17

Caía uma chuva torrencial, martelando as ruas e os telhados da cidade em uma tarde escura de terça-feira. Havia alguém esmurrando nossa porta da frente.

— Espere aí! — gritei.

Eu estava comendo torradas na sala. Abri a porta e lá estava um homenzinho meio calvo, de joelhos, completamente encharcado.

— Keith? — perguntei.

Ele me olhou. Deixei cair a torrada. A essa altura, Rube já estava atrás de mim.

— O que aconteceu? — perguntou.

O rosto de Keith estava coberto de tristeza. Filetes de chuva escorriam pelas suas faces enquanto ele se levantava devagar. Fixou os olhos na janela da nossa cozinha e disse, com um soluço entrecortando a voz:

— O Miffy. — Quase se desfez em pedaços de novo. — Ele está morto. No quintal.

Rube e eu nos entreolhamos.

Saímos correndo pelos fundos e começamos a escalar a cerca de qualquer jeito, enquanto a porta batia às nossas costas. No meio do caminho, eu vi. Havia uma bolota de lanugem empapada e imóvel caída na grama.

Não, pensei, ao aterrissar do outro lado. A incredulidade impediu meus passos, deixando meu corpo pesado e meu coração disparado.

Rube também alcançou o chão. Seus pés bateram na grama encharcada e, onde terminavam minhas pegadas, as dele começaram.

Ajoelhei-me sob a chuva torrencial.

O cachorro estava morto.

Toquei-o.

O cachorro estava morto.

Virei-me para Rube, que se ajoelhara a meu lado.

O cachorro estava morto.

Passamos um tempo sentados ali, em completo silêncio, enquanto a chuva caía feito agulhas em nossos corpos ensopados. A pelagem castanha e fofa do Miffy, o lulu-da-pomerânia que era um pé no saco, estava amassada e úmida por causa da chuva, mas continuava macia. Rube e eu o afagamos. Brotaram até umas lágrimas perdidas dos meus olhos quando me lembrei de todas as vezes que o leváramos para passear à noite, com fumaça a sair dos nossos pulmões e com riso na voz. Ouvi a gente reclamando dele, fazendo troça, mas, no fundo, a gente se importava com ele. Até o amava, pensei.

O rosto do Rube estava arrasado.

— Coitado do merdinha — disse ele, com dificuldade para falar.

Eu queria dizer alguma coisa, mas fiquei completamente mudo. Sempre soubera que esse dia ia chegar, mas não havia imaginado que seria assim. Não sob aquela chuva torrencial. Não um amontoado patético de pelo congelado. Não com uma depressão do tamanho do que senti naquele exato momento.

Rube o pegou e o carregou para o abrigo da varanda, na parte de trás da casa de Keith.

O cachorro estava morto.

Mesmo depois que a chuva parou, a dor dentro de mim não cedeu. Continuamos a fazer carinho nele. O Rube chegou até a lhe pedir desculpas, provavelmente por todos os xingamentos que proferia quase sempre que o via.

Keith chegou um pouco depois, mas principalmente o Rube e eu é que ficamos ali. Durante cerca de uma hora, permanecemos sentados ao lado dele.

— Ele está ficando duro — assinalei, a certa altura.

— Eu sei — replicou Rube.

Eu estaria mentindo se não dissesse que um risinho de mofa cruzou nossos rostos. Foi a situação, acho. Estávamos com frio, encharcados e famintos e, de certo modo, essa foi a derradeira vingança do Miffy contra nós — a culpa.

Lá estávamos, quase congelados no quintal do vizinho, fazendo carinho em um cachorro que ficava mais duro a cada minuto, tudo porque o havíamos insultado várias e várias vezes e, depois, tivéramos a audácia de amá-lo.

