não pude ver seu rosto, mas senti a empolgação na voz. — Ela é linda, Cameron. — Sua voz soou muito baixinha, naquele momento. Tão baixa que mal pude ouvi-la. — Ela é linda.

“Como você”, tive vontade de dizer, mas não consegui. Já fazia algum tempo para a Sarah. Algumas experiências ruins com homens tinham feito com que minha irmã ficasse sozinha por algum tempo, mas, quando a olhei, ela não estava infeliz. Apenas repetiu o que tinha dito no corredor naquela noite, que agora parecia ter sido anos antes.

— Parabéns, Cam. Parabéns.

O trabalho, no dia seguinte, foi de uma lentidão angustiante, enquanto eu esperava. Era como se as horas estivessem engatinhando, sendo arrastadas para adiante a contragosto.

Ao chegarmos em casa, estava mais perto das cinco horas que das quatro e meia, e Octavia já me esperava na cozinha. Ela e Rube se falaram e não houve animosidade. Nem constrangimento.

Quanto a mim, fiquei ali parado, deslumbrado.

Octavia estava sem maquiagem e sem nada no cabelo, e vestia roupas normais. Nada de top justo. Nada de jeans apertados. Nada de joias, exceto a concha, pendurada no pescoço.

Mas estava adorável.

Era tão...

Puxa, não consigo explicar direito. Até hoje, não consigo.

— Bem? — Ela entrou em meus pensamentos, com sua voz baixa e seus olhos humanos. — Não vai me dar um beijo, Cameron?

Levei um susto.

Com a beleza.

Com as palavras.

Vá até lá, eu disse a mim mesmo, e pouco depois segurei a mão dela na minha e a beijei, depois beijei seu pulso e seus lábios.

— Ele encontrou você — disse a Sra. Wolfe para Octavia. — Que bom!

Minha mãe entrou e olhou para mim, e me lembrei do que ela me dissera naquele mesmo cômodo, algum tempo antes, no início do inverno. Ela me falara sobre um irmão que um dia subiria na vida e que não devia se envergonhar. Talvez ela também estivesse se lembrando disso.

— É melhor você se apressar, Cam — falou para mim. — Acho que a Octavia já esperou bastante.

Fui tomar um banho, me vesti, e Octavia e eu saímos logo depois. Não houve recomendações para eu voltar em certo horário ou não chegar muito tarde. Nada disso. Para começar, minha família estava acostumada comigo perambulando pelas ruas, e segundo, se eu ficasse na rua até tarde demais, isso seria dito na próxima vez que eu saísse. Na minha família, cada um tinha uma chance por conta própria, e o tempo que ela duraria dependia de seu comportamento. Sarah já havia passado dessa idade fazia anos, e o Rube também estava chegando lá. Eu, por outro lado, ainda tinha que tomar cuidado, e ia me certificar disso.

— Vamos andando? — perguntou Octavia, e segurei a porta aberta. Saímos.

Tínhamos percorrido um bom pedaço da rua quando me dei conta de que não fazia a mínima ideia de para onde estávamos indo. Perguntei.

Octavia apenas continuou concentrada no lugar aonde íamos.

— Você vai ver. Não é nenhum lugar especial — disse ela.

Soou satisfeita, como se nada além de nós parecesse importar. Não naquela noite, pelo menos. Sua mão encontrou a minha e a segurou. Não houve palavras, mas não fazia mal. O sinal abriu para nós em uma das ruas e atravessamos. Tomei cuidado para não tropeçar na sarjeta.

— Por aqui — indicou ela, mais adiante, fugindo das aglomerações maiores e nos levando para um pequeno cinema em uma rua estreita e abarrotada. — Você se incomoda se entrarmos aqui? — perguntou. — Sou meio chegada a filmes antigos, e esse cinema passa algum todo sábado.

— Parece legal — retruquei.

Quer dizer, sejamos sinceros: a garota podia ter me convidado para ir ao inferno, e eu iria. De jeito nenhum eu ia discutir, por isso entramos.

Entramos e o filme foi bom.

Era Touro Indomável, e o sujeito do cinema parecia conhecer Octavia e nos deixou entrar, mesmo dizendo que não devia. Às vezes eu pensava em outros filmes que tinha visto no cinema, onde o pessoal da nossa idade ia para namorar e comer pipoca e parecer bonito e tirar retratos três por quatro em uma daquelas cabines de fotografia nos supermercados.

Uma coisa era certa.

Nós não éramos assim.

