19

De certo modo, às vezes eu gostaria que estas páginas não fossem além das últimas palavras do último capítulo, mas o inverno ainda não havia acabado de verdade.

Foi na noite da terça-feira seguinte que Rube e eu fomos à casa do Steve e, depois, ao campo. Todos demos chutes a gol e, apesar de eu ter errado a maioria, não teve muita importância. O Steve foi preciso como sempre e estava ansioso pelas finais.

Antes de irmos lá, o Rube recebeu outro telefonema. Era o primeiro depois de algum tempo, e eu o ouvi falar alto, em um tom veemente:

— É, foi o que você disse da última vez, parceiro. Você não vai aparecer. Está desperdiçando o meu tempo e a conta de telefone da sua mãe, pelo jeito. — Ouviu por um instante. — Bom, então me faça a porcaria da gentileza de aparecer desta vez. Tá legal? Certo. Ótimo.

Entrei na cozinha no instante em que ele batia o telefone.

— De novo? — perguntei.

— É.

Naquela noite, conversamos no quarto, cada um na sua cama. Havia algum tempo que não fazíamos isso, e foi uma sensação boa. Acabamos entrando no assunto de Julia, a Vadia, e do Telefonador.

— Oito da noite, na sexta-feira — foi o que Rube me disse no escuro. — Se ele aparecer.

— Ele vai aparecer.

— Como você sabe?

— Não sei. É que parece que ele vem tentando encher seu saco há muito tempo, só que, mais cedo ou mais tarde, virá atrás de você. Talvez esta sexta seja o dia. — Lembrei-me da garota. Julia. Eu não confiava nela. De jeito nenhum eles deixariam o Rube em paz. Iriam atrás dele, com certeza. — Acho que dessa vez vai acontecer.

— Bem, veremos.

— Você precisa de mim por lá?

— Se você quiser ir.

— Eu quero.

E foi só.

Nós dois socamos o saco de boxe no porão na noite seguinte, e eu me habituei à ideia de que a coisa iria acontecer.

Quando chegou a sexta-feira, os nós dos dedos do Rube pareciam concreto, e os meus também haviam endurecido, de tanto esmurrar o saco de areia. Saímos de casa como na vez anterior, às quinze para as oito.

Chegamos cedo ao velho pátio da ferrovia.

Esperamos.

Meu coração machucou minhas costelas.

E de novo.

Nada aconteceu.

Às oito e quinze, resolvi ir embora.

Na metade da viela, percebi que meus passos estavam sozinhos. Rube iria esperar lá, e achei que não sairia enquanto o sujeito não aparecesse.

— Você não vem? — perguntei, virando-me.

Ele balançou a cabeça.

— Desta vez, não.

Voltei até ele e perguntei:

— Quer que eu espere?

Ele balançou a cabeça de novo e fez sinal para eu ir embora.

— Não se preocupe com isso, Cam. Acho que você já demorou o bastante aqui.

Fiz meia-volta e, admito, não fiquei triste por ir embora. É claro, também senti certa culpa, mas para mim estava encerrado. No início do beco, pouco antes de virar na rua, girei mais uma vez para dar uma olhada no meu irmão. A sombra dele estava encostada na cerca, ainda esperando. Um dos pés estava apoiado no arame, e mal discerni a fumaça do seu hálito quente se formando no último ar noturno do inverno. Por um instante, quase acenei, mas me virei e continuei a andar.

Quando cheguei em casa, Sarah me perguntou onde estava o Rube. Respondi que ele tinha decidido ficar um pouco na rua. Isso não era incomum, de modo que não se disse mais nada.

Tentei ficar acordado e esperar por ele.

O livro que eu estava lendo era bom, mas mesmo assim adormeci no sofá. Quando todos os outros estavam indo dormir, me acordaram e me disseram para deitar também, mas tentei recomeçar a ler. Só que estava muito cansado, embora decidido a ver o Rube entrar pela porta da frente.

Queria ver o rosto dele.

Sem marcas.

Sem machucados.

Queria ouvir sua voz me dizer para levantar, rindo ao passar por mim.

Mas, naquela noite, meu irmão Rube não voltou para casa.

