9

— Ei — disse Rube, quando cheguei naquela noite —, que diabo aconteceu com você? Está meio atrasado, não é?

— Eu sei. — Confirmei com a cabeça.

— Tem sopa na panela — interrompeu a Sra. Wolfe.

Levantei a tampa, o que costuma ser a pior coisa que se pode fazer. Mas serve para esvaziar a cozinha, o que foi muito útil naquela noite, pensando bem. Eu não estava mesmo disposto a responder a perguntas, especialmente às do Rube. O que eu poderia lhe dizer? “Ah, sabe, cara, acabei de sair com a sua ex-namorada. Você não se incomoda, não é?” De jeito nenhum.

A sopa demorou alguns minutos e eu me sentei para tomá-la sozinho.

Enquanto comia, comecei a aceitar o que tinha acontecido. Quer dizer, não é todo dia que uma coisa daquelas acontece e, quando acontece, é difícil não demorar a acreditar.

A voz dela continuava ressoando dentro de mim.

— Cameron?

— Cameron?

Depois de ouvi-la algumas vezes, eu me virei e descobri que Sarah também estava falando comigo.

— Tudo bem com você? — perguntou.

Sorri para ela.

— É claro.

E nós lavamos a louça.

Mais tarde, Rube e eu fomos buscar o Miffy e passeamos até ele começar a ofegar de novo.

— Ele está com uma chiadeira desgraçada. Vai ver que está com gripe, ou coisa assim — sugeriu Rube. — Ou com gonorreia.

— O que é gonorreia?

— Não sei direito. Acho que é uma espécie de doença sexual.

— Bem, acho que ele não está sofrendo disso.

Quando o devolvemos ao Keith, ele disse que Miffy soltava muitas bolas de pelo, o que fazia sentido, já que o cachorro parecia ser feito de noventa por cento de pelo, um pouquinho de carne, outro tanto de osso, e um ou dois por cento de latidos, ganidos e confusão. Mas principalmente pelos. Pior que um gato.

Fizemos um último carinho nele e saímos.

Na nossa varanda, perguntei ao Rube como estava indo com a tal da Julia.

“É uma vadia”, eu o imaginei anunciando, mas sabia que ele não falaria isso.

— Ah, não vai nada mal, sabe? — respondeu ele. — Não é a melhor, mas também não é a pior. Não tenho queixas, na verdade.

Não demorava muito para uma garota passar de fantástica a trivial para o Rube.

— Certo.

Por um momento, quase lhe perguntei qual era sua avaliação da Octavia, mas não me interessava por ela da mesma maneira que o Rube, logo não fazia sentido. Não era importante. Para mim, o importante era quanto os pensamentos sobre ela iam aos recônditos mais profundos dentro de mim. Eu simplesmente não conseguia parar de pensar nela, enquanto me convencia de tudo que havia acontecido.

O aparecimento dela na rua em Glebe.

Sua pergunta.

O trem.

Tudo.

Passamos um tempo lá sentados, no sofá surrado que papai tinha posto na varanda alguns verões antes, observando o trânsito que fluía preguiçoso.

— Tão olhando o quê? — indagou uma garota meio vagabunda que passou flanando pela calçada.

— Nada — respondeu Rube, e só nos restou rir enquanto ela nos xingava sem motivo e seguia em frente.

Meus pensamentos voltaram-se para dentro.

A cada momento que passava, Octavia encontrava mais um caminho para mergulhar em mim. Mesmo quando Rube recomeçou a falar, eu estava de novo no trem, abrindo caminho por entre os humanos suados e engravatados.

— Nós vamos trabalhar com o papai neste sábado? — perguntou Rube, pisoteando meus pensamentos.

— Tenho quase certeza que sim — respondi.

Então ele se levantou e entrou em casa. Continuei na varanda por mais um bom tempo. Pensei na noite seguinte e em parar em frente à casa da Octavia.

Passei a noite em claro.

Os lençóis grudaram em mim e eu me virei e me enrosquei neles. A certa altura, cheguei a me levantar e simplesmente ficar sentado na cozinha. Já passava das duas da manhã e, quando a Sra. Wolfe acordou para ir ao banheiro, foi ver quem estava lá.

— Oi — murmurei.

— O que está fazendo? — perguntou ela.

— Não consegui dormir.

— Bem, volte logo para a cama, sim?

Passei mais um tempo sentado à mesa da cozinha, ouvindo no rádio o programa de entrevistas ao vivo que conversava e discutia consigo mesmo. Octavia me ocupou durante aquela noite inteira, fazendo com que eu me perguntasse se ela estava sentada na cozinha dela, pensando em mim.

Talvez.

Talvez não.

De um jeito ou de outro, eu iria lá no dia seguinte, e as horas desapareciam mais devagar do que eu imaginava possível.

Voltei para a cama e esperei. Quando o sol surgiu, levantei-me com ele e, pouco a pouco, o dia passou por mim. A escola foi a mistura habitual de piadas, cretinos completos, empurrões e risadas aqui e ali.

Durante alguns ansiosos segundos da tarde, não tive certeza do sobrenome da Octavia e fiquei com medo de não conseguir achá-la na lista telefônica. Senti alívio ao me lembrar. Era Ash. Octavia Ash. Quando encontrei o endereço, verifiquei a rua no mapa e descobri que ficava a uns dez minutos a pé da estação, desde que eu não me perdesse.

Antes de sair, pulei a cerca e passei um tempo fazendo carinho no Miffy. De certo modo, eu estava nervoso. Nervoso para caramba. Pensei em tudo que poderia dar errado. O trem podia descarrilar. Talvez eu não conseguisse encontrar a casa certa. Eu podia ficar parado diante da casa errada. Considerei tudo isso enquanto afagava aquela bolota