Não éramos porque, a certa altura, Octavia se inclinou para perto de mim e achei que ia me beijar. Não beijou.

Dormiu.

Olhei-a e afaguei seu cabelo, e ela dormiu enquanto De Niro estapeava as pessoas e ia ficando cada vez mais gordo, mais feio e mais perverso. Era um filme em preto e branco, e eu sentia uma garota respirando no meu pescoço, sentia seu seio tocando de leve no meu peito.

Eu estava feliz.

Quando os créditos subiram na tela, afaguei o rosto dela com as costas dos dedos. Gentilmente, sussurrei:

— Octavia. — E de novo: — Octavia.

Ela acordou, assustada, com medo do escuro, e então se deu conta.

— Graças a Deus — murmurou. — Cameron. É você. — Os créditos ainda estavam rolando quando ela se mexeu de leve e disse, baixinho: — Você pode me dar um beijo, Cameron?

Abraçando-a, inclinei-me para baixo.

Lembro-me de uma coisa daquele momento, e é uma das melhores lembranças que tenho.

Foi no instante exato em que cheguei mais perto e ela me puxou para si, e nossos dentes se tocaram no escuro. Sua boca me absorveu e, de algum modo, nossos dentes colidiram, e aquele som ecoou através de mim. Gostei daquilo. Da verdade acidental daquilo.

Com as luzes começando a se acender progressivamente, Octavia disse em voz baixa:

— Sabe de uma coisa, Cameron? Você é a primeira pessoa que eu realmente quis que me beijasse. É a primeira pessoa a quem pedi isso.

Foi uma surpresa.

— Você nunca pediu ao Rube?

— Ele não precisava que eu pedisse.

— Imagino. Eu já devia saber — concluí.

Quando o Rube queria alguma coisa, não havia espera. Comigo, era espera demais.

— A questão — Octavia virou delicadamente minha cabeça para ela — é que eu gosto de ter que pedir. Isso torna você diferente de qualquer pessoa que eu já tenha conhecido. — Tornou a me beijar. Suave. Lenta. — É o tipo de pessoa com quem eu quero estar.

Na rua, ela resolveu que era melhor ir para casa, e por isso voltamos a pé para a Estação Central e esperamos o metrô. Havia o costumeiro grupo disperso de frequentadores de festas, lunáticos, filantes de cigarros e bebuns, cujas ideias e conversas tropeçavam pela plataforma suja. Octavia me falou de sua gaita e de como, provavelmente, o instrumento era a única coisa que ela já tinha amado ou na qual confiara. Quando o trem chegou, nós dois ficamos olhando para ele. Vimos as portas se abrirem, sentamos na estação e observamos o trem partir. Isso aconteceu outras três vezes.

— Nem acredito que peguei no sono — disse ela.

Estava abanando a cabeça quando o vento do quarto trem entrou com força na plataforma. Empurrou os detritos para a frente e lançou ondas de friagem no ar.

Mais uma vez, quando o trem parou e as portas se abriram, Octavia não se mexeu. Fiquei feliz. Ela me fez contar o que tinha acontecido no fim do filme e, nos olhos com que falei, pude ver como era grande o cansaço. Vi alguma coisa oculta, ou enterrada, mas continuei sem perguntar. Lembrei-me de ela ter dito ao telefone que me contaria coisas, e calculei que a gaita havia sido o princípio disso. Octavia me contou que começara a tocar aos oito anos e que, aos quatorze, já se considerava boa o bastante para tocar por dinheiro. Perguntei onde ela tocava e, quase com vergonha, ela listou uns trinta lugares pela cidade. Contou sobre as músicas. Sobre a primeira, sobre a última. A melhor, a pior. Eu a vira feliz quando ela estava com o Rube. Vira-a feliz e contente comigo. Mas nunca a tinha visto assim. Era orgulho e, de certo modo, foi algo com que pude me identificar, talvez por causa do começo das minhas palavras.

Havia também as esquisitices.

Seu antigo vício em salgadinhos sabor cheddar.

Seu ódio intenso por Céline Dion.

Seu amor por gaitas, violinos desafinados e água do mar.

Sua cantora favorita:

— Lisa Germano, de longe, por anos-luz, pelo vento que sopra por esses túneis.

Filme favorito:

— Um negócio francês. Não lembro o nome, mas era bom pra cacete.

Música favorita:

— “Small Heads”, da Lisa Germano. (Quem diabos é ela, afinal?)

Peça de vestuário favorita:

— Fácil. A concha.

Invenção humana favorita:

— Pontes. Para mim, é um mistério como eles conseguem fincar os pilares embaixo d’água.