Passava um pouco da meia-noite quando acordei com um sobressalto silencioso. Abri os olhos e foi como se a luz amarela da sala os cortasse.

Fui atingido duas vezes por uma ideia.

Rube.

Rube.

O nome dele repetiu-se dentro de mim enquanto eu me levantava do sofá e andava devagar até o nosso quarto. Esperava sem esperança encontrá-lo lá dentro, esparramado na cama. A escuridão do corredor me envolveu. As tábuas rangeram, denunciando minha presença. Então, quando a porta se entreabriu, meus olhos entraram no quarto à minha frente. Estava vazio.

Acendi a luz e senti um arrepio. Ela me ofuscou e compreendi. Eu ia sair de novo, na noite.

Na sala, calcei os sapatos da forma mais silenciosa possível, vesti de novo a jaqueta e segui pela cozinha, em direção à porta de entrada. Um luar pálido dormitava no céu. Saí para o frio inseguro da rua.

Um mau pressentimento se intensificou no meu estômago.

Subiu para minha garganta.

Logo depois, enquanto andava depressa para o velho pátio ferroviário, senti-o ganhando força por dentro de mim. Havia uns bêbados que me fizeram chegar para a beira da calçada. Carros avançaram velozes na minha direção, com o brilho de seus faróis, passaram e desapareceram.

Minhas mãos transpiravam dentro dos bolsos da jaqueta. Meus pés estavam frios na quentura dos sapatos.

— Ei, garoto — chamou-me uma voz engrolada.

Evitei-a. Empurrei o sujeito que havia falado e desatei a correr, até avistar o beco.

Quando cheguei lá, sentia as batidas do coração dilacerando meu peito.

O beco.

Estava deserto.

Deserto e escuro, exceto pelo luar que se alargava e parecia derramar-se em todos os cantos esquecidos da cidade. Farejei alguma coisa. Medo.

Senti seu gosto.

Tinha o gosto de sangue na boca, e senti-o deslizar por mim e me rasgar, e então vi...

Havia uma figura sentada no chão, toda torta, encostada na cerca.

Alguma coisa me disse que o Rube não se sentava assim.

Chamei-o pelo nome, porém mal escutei minha voz. Havia em meus ouvidos um martelar gigantesco, que bloqueava todo o resto.

Chamei de novo.

— Rube!?

Quanto mais me aproximei, mais tive certeza de que era ele. Meu irmão estava tombado junto à cerca e vi o sangue que lhe inundava a jaqueta, as calças e a frente da velha camiseta de futebol.

Suas mãos agarravam a cerca.

A expressão de seu rosto era algo que eu nunca tinha visto nele.

Eu soube o que era porque também estava sentindo.

Era medo.

Era medo, e Ruben Wolfe nunca sentira medo de nada nem ninguém na vida, até aquele momento. Estava sentado sozinho no centro da cidade, e compreendi que só uma pessoa não poderia ter feito aquilo com ele. Imaginei-os segurando Rube e se alternando. Seu rosto quase achou o caminho de um sorriso ao me ver e, como uma brisa cortando o silêncio, ele me disse, em tom inexpressivo:

— Oi, Cam. Obrigado por ter vindo.

A pulsação em meus ouvidos cedeu e eu me agachei ao lado de meu irmão.

Percebi que ele se arrastara para aquela posição junto à cerca. Havia uma pequena trilha de sangue deixando um borrão cor de ferrugem no cimento. Ele parecia haver se arrastado por dois metros, até não poder mais e não conseguir continuar. Eu nunca tinha visto Ruben Wolfe derrotado.

— Bem — ele estremeceu —, acho que os caras me pegaram de jeito, né?

Eu tinha que levá-lo para casa. Ele tremia incontrolavelmente.

— Você consegue se levantar?

Rube tornou a sorrir.

— É claro.

Ainda estava com o sorriso pousado nos lábios quando se ergueu junto à cerca, trôpego, e desabou. Alcancei-o e o segurei. Ele escorregou por meus braços e caiu de bruços, agarrando a rua.

A cidade estava inchada. O céu continuava entorpecido.

Ruben Wolfe estava de cara no chão, com o irmão postado a seu lado, desamparado e com medo.