— Bem, esqueça — acabou dizendo Rube. Fez um último carinho no Miffy e falou a verdade, com a voz trêmula. — Miffy, você sem dúvida nenhuma foi um indivíduo ridículo. Eu odiei você, amei você e usei um capuz na cabeça para ninguém me ver com você. Foi um prazer. — Fez um último carinho na cabeça do cachorro. — Agora, estou saindo — esclareceu. — Não estou disposto a pegar uma pneumonia só porque você teve a coragem de morrer embaixo do varal, no meio do que era praticamente um furacão. Por isso, adeus, e vamos torcer para que o próximo cachorro que o Keith e a esposa resolverem adotar seja mesmo um cachorro, e não um furão, um rato ou um roedor disfarçado. Adeus.

Saiu andando pelo quintal escuro, mas, quando subiu na cerca, virou-se e lançou um último olhar para o Miffy. Um último adeus. E então se foi.

Demorei mais um pouco por ali e, quando a mulher do Keith chegou do trabalho, ficou muito aflita com o que eu estava começando a chamar de “O Incidente Miffy”.

— Vamos mandar cremá-lo. Temos que cremar esse cachorro — repetia sem parar. Ao que parece, o Miffy tinha sido presente da mãe dela, já falecida, uma mulher que insistia em que todos os cadáveres, inclusive o dela própria, tinham que ser cremados. — Temos que mandar cremar esse cachorro — prosseguiu, mas raras vezes chegou sequer a olhar para ele. Estranhamente, tive a sensação de que o Rube e eu éramos as pessoas que mais gostavam daquele cachorro; um cachorro cujas cinzas, era bem provável, acabariam em cima do televisor ou do vídeo, ou no armário de bebidas, para que ficassem em segurança.

Pouco depois, eu disse meu último adeus, passando a mão no corpo rígido e no pelo sedoso, ainda meio chocado com aquilo tudo.

Fui para casa e dei a notícia da cremação. Nem é preciso dizer que todos ficaram admirados, especialmente Rube. Ou talvez “admirado” não seja bem a palavra certa para designar a reação do meu irmão. “Estarrecido” seria mais próximo.

— Vão cremá-lo?!? — gritou. Não conseguia acreditar. — Você viu aquele cachorro?!? Viu como estava encharcado?! Vão ter que secá-lo primeiro, senão ele não vai nem mesmo queimar! A chama mal vai pegar! Vão ter que usar o secador de cabelo!

Não pude deixar de rir.

Acho que foi por causa do secador.

Fiquei imaginando Keith parado junto do pobre cachorrinho, com o secador ligado em alta velocidade, e a mulher chamando da porta dos fundos:

— Ele já secou, meu bem? Já podemos jogá-lo no fogo?

— Não, ainda não, querida! Vou precisar de mais uns dez minutos, acho. Não consigo secar a droga da cauda!

O Miffy tinha uma das caudas mais felpudas da história do mundo. Pode acreditar.

Mais tarde, na sala, Rube continuou a falar do assunto. Àquela altura, já conseguia rir, e discutimos quando seria o funeral. Obviamente, se ia haver uma cremação, tinha que haver um funeral.

Descobrimos no dia seguinte que haveria uma pequena cerimônia no sábado à tarde, às quatro horas. O cachorro seria cremado na sexta-feira.

Naturalmente, como encarregados de levar o Miffy para passear, fomos convidados para o funeral na casa vizinha. Mas não foi só isso. Keith também resolveu que queria espalhar as cinzas do Miffy no quintal que tinha sido seu domínio. Perguntou se gostaríamos de ser as pessoas a espalhá-las.

— Sabem como é, eram vocês que passavam mais tempo com ele.

— É mesmo? — indaguei.

— Bem, para ser sincero — Keith remexeu-se um pouco —, minha mulher não gostou muito da ideia, mas eu insisti. Eu disse: Não, aqueles garotos merecem, e está resolvido, Norma. — Ele riu e completou: — Minha mulher se referiu a vocês como os dois merdinhas da casa ao lado.

Vaca velha, pensei.

— Vaca velha — disse Rube, mas, por sorte, o Keith não ouviu.

