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Bicha. Veado. Punheteiro.

Quando alguém quer dar um esporro, fazer o outro cair fora ou simplesmente humilhá-lo, é comum usar essas palavras. Também chamam o sujeito assim quando ele dá qualquer sinal de ser diferente do tipo de cara comum desta parte da cidade. E ele também pode ser tratado desse jeito se tiver irritado alguém sem querer, e se a pessoa não tiver nada melhor para falar. Até onde sei, é assim em toda parte, mas não posso falar por nenhum outro lugar, realmente. O único que conheço é este.

Esta cidade.

Estas ruas.

Você logo saberá por que mencionei isso...

Na quinta-feira daquela semana, resolvi cortar o cabelo, o que é sempre uma decisão bem perigosa, especialmente porque meu cabelo é cronicamente teimoso e sempre fica espetado para cima. Só resta mesmo rezar para a coisa não acabar em tragédia e torcer para o barbeiro não ignorar todas as instruções e não fazer uma matança geral na sua cabeça. Mas é um risco que você tem que correr.

— Olá, parceiro — cumprimentou o barbeiro quando entrei na loja, mais no centro da cidade. — Sente-se, não vou demorar.

Na sala de espera furreca havia um bom sortimento de revistas, embora fosse óbvio que todas estavam ali fazia alguns anos, a julgar pelas datas de publicação. Havia a Time, a Rolling Stone, uma sobre pesca, a Who Weekly, outra sobre computadores, a Black and White, a Surfing Life e uma eterna favorita, a Inside Sport. É claro que a melhor coisa da revista Inside Sport não são os esportes, mas a mulher em trajes sumários na capa. Ela é sempre sarada e cheia de desejo nos olhos. O biquíni é bonito e cavado, e as pernas são compridas, bronzeadas e elegantes. Ela tem seios que a gente só pode se imaginar tocando e massageando. (Desculpe, mas é verdade.) Tem quadris graciosos, barriga chapada e dourada, e um pescoço que a gente só consegue se imaginar chupando. Os lábios são sempre cheios e famintos. Os olhos dizem “possua-me”.

Ela é sempre fantástica.

Completamente.

Você lembra a si mesmo que há uns artigos bem legais na Inside Sport, mas sabe que está mentindo. É claro que existem boas matérias, mas uma ova se é isso que o faz pegar a revista. É sempre a mulher. Sempre. Pode confiar em mim.

E assim, como era típico, inspecionei a área e me certifiquei de que não havia ninguém olhando quando apanhei a Inside Sport, abri-a depressa e fingi examinar a página do sumário em busca de boas reportagens. Procurava (como era previsível) a página em que estaria a mulher da capa.

Setenta e seis.

— Tudo bem, chefe — disse o barbeiro.

— Eu?

— Não tem mais ninguém esperando, não é?

É, mas, pensei, desamparado, ainda não cheguei à página setenta e seis!

Era inútil.

O barbeiro estava pronto e, se existe um homem que não convém fazer esperar, é o sujeito que está prestes a cortar o seu cabelo. Ele é onipotente. Na verdade, poderia muito bem ser Deus. Ele é tão poderoso assim. Alguns meses na escola de barbeiros e o homem se torna a pessoa mais importante da sua vida, durante dez ou quinze minutos. Esta é a regra: não o deixe puto, senão você vai se ferrar.

No mesmo instante, devolvi a revista à mesa, virada para baixo, para o barbeiro não saber de imediato o pervertido que sou. Teria que esperar até mais tarde, quando arrumasse as revistas.

Sentado na cadeira (o que parece mais ou menos tão perigoso quanto a cadeira elétrica), pensei em toda aquela situação da mulher da capa.

— Curto? — perguntou o barbeiro.

— Não, não muito curto, amigo, por favor. Só estou querendo dar um jeito para ele não ficar em pé o tempo todo.

— Mais fácil falar do que fazer, não é?

— É.

Trocamos um olhar de amabilidade recíproca, e eu me senti bem mais à vontade na linha de fogo da tesoura, da cadeira e do barbeiro.

Ele começou a cortar e, como eu disse há um minuto, pensei na questão da mulher da capa. Minha teoria sobre o assunto era, e continua sendo, que é óbvio meu desejo pela dimensão física da mulher. Mas acredito de verdade que essa parte do meu desejo por uma garota fica na superfície da minha alma, ao passo que, muito mais profundamente, está o ardente desejo de agradá-la, tratá-la bem e mergulhar no espírito dela.