— Você tem que me ajudar, Cam — disse ele. — Não consigo me mexer. — Suplicou. — Não consigo me mexer.

Virei-o de barriga para cima e vi o impacto que ele sofrera. Não havia tanto sangue quanto eu tinha suposto, mas o rosto havia sido destruído pelo céu noturno que caiu sobre ele e o tornou real.

Arrastei Rube de volta à cerca, escorei-o e o levantei. Mais uma vez, ele quase caiu e, quando começamos a andar, percebi que ele não conseguiria caminhar.

— Desculpe, Cam — murmurou ele. — Sinto muito.

Ele estava de novo no chão, e só havíamos percorrido uns cinco metros.

Descansei um minuto, com meu irmão ainda deitado de costas...

Enquanto a lua era tragada por uma nuvem, enfiei os braços por baixo das costas e das pernas dele e o levantei. Segurei Rube no colo e o carreguei pelo beco, em direção ao mundo mais largo da rua.

Meus braços doíam e acho que Rube desmaiou, mas eu não podia parar. Não podia deixá-lo cair. Tinha que chegar em casa.

As pessoas olharam para nós.

O cabelo ondulado e cheio do Rube pendia para o chão.

Caiu mais um pouco de sangue na calçada. Pingou do Rube em mim e na calçada.

Era o sangue do Rube.

Era meu sangue.

O sangue dos Wolfe.

Alguma coisa doía bem dentro de mim, mas continuei a andar. Tinha que ir em frente. Sabia que, se parasse de carregá-lo, seria mais difícil prosseguir.

— Ele está bem? — perguntou um cara jovem, de jeito festeiro.

Só consegui dar um aceno afirmativo com a cabeça e seguir andando. Só pararia quando o Rube estivesse na cama e eu estivesse a seu lado, protegendo-o da noite e dos sonhos que o despertariam nas horas esmagadoras até o amanhecer.

Veio enfim a última esquina antes da nossa rua, e eu o levantei com um último esforço.

Ele gemeu.

— Vamos lá, Rube, a gente vai conseguir — falei para ele.

Quando penso nisso agora, não entendo como consegui chegar tão longe. Ele era meu irmão. É, foi isso. Ele era meu irmão.

No nosso portão, usei um dos pés do Rube para abrir o trinco e subi os degraus da varanda.

— A porta — falei, mais alto do que pretendia, e, depois de colocá-lo no chão da varanda, abri a porta de tela, enfiei a chave e me virei de novo para ele.

Meu irmão. Meu irmão Rube, pensei, e meus olhos doeram.

Ao andar novamente na sua direção, meus braços latejavam e a coluna me entortava as costas. Quando tornei a levantá-lo, quase caímos de cara na parede.

No trajeto pela casa, consegui dar com um dos joelhos do Rube em um batente de porta e, quando entrei no quarto, Sarah estava parada lá, com os olhos sonolentos, até que o pavor lhe estrangulou o rosto.

— Que diabo...

— Fique quieta — retruquei. — Só me ajude.

Ela tirou o cobertor da cama do Rube e eu o deitei. Meus braços estavam em chamas quando tirei sua jaqueta e a camiseta, deixando-o de jeans e botas.

Rube tinha uma porção de cortes e hematomas. Algumas costelas pareciam quebradas e um olho estava completamente roxo. Até as juntas de seus dedos sangravam. Ele acertou uns bons socos, pensei, mas nada daquilo significava mais coisa alguma.

Ficamos parados ali. Sarah olhou do Rube para mim, reconhecendo o sangue dele nos braços da minha jaqueta. Chorou.

A luz estava apagada, mas a do corredor acendeu-se.

Sentimos mais alguém chegar e eu soube que era a Sra. Wolfe. Sem sequer olhar, pude imaginar a expressão de dor em seu rosto.

— Ele vai ficar bom — consegui dizer, mas ela não foi embora. Veio andando na nossa direção enquanto a voz do Rube lutava para me alcançar.

A mão dele saiu de debaixo do cobertor e segurou a minha.

— Obrigado — disse ele. — Obrigado, irmão.

A luz pálida da janela me atingiu. Meu coração uivou.