Devo admitir que a noite de quarta-feira ficou meio vazia sem o Miffy. Octavia também não apareceu, de modo que fiquei no quarto que dividia com Rube, lendo um livro. Podia ter assistido à televisão, suponho, mas estava de saco cheio dela. Ler era mais difícil, porque a pessoa tinha que se concentrar de verdade, em vez de só ficar sentada. O livro que eu estava lendo era genial, sobre um sujeito que pulava de um navio que ia naufragar em uma tempestade e depois descobria que ele não havia afundado. Ficou tão envergonhado que passou o resto da vida meio que fugindo desse incidente e meio que buscando o perigo, para enfrentá-lo e se testar, e para enfim provar que não era covarde. Tive um mau pressentimento de que aquilo acabaria em tragédia, e pensei que viver com vergonha e culpa devia ser a pior coisa do mundo.

Decidi que não deixaria isso acontecer comigo. Eu me via como um perdedor e um fracassado, às vezes, mas tudo começou a acabar naquele inverno. Naquele ano eu iria me levantar, e não estava dizendo isso só da boca para fora, na tentativa de me convencer.

Dessa vez, acreditei.

Foi o que disse à Octavia na tarde de sábado, e ela me abraçou e me beijou.

— Eu também — retrucou.

Papai, Rube e eu terminamos o trabalho às duas, para podermos chegar em casa a tempo do grande funeral, e, às quatro horas, Rube, Sarah, Octavia e eu fomos até os vizinhos. Todos pulamos a cerca.

Keith trouxe o Miffy em uma caixa de madeira, e o sol brilhava, a brisa ondulava e a mulher do Keith olhava com desdém para o Rube e para mim.

Vaca velha, pensei, e sim, você adivinhou, o Rube efetivamente falou, em um cochicho que só ele e eu pudemos ouvir. Isso nos fez rir, e eu quase falei “Ora, Rube, vamos deixar nossas diferenças de lado, pelo bem do Miffy”, mas pensei melhor. Achei que a mulher não veria com bons olhos nenhum comentário que nós fizéssemos, àquela altura.

Keith segurou a caixa.

Fez um discurso inútil sobre como o Miffy era maravilhoso. E fiel. E lindo.

— E patético — voltou a cochichar o Rube.

Tive de morder a bochecha por dentro, para não rir. Na verdade, um risinho chegou a escapar, e a mulher do Keith não ficou muito impressionada.

Rube idiota, pensei.

Mas a questão é que era apropriado que fosse assim. Não fazia sentido ficarmos parados ali, falando de quanto gostávamos do cachorro e tudo o mais. Isso só faria mostrar que não o amávamos. Nós havíamos expressado amor por aquele cachorro:

1. Depreciando-o.

2. Provocando-o de propósito.

3. Destratando-o verbalmente.

4. Discutindo se devíamos ou não jogá-lo por cima da cerca.

5. Dando-lhe uma carne que ele quase não era capaz de mastigar direito.

6. Implicando com ele, para fazê-lo latir.

7. Fingindo que não o conhecíamos em público.

8. Fazendo piadas no funeral dele.

9. Comparando-o a um rato, um furão ou qualquer outra criatura parecida com um roedor.

10. Sabendo, sem demonstrar, que nos importávamos com ele.

O problema do funeral foi que o Keith não parava de falar, e a mulher dele continuava insistindo em tentar chorar. No fim, quando estavam todos quase desmaiando de tédio e quase esperando que alguém cantasse um hino, o Keith fez uma pergunta vital. Em retrospectiva, tenho certeza de que desejou para cacete nunca tê-la feito.

Ele disse:

— Mais alguém tem alguma coisa a dizer?

Silêncio.

Silêncio absoluto.

E aí, Rube.

Keith estava prestes a me entregar a caixa de madeira com os restos mortais do Miffy quando Rube disse:

— Na verdade, sim. Eu tenho uma coisa a dizer.

Não, Rube, pensei, desesperado. Por favor. Não faça isso.

Mas ele fez.

Enquanto o Keith me entregava a caixa, o Rube fez seu pronunciamento. Em voz alta e clara.

