8

Ela me invadiu.

Foi simples assim.

Suas palavras me alcançaram, agarraram meu espírito pelo coração e o surrupiaram do corpo.

Foram as palavras e a voz, e Octavia e eu. E meu espírito, na rua silenciosa, tomada por sombras. Só me restou observá-la, enquanto, devagar, ela pegava minha mão e a punha delicadamente na sua.

Absorvi-a por inteiro.

Fazia frio e o hálito enfumaçado lhe fluía da boca. Ela sorria e seu cabelo ficava caindo no rosto, tão lindo e verdadeiro. De repente, os seus eram os olhos mais humanos que eu já tinha visto, e os leves movimentos de sua boca me chamavam. Senti sua pulsação na minha mão, batendo suave na minha pele. Seus ombros eram estreitos, e ela ficou comigo naquela rua que lentamente se inundava de escuridão. Segurando a minha mão. Aguardando.

Uivos silenciosos me perpassaram.

Os postes de luz se acenderam.

Continuei parado. Completamente imóvel, vendo-a. Vendo a veracidade dela, parada diante de mim.

Quis me abrir e deixar minhas palavras se derramarem pela calçada, mas não disse nada. A garota acabara de me fazer a pergunta mais fantástica do mundo, e eu estava completamente sem fala.

“Sim”, quis dizer. Quis gritar e levantá-la do chão e abraçá-la e dizer “Sim, sim, vou ficar em frente à sua casa, seja quando for”, mas não falei nada. Minha voz encontrou o caminho da boca, mas não saiu. Sempre tropeçava em algum lugar, e depois se perdia, ou tornava a ser engolida.

O momento foi retalhado. Despedaçou-se à minha volta, e não tive absolutamente a menor ideia do que aconteceria em seguida, ou se viria de Octavia ou de mim. Senti vontade de me abaixar e catar todos os pedacinhos e guardá-los nos bolsos. De algum modo, em algum lugar perto de mim, eu ouvia a voz do meu espírito, dizendo-me o que falar ou o que fazer, mas não conseguia entendê-la. O silêncio a meu redor era intenso demais. Deixou-me indefeso, até eu notar os dedos dela apertando os meus com mais força por apenas um instante.

E passou.

Lentamente, ela deixou sua mão se soltar, e estava acabado.

Minha mão baixou e bateu de leve na lateral do meu corpo, pelo impacto de quando Octavia a soltou.

Ela olhou.

Para mim, depois para longe.

Estaria magoada? Esperava que eu falasse? Queria que eu segurasse sua mão de novo? Queria que eu a puxasse para mim?

As perguntas ladravam dentro de mim, mas, apesar disso, não cheguei nem perto de fazer nada. Simplesmente fiquei parado ali, feito um tolo desventurado e incorrigível, à espera de que algo mudasse.

No fim, foi a voz da Octavia que extinguiu o silêncio candente da noite.

Uma voz baixa, corajosa.

Ela disse:

— Só... — Hesitou. — Só pense nisso, Cam.

E, depois de um instante de reflexão e uma última olhada para mim, deu meia-volta e foi embora.

Fiquei olhando.

Para as pernas dela.

Seus pés, caminhando.

O cabelo ecoando por suas costas na escuridão.

Lembrei-me também da sua voz, e da pergunta, e do sentimento que se avolumara dentro de mim. Ele gritava e me aquecia e me enregelava e se jogava dentro de mim. Por que eu não tinha dito nada?

Por que você não disse nada?, briguei comigo mesmo.

Ouvi os passos de Octavia.

Que subiam e arranhavam um pouquinho, enquanto ela seguia na direção da estação de trem.

Ela não olhou para trás.

— Cameron.

Uma voz me chamou.

— Cameron.

Lembro-me com clareza de estar com as mãos nos bolsos e, quando olhei para a direita, juro que pude discernir a silhueta do meu espírito, também encostado na mureta de tijolos, também as mãos nos bolsos. Ele me olhou. Fixou os olhos. E disse mais.

— Que diabo você está fazendo? — perguntou.

— O quê?

— Que quer dizer com o quê? Você não vai atrás dela?

— Não posso. — Olhei para baixo, para meus sapatos velhos e as barras esgarçadas dos jeans. Apenas olhei, e disse: — De qualquer jeito, agora é tarde demais.

Meu espírito chegou mais perto.

— Mas que diabo, moleque! — As palavras foram rudes. Fizeram-me levantar a cabeça e olhar com atenção, para encontrar o rosto ligado à voz. — Você fica parado, esperando em frente à casa de uma garota que não lhe dá a mínima, e, quando uma coisa de verdade acontece, você desmorona! Que espécie de pessoa é você?

Então, calou-se.

A voz cessou abruptamente.

O que queria dizer já fora dito, e retomamos nossa posição, encostados no muro, com as mãos nos bolsos e o silêncio se alimentando em nossa boca.

Passou-se um minuto.

Outro veio e se foi, e mais outro. O tempo se coçou nos meus pensamentos, como o som dos pés de Octavia.

Finalmente me mexi.

Depois de uns quinze minutos.

Dei uma derradeira olhada na casa, sabendo que provavelmente era a última vez que a veria, e comecei a andar em direção à estação Redfern, sob os cabos da rede elétrica e através do frio da rua. Os vitrais das casas cintilavam quando as luzes de fora corriam para elas, e ouvi meus pés se levantando e depois arranhando o chão quando comecei a correr. Em algum lugar atrás de mim, ouvi os passos e a respiração do meu espírito. Eu queria chegar à estação antes dele. Tinha que chegar.

Corri.

Deixei o ar frio chapinhar em meus pulmões, enquanto ia pensando repetidas vezes no nome de Octavia. Corri até meus braços doerem tanto quanto as pernas e minha cabeça latejar com o afluxo de sangue.

— Octavia — disse.

Para mim mesmo.

Continuei a correr.

Passei pela universidade.

Passei pelas lojas abandonadas.

Passei por uns sujeitos que pareciam capazes de me assaltar.

— Vamos — dizia a mim mesmo, quando achava que estava reduzindo o passo, e forçava a vista ao longe, tentando ver as pernas e os passos de Octavia.

Quando cheguei à estação, jorravam hordas humanas pelos portões, e eu consegui me enfiar por entre um sujeito com uma maleta e uma mulher que carregava flores. Fui para a linha de Illawarra e disparei pela escada rolante, passando por todos os ternos, maletas e diferentes aromas de perfume e laquê já meio vencidos.

Cheguei à base.

Quase tropecei.

Olhe só para essa quantidade de gente!, pensei, mas fui abrindo caminho aos poucos pela plataforma. Quando o trem chegou, todas as pessoas se amontoaram e se espremeram, balançando a cabeça quando eu ficava no caminho. Houve até um mau cheiro danado, como o suor das axilas de alguém. O fedor me lambeu o rosto, mas continuei a procurar e a avançar pela multidão.

— Saia da frente — rosnou alguém, e eu fiquei sem alternativa.

Embarquei no trem.

Embarquei e fiquei no compartimento central lotado, bem ao lado de um sujeito de bigode que era obviamente o dono do suor pútrido nas axilas. Ambos nos seguramos no apoio de metal engordurado, até o trem e eu entrarmos em movimento.

— Com licença — falei. — Desculpe.

Assim fui abrindo caminho pelo vagão para o andar de baixo. Calculei que antes percorreria o primeiro nível do trem e depois voltaria para o segundo. Esse era o único trem que ia para Hurstville. Octavia tinha que estar nele.

Não a encontrei no vagão em que eu havia embarcado, nem no seguinte.

Fui abrindo as portas entre os vagões e passando, com o vento frio do túnel guinchando à minha volta até eu entrar no próximo vagão. Em dado momento, quase dei com a porta na cara do meu espírito quando ela se fechou atrás de mim.

— Ali!

Ouvi a voz dele apontá-la para mim na multidão de seres humanos trancafiados no trem.

Vi-a logo depois que o trem chacoalhou, brotou do túnel e entrou no tom carvão mais pálido da noite. Octavia estava de pé, como eu havia ficado alguns vagões antes, mas virada para o outro lado. Do andar inferior do trem, pude ver suas pernas.

Passo.

Passo.

Fui me esgueirando para mais perto, cheguei à escada e comecei a subir.

Logo a vi inteira.

De pé, ela olhava pela janela suja do trem. Perguntei-me no que estaria pensando.

Eu estava perto.

Pude ver o pescoço e o movimento da respiração dela. Vi seus dedos segurando o apoio, enquanto o trem gaguejava e as luzes oscilavam e piscavam.

Octavia, eu disse, por dentro.

Meu espírito me empurrou para a frente.

— Vá em frente — disse ele, mas não me desafiou, não me deu ordens nem exigiu nada. Apenas me disse o que era certo e o que eu precisava fazer.

— Está bem — murmurei.

Cheguei mais perto e parei atrás dela.

De sua camisa de flanela.

Da pele do seu pescoço.

Das mechas despenteadas de cabelo que lhe desciam pelas costas.

Do ombro...

Estendi a mão e a toquei.

Ela se virou.

Virou, e eu a olhei, e um sentimento deu uma guinada em mim. Caramba, ela estava linda. Ouvi minha voz. Que disse:

— Vou ficar em frente à sua casa, Octavia. — Cheguei até a sorrir. — Amanhã vou lá e fico diante dela.

Foi então que ela suspirou, fechou os olhos por um instante e retribuiu o sorriso.

Sorriu e disse:

— Está bem.

Com a voz baixa.

Cheguei mais perto, segurei a blusa dela na altura do estômago e a abracei, aliviado.

Na parada seguinte, falei que era melhor eu saltar.

— Vejo você amanhã? — perguntou ela.

Fiz que sim.

As portas do trem se abriram e eu saí. Quando se fecharam, eu não fazia ideia da estação em que estava, mas, quando o trem partiu e começou a se arrastar para a frente, segui andando com ele, ainda olhando para Octavia pela janela.

Depois que o trem se foi, fiquei parado ali, até finalmente perceber como fazia frio na plataforma.

Uma coisa me ocorreu.

Meu espírito.

Tinha ido embora.

Procurei por toda parte, até perceber.

Ele não tinha descido do trem comigo. Ainda estava naquele vagão, com Octavia.