Acredito de verdade nisso.

De verdade.

Mas tive que parar de pensar no assunto e conversar com o barbeiro. Essa é outra regra das barbearias. Se você conversar com o sujeito e fizer com que goste de você, pode ser que ele não estrague tudo. Pelo menos, essa é a esperança. Não significa que vá funcionar com certeza, mas talvez ajude, e por isso você tenta. Não há garantias no mundo das barbearias. É um jogo de azar, de um jeito ou de outro. Eu tinha que começar a falar, e rápido.

— E então, como têm andado os negócios? — indaguei, enquanto o barbeiro abria caminho pela massa cerrada de cabelos.

— Ah, você sabe, rapaz. — Parou e sorriu para mim pelo espelho. — Vamos levando. Pagando as contas. Isso é o principal.

Conversamos por um bom tempo depois disso, e o barbeiro disse há quanto tempo trabalhava na cidade e comentou como as pessoas haviam mudado. Concordei com tudo que ele disse, com um perigoso aceno de cabeça ou com um discreto “É, acho que é isso mesmo”. Ele era um sujeito bem legal, para falar a verdade. Grandão. Peludo. Vozeirão.

Perguntei se morava no apartamento em cima da loja e ele respondeu: “Sim, nos últimos vinte e cinco anos.” Nessa hora senti um pouco de pena, por imaginar que ele nunca fazia nada nem ia a parte alguma. Só cortava cabelos. Jantava sozinho. Talvez comida de micro-ondas (embora seus jantares não pudessem ser muito piores que os preparados pela Sra. Wolfe, que Deus a abençoe).

— Importa-se se eu lhe perguntar se já foi casado? — indaguei.

— É claro que não. Fui casado, sim, mas minha mulher morreu há alguns anos. Vou ao cemitério todo fim de semana, mas não levo flores. E não falo. — Deu uns suspiros e soou muito sincero. De verdade. — Gosto de pensar que fiz isso o bastante enquanto ela era viva, sabe?

Assenti.

— Não adianta nada, depois que a pessoa morre. Isso é para se fazer quando as pessoas estão juntas, ainda vivas.

Ele havia parado de cortar meu cabelo por alguns momentos, e por isso pude continuar a balançar a cabeça sem perigo.

— E o que você faz quando fica lá, junto à sepultura? — perguntei.

Ele sorriu.

— Fico lembrando. Só isso.

Que legal, pensei, mas não falei nada. Apenas sorri pelo espelho para o homem atrás de mim. Tive uma visão daquele sujeito grande e peludo, parado no cemitério, ciente de ter dado tudo de si. Também me imaginei lá com ele, em um dia cinza-escuro. Ele com seu avental branco de barbeiro. Eu com minha roupa normal. Jeans. Camisa de flanela xadrez. Jaqueta impermeável.

“Tudo bem?”, dizia, virando-se para mim, na minha visão.

— Tudo bem? — perguntou, na barbearia.

Despertei de novo para a realidade.

— Sim, muito obrigado, está ótimo — respondi, mesmo sabendo que o cabelo voltaria a ficar arrepiado em menos de quarenta e oito horas. Mas eu estava contente, não só pelo corte de cabelo. Pela conversa também.

Com o chão coberto de cabelo em volta dos meus pés, paguei doze dólares e disse:

— Muito obrigado. Foi um prazer conversar com você.

— Para mim também.

O barbeiro peludo e grandão sorriu, e me senti culpado por causa da revista. Só me restou esperar que ele compreendesse as diferentes camadas da minha alma. Afinal, era barbeiro. Supõe-se que os barbeiros saibam as respostas sobre como governar o país, junto com os motoristas de táxi e com comentaristas de rádio irritantes. Agradeci de novo e me despedi.

Ao sair, vi que ainda estava na metade da tarde e, sendo assim, por que não?, perguntei a mim mesmo. Bem que eu poderia ir até Glebe.

Nem preciso dizer que cheguei lá e fiquei parado em frente à casa da garota.

Stephanie.

Era um lugar tão bom quanto qualquer outro para ver o sol desabar atrás da cidade e, passado algum tempo, sentei-me encostado em uma parede e tornei a pensar no barbeiro.

O importante era que ele e eu estávamos na verdade fazendo coisas parecidas, só que na ordem inversa. Ele rememorava. Eu antecipava. (Uma antecipação esperançosa, quase ridícula, admito.)

Depois que escureceu, resolvi que era melhor ir para casa jantar. Eram sobras de bife, acho, com legumes cozidos até quase desaparecerem.

Levantei-me.

Enfiei as mãos nos bolsos.

Depois, olhei, tive esperança e caminhei, nesta ordem.

É patético, eu sei, mas acho que aquela era a minha vida. Não adianta negar.

Acabou que estava mais tarde do que eu tinha suposto quando finalmente fui embora, então resolvi pegar o ônibus de volta para o meu bairro.

No ponto de ônibus, havia um punhado de pessoas esperando. Havia um homem com uma maleta, uma mulher que fumava um cigarro atrás do outro, um sujeito que parecia operário ou carpinteiro e um casal que trocava beijos enquanto esperava, um encostado no outro.

Não pude evitar.

Fiquei olhando.

Não de forma óbvia, é claro. Só uma olhadinha aqui e ali.

Droga.

Fui apanhado.

— Está olhando o quê, você aí? — O sujeito cuspiu as palavras em mim. — Não tem nada melhor para fazer?

Nada.

Foi essa a minha resposta.

Absolutamente nada.

— E aí?

Ainda nada.

Então, a garota também soltou os cachorros em cima de mim:

— Por que não vai olhar para outra pessoa, seu esquisitão? — O cabelo dela era louro, os olhos, verdes, espremidos sob a luz do poste, e a voz parecia uma faca cega com que me batia. — Punheteiro.

Típico.

É muito comum ser tratado desse jeito por aqui, mas dessa vez doeu. Acho que doeu por ser dito por uma garota. Sei lá. De certo modo, foi meio deprimente ter chegado a esse ponto. Não se podia nem esperar um ônibus em paz.

Eu sei, eu sei. Eu devia ter retrucado com uma boa resposta, mas não retruquei. Não consegui. Que Wolfe, hein? Que grande cão selvagem eu virei! Tudo que fiz foi roubar uma última olhadela, para ver se eles iam atirar alguns últimos fragmentos de xingamento em mim.

O rapaz também era louro. Nem alto nem baixo. Usava calças escuras, botas, jaqueta preta e um sorriso de desdém.

Enquanto isso, o homem da maleta consultou o relógio. A fumante acendeu outro cigarro. O trabalhador deslocou o peso do corpo de um pé para o outro.

Não se disse mais nada e, quando o ônibus chegou, todos se apressaram a entrar, e eu fiquei por último.

— Desculpe.

Quando entrei e tentei pagar, o motorista me disse que o preço das passagens acabara de subir, e eu não tinha dinheiro suficiente para o bilhete.

Desci, dei um sorriso pesaroso e lá fiquei.

O ônibus estava bem vazio.

Quando comecei a andar, vi o veículo afastar-se, avançando pela rua aos solavancos. Muitas ideias cambalearam dentro de mim, inclusive:

•   Como eu iria chegar tarde para o jantar.

•   Se alguém perguntaria onde eu estava.

•   Se o papai iria querer que Rube e eu trabalhássemos com ele no sábado.

•   Se algum dia a garota chamada Stephanie sairia de casa e me veria (se é que fazia alguma ideia de que eu estava lá).

•   Quanto tempo ainda levaria para Rube dar o fora na Octavia.

•   Se Steve se agarrava à lembrança do olhar que tínhamos trocado na noite de segunda-feira com a mesma frequência que eu.

•   Como andaria minha irmã, Sarah, ultimamente. (Fazia algum tempo que não nos falávamos.)

•   Se a Sra. Wolfe ficava ou não decepcionada comigo em algum momento, ou se sabia que eu me tornara uma pessoa tão solitária.

•   E como estaria se sentindo o barbeiro em cima da sua loja.

Também me dei conta, enquanto andava, e depois, quando comecei a correr, de que nem sentia raiva do casal que me xingara. Sabia que devia sentir, mas não sentia. Às vezes, acho que eu preciso ter um pouco mais de vira-lata em mim.