Pior momento da sua vida:

— Sem comentários.

Melhor momento:

— Quase um empate. Pode ter sido quando pedi ao Cameron Wolfe para ficar em frente à minha casa, ou quando me ajoelhei com ele no cais, livrando-me de toda a insegurança e pondo minha boca na dele.

Bebida favorita:

— Nenhuma.

Som favorito:

— Dentes se chocando em um cinema vazio.

(Fiquei contente por ela também ter notado isso.)

Maior decepção:

— Em breve eu lhe conto.

Quando o trem seguinte chegou, Octavia disse:

— Esse eu tenho que pegar. — Na porta, ela se inclinou, tocando minha manga por um último instante, e começou a dizer alguma coisa, mas as portas se fecharam. — Esta! — gritou pela janela. — Esta é a minha maior decepção.

Era a minha também, apesar de ela ter me dito, antes de entrarmos no cinema, que no dia seguinte estaria no mesmo lugar da semana anterior, tocando sua gaita e ganhando dinheiro...

Quando o trem partiu, esperei um pouco, depois subi a escada rolante, segui pela rua Elizabeth e fui para casa.

Não houve perguntas quando cheguei, mas todos pareceram presumir que as coisas haviam corrido bem. Eram os sorrisos escapando do meu rosto. Escapando o tempo todo.

Mais uma vez, não consegui dormir.

A noite foi Octavia.

Em alguns momentos, também surgiram na minha cabeça ideias sobre o Steve e sobre o resto da família Wolfe. Mas principalmente sobre o Steve. Eu não estava com raiva dele pelo que havia acontecido durante a semana, e queria vê-lo no dia seguinte, antes de ir para o porto.

De manhã, comi e fui até lá. Não tive que tocar a campainha, porque ele e Sal estavam na sacada. Steve não me mandou subir. Em vez disso, desapareceu e desceu ao meu encontro. Foi simbólico, acho. Ele estava vindo a mim.

Abriu a boca para falar, mas passei na sua frente.

— Onde você joga hoje?

Steve levantou os olhos para a sacada, mas não respondeu à minha pergunta.

— Obrigado.

Foi um Obrigado por não me odiar.

Ele me ofereceu o café da manhã, mas não aceitei. Antes de ir embora, saí de baixo das varandas e gritei para a Sal:

— Até logo! Pode ser que eu venha amanhã ou na terça — sugeri ao Steve. — Talvez possamos ir ao estádio.

— Está bem — retrucou ele, e seguimos nossos caminhos separados.

Quando eu já estava longe, ouvi a voz dele me chamar pela última vez.

— Ei, Cam! Cam!

Ele veio na minha direção e parou a uns dez metros. Distância na qual eu conseguia ouvi-lo.

— Eu não esperava que você aparecesse por aqui, pelo menos não tão cedo — falou ele.

— Bem — abri o zíper da jaqueta —, você deu uma surra em quatro caras, um a um. Acho que perdoei meu irmão por ter me chamado de causa perdida. Na verdade, não faz tanta diferença assim, faz?

— Eu odiaria você para sempre.

Apenas balancei a cabeça.

— Não tem importância, Steve. A gente se vê logo.

No cais, dessa vez, desci do trem do metrô sem nervosismo. Todos os meus pensamentos se inclinaram para a imagem e o som de Octavia, e, da plataforma, olhei lá para longe e vi as pessoas que a cercavam, observando, escutando, absorvendo a música que fluía dela.

Andei depressa quando a vi, mas, ao chegar perto, não me aproximei da aglomeração que se formara ao seu redor, ou, pelo menos, não fui direto até lá. Segui mais para o lado e apenas me sentei, ouvindo. A voz uivante de sua gaita me alcançou.

— Foi fraco — disse ela, depois de terminar e me encontrar. Ela se agachara e me abraçava por trás. — Só quarenta e oito e sessenta — explicou. As palavras roçaram meu ouvido. — Mesmo assim, não foi tão mau. Venha, Cam, vamos embora.

Tomei a direção de quem estivesse voltando para a ponte, mas ela não me seguiu. Não naquele dia.

— Está a fim de ficar alto? — perguntou.

— Alto? — perguntei.

— É.

Octavia deu um sorriso perigoso, zombeteiro, e só comecei a entender o porquê ao voltarmos para o centro da cidade, para a torre. Lá dentro, fui pagar, mas ela não deixou.

— A ideia foi minha — explicou, empurrando meu dinheiro de volta para o bolso. — Eu trouxe você aqui. E vou levá-lo lá em cima... Além disso, você pagou o cinema ontem.

Entramos no elevador e subimos direto até o topo, com uns sujeitos com ar de jogadores profissionais de golfe americanos e uma família em um passeio dominical. Uma das crianças ficou pisando no meu pé.

“Merdinha”, tive vontade de dizer. Se estivesse com o Rube, provavelmente diria, mas, com a Octavia, apenas olhei para ela e deixei o xingamento implícito. Ela assentiu, como se dissesse: “Exatamente.”

Uma vez lá em cima, circulamos por todo o andar e não pude deixar de procurar minha casa, imaginando o que estaria acontecendo por lá e torcendo, até mesmo rezando, para estar tudo bem. Isso foi crescendo até incluir todo mundo lá embaixo, até onde a vista alcançava, e, como sempre faço quando rezo para um Deus sobre quem não entendo nada, fiquei parado ali, batendo de leve no peito, sem sequer pensar.

Mas especialmente esta garota, rezei. Que ela fique bem, Deus. Está bem? Está bem, Deus?

Foi então que Octavia notou meu punho batendo de leve no peito. Não houve resposta de Deus. Houve uma pergunta da garota.

— O que você está fazendo? — indagou ela. Senti a curiosidade de seus olhos no meu rosto. — Cameron?

Continuei concentrado na cidade esparramada a nossos pés.

— Só meio que rezando, sabe?

— Pelo quê?

— Por você. — Parei, continuei, quase ri. — E faz quase sete anos que não entro em uma igreja...

Passamos mais de uma hora lá em cima, e Octavia me contou mais algumas coisas a seu respeito.

Pouquíssimos amigos.

Tempo passado em trens.

Falou-me da vez em que sua gaita foi roubada na escola, e ela a encontrou dentro do vaso.

Só estava me dizendo quem era e, suponho, por que ia a um lugar como aquele.

— Venho muito aqui — disse-me. — Eu gosto. Gosto da altura. — Chegou até a subir no degrau acarpetado da janela e lá ficou, inclinando-se para a frente na vidraça. — Não vai subir?

Serei franco: eu tentei, porém, por mais que quisesse me inclinar para a frente naquela vidraça, não consegui. Fiquei achando que ia atravessar o vidro.

E por isso me sentei.

Só por alguns segundos.

Depois, Octavia desceu do degrau e viu que eu não me sentia muito bem.

— Eu queria subir — declarei.

— Tudo bem, Cam.

O problema é que eu sabia que havia uma coisa que eu tinha que perguntar, e perguntei. Até prometi a mim mesmo que seria a última vez que iria fazer uma pergunta desse tipo, apesar de não ter certeza de que manteria a promessa.

— Octavia — comecei. Continuava a ouvi-la dizer que vivia indo àquela torre. Era o que ainda ouvia quando proferi as palavras: — Você também trouxe o Rube aqui?

Lentamente, ela confirmou com a cabeça.

— Mas ele se debruçou na vidraça — respondi à minha pergunta seguinte. — Não foi?

Ela tornou a assentir.

— Foi.

Não sei por quê, mas pareceu importante. Era importante. Eu me senti um fiasco, porque meu irmão mais velho havia se inclinado na vidraça, e eu não conseguira. Aquilo me deu a sensação de ser um caso perdido, por alguma razão. Como se eu não fosse nem metade do sujeito que ele era.

Tudo porque ele se inclinara na vidraça, e eu não.

Tudo porque ele tivera coragem, e eu não.

Tudo porque...

— Isso não significa nada. — Octavia derrubou meus pensamentos. — Não para mim. — Pensou por um instante, depois me encarou. — Ele se inclinou na janela, mas nunca me fez sentir como você me faz. Antes de você, eu tinha a sensação de só estar viva de verdade quando tocava minha gaita. Mas agora é como... — Ela se esforçou para não explicar, e sim para realmente dizer. — Quando estou com você, é como se eu estivesse fora de mim. — Então veio o golpe final. — Não quero o Rube. Não quero mais ninguém. — Seus olhos me devoraram de mansinho. — Quero você.

Olhei.

Para baixo.

Para meus sapatos, depois de novo para cima, para Octavia Ash.

Ia dizer “obrigado”, mas ela me impediu, apertando minha boca com os dedos.

— Lembre-se sempre disso — completou. — Está bem?

Fiz que sim.

— Diga.

— Está bem — disse eu, e suas mãos frescas afagaram meu pescoço, meus ombros, meu rosto.