20
Uma coisa eu tenho que reconhecer.
Na manhã seguinte, o Rube de fato se levantou e foi trabalhar com o papai e comigo. Estava machucado e ainda propenso a sangramentos, mas, mesmo assim, apareceu e trabalhou com todo o empenho que pôde. Acho que não há muitas pessoas capazes de levar uma surra daquelas e levantar no dia seguinte para trabalhar.
O Rube era assim.
Não há mais nada que eu possa dizer para explicar.
Todos acordaram de manhã, com a discussão entre ele e o papai, mas, terminada a briga, a história acabou. A Sra. Wolfe pediu, ou melhor, implorou para que o Rube passasse mais noites em casa, e não houve jeito de ele negar isso. Concordou plenamente, nós entramos no carro e fomos embora.
Era o meio da tarde quando Rube enfim perguntou por alguns dos detalhes mais obscuros da noite anterior.
— E então, até onde foi, Cam?
Suas palavras surgiram e se postaram na minha frente. Queriam a verdade.
Parei de trabalhar.
— Até onde foi o quê?
— Você sabe. — Ele viu sua imagem nos meus olhos. — Até onde você me carregou, ontem à noite?
— Um bom pedaço.
— O pedaço todo?
Fiz que sim com a cabeça.
— Desculpe — começou a dizer, mas nós dois sabíamos que não era necessário.
— Esqueça — retruquei.
O resto da tarde passou bem depressa. Fiquei observando Rube trabalhar de vez em quando, e de algum modo soube que ele ficaria bem. Era seu jeito de ser. Se estivesse vivo, ele ficaria bem.
— Está olhando o quê? — perguntou ele mais tarde, quando me viu a observá-lo, intrigado.
— Nada.
Até nos permitimos uma risada, especialmente eu, porque resolvi que tinha que parar de ser flagrado observando as pessoas. Observar as pessoas não é realmente um mau hábito, na minha opinião. É a parte de ser apanhado que preciso evitar.
Ao chegarmos em casa, Octavia já estava lá. Quando viu Rube, seu rosto ficou parecido com o de Sarah na noite anterior.
— Nem pergunte — disse meu irmão, ao passar por ela.
Quando me viu, ela pareceu aliviada por eu não estar como o Rube. Apenas murmurou as palavras, sem emitir som: O que aconteceu?
— Depois eu conto — respondi.
Na escrivaninha do quarto, havia um presente à minha espera. Era uma velha máquina de escrever cinza, com teclas pretas. Parei para contemplá-la, a alguns passos de distância.
— Gostou? — veio uma voz de trás de mim. — Eu a vi em uma loja de artigos usados e tive que comprá-la. — Ela sorriu e tocou no meu braço por trás. — É sua, Cam.
Andei até lá e a toquei. Deslizei os dedos pelas teclas e as senti sob meu toque.
— Obrigado. — Virei para ela. — Obrigado, Octavia. É linda.
— Ótimo.
Sarah passou algum tempo ao telefone, falando com o Steve. A semifinal dele seria no dia seguinte, e Octavia e eu resolvemos ir. O que eu não contava era com o Steve aparecendo lá em casa mais tarde naquela noite.
Octavia e eu estávamos na varanda quando o carro dele parou e o Steve veio na nossa direção. Ficou parado ali.
— Oi, Octavia. Cam.
— Oi, Steve.
Levantei-me e nós nos olhamos. Pensei na última vez que havíamos conversado ali. Mas naquela noite o rosto do Steve estava desolado, como estivera no estádio, lá no começo do inverno.
— Fiquei sabendo o que aconteceu ontem — começou ele. — A Sarah me contou por telefone.
— Você veio falar com o Rube? — perguntei. — Ele foi deitar, mas acho que ainda está acordado.
Fui abrir a porta, mas o Steve não entrou. Ficou parado na minha frente, sem se mexer.
— O quê? — perguntei. — O que é?
A voz dele foi abrupta, mas baixa.
— Não vim falar com o Rube. Vim falar com você.
Octavia se remexeu no banco e continuei concentrado em meu irmão Steve.
— A Sarah me contou que ontem à noite você o carregou do velho pátio ferroviário até em casa... — falou ele.
— Não foi nada...
— Não. Não minta, Cam. Foi alguma coisa. — Ele se erguia acima de mim, mas agora era só uma coisa física. Uma questão de altura. — Foi alguma coisa, está bem?
Concordei com ele.
— Está bem.
Sorrimos um para o outro.
Steve ficou parado.
Eu fiquei parado.
O silêncio juntou-se a nossos pés, e sorrimos um para o outro.
Ele entrou um pouco depois, mas não demorou muito. Octavia também foi embora, e eu entrei para usar a máquina de escrever. Na verdade, ela me assustou, porque eu queria escrever nela com perfeição. Pouco depois das dez horas, ainda a observava.
Logo, pensei comigo mesmo. As palavras virão logo...
Octavia e eu fomos mais cedo ao cais, no dia seguinte, para termos certeza de que não perderíamos o jogo do Steve.
Eu estava perto da água, escutando a música da Octavia a distância, quando o Rube parou a meu lado. Fiquei surpreso ao vê-lo, mas notei que seu rosto já tinha melhorado um pouco.
— Oi, Cam — disse ele.
— Oi, Rube.
Estava nervoso, deu para perceber.
— O que você veio fazer aqui? — indaguei.
Suas mãos brincavam com os bolsos quando ele se agachou. Nós dois contemplamos a água, e percebi que Rube estava desmoronando, só um pouquinho. Ele olhou para a frente e disse:
— Eu tinha que vir lhe dizer uma coisa...
Olhou para mim então. Estávamos nos olhos um do outro.
— Rube? — chamei.
A água do cais subia e mergulhava.
— Olhe — disse ele —, passei a vida inteira meio que esperando que você me admirasse, sabe?
A expressão de seu rosto me buscou. Assenti.
— Mas agora eu sei — prosseguiu. — Agora eu sei.
Esperei, mas não veio nada. Então perguntei:
— Sabe o quê?
Rube me encarou e sua voz estremeceu ao dizer:
— Que sou eu que admiro você...
Suas palavras giraram ao meu redor e entraram em mim. Penetraram sob a minha pele, e eu soube que não havia como tornarem a sair. Ficariam ali para sempre, assim como o momento entre mim e Ruben Wolfe.
Ficamos ali, agachados.
Pensando em coisas verdadeiras.
E, quando enfim nos levantamos e viramos para enfrentar o mundo, senti uma coisa me escalando por dentro. Senti-a nas mãos e nos joelhos, por dentro, subindo, subindo... e sorri.
Sorri e pensei: A fome. Porque eu a conhecia muito bem.
A fome.
O desejo.
E então, lentamente, enquanto caminhávamos, senti a beleza e o sabor daquilo, como palavras na minha boca.