— Miffy, sempre nos lembraremos de você. — Ergueu bem alto a cabeça. Orgulhoso. — Você foi, sem dúvida alguma, o animal mais ridículo da face da Terra. Mas nós o amávamos.

Olhou para mim e sorriu.

Mas não por muito tempo.

Decididamente, não por muito tempo, porque, antes mesmo que tivéssemos a chance de pensar, a mulher do Keith explodiu. Disparou na nossa direção. Caiu em cima de mim em um segundo, e começou a lutar comigo pela porcaria da caixa!

— Dá isso aqui, seu merdinha — sibilou.

— O que foi que eu fiz? — retruquei, desesperado, e em um instante criou-se uma guerra, e eu e Miffy estávamos no centro.

As mãos do Rube também já estavam na caixa e, comigo e o Miffy no meio, ele e a Norma começaram a se estapear. Sarah, que já estava apaixonada pela tal câmera instantânea, tirou umas fotos geniais da briga dos dois.

— Seu merdinha — cuspia Norma, porém Rube não desistiu.

Não havia jeito. Os dois continuaram a brigar.

No fim, foi o Keith quem acabou com a briga.

Entrou no meio e gritou:

— Norma! Norma! Pare de ser idiota!

Ela soltou a caixa, e o Rube também. No momento, a única pessoa segurando a caixa era eu, e não pude deixar de rir daquela situação ridícula. Para ser franco, acho que a Norma continuava irritada com um incidente que ainda não mencionei. Era uma coisa que havia acontecido dois anos antes. Era o incidente que fez com que a gente saísse para passear com o Miffy, para começo de conversa, ocorrido em um dia em que o Rube, eu e uns outros caras estivéramos jogando futebol no quintal. O velho Miffy tinha ficado todo agitado por causa da barulheira e da bola que batia constantemente na cerca. Latiu, latiu, latiu, até sofrer um infarto leve e, para compensar, a Sra. Wolfe nos obrigara a pagar o veterinário e a caminhar com ele pelo menos duas vezes por semana.

Esse tinha sido o começo da história do Miffy conosco. O verdadeiro começo; e, apesar de reclamarmos e falarmos mal dele, realmente aprendemos a amá-lo.

Mas, na cena do funeral no quintal, a Norma não quis saber de nada disso. Continuou fumegando de raiva. Só se acalmou uns minutos depois, quando já estávamos prontos para esvaziar as cinzas do Miffy na brisa e no quintal.

— Certo, Cameron — disse Keith, meneando a cabeça. — Está na hora.

Ele me fez subir em uma cadeira velha de jardim e eu abri a caixa.

— Adeus, Miffy — disse o vizinho, e emborquei a caixa, esperando que o Miffy se derramasse.

O único problema foi que isso não aconteceu. Ele estava grudado lá dentro.

— Mas, que diabo! — exclamou Rube. — É bem coisa do Miffy ficar todo grudento!

Eu queria olhar para ele e concordar, mas pensei melhor, por causa da mulher do Keith e tudo o mais. A única coisa que pude fazer foi sacudir a caixa, mas, mesmo assim, as cinzas não saíram.

— Ponha o dedo aí dentro e remexa um pouquinho — sugeriu Octavia.

Norma só olhou para ela.

— Você não vai vir com gracinhas agora também, vai, garota?

— De jeito nenhum — respondeu Octavia, em tom sincero.

Boa ideia. Ninguém ia querer perturbar a senhora àquela altura do campeonato. Ela parecia prestes a esganar alguém.

Desvirei a caixa e me encolhi, antes de revolver as cinzas com a mão.

A tentativa seguinte de esvaziá-la foi bem-sucedida. O Miffy foi libertado. Enquanto Sarah batia a foto, o vento colheu as cinzas e as espalhou pelo quintal do Keith e do outro vizinho.

— Ah, não — disse ele, coçando a cabeça. — Eu sabia que devia ter dito ao pessoal aí do lado para tirar a roupa da corda...

Os vizinhos usariam o Miffy na roupa por pelo menos uns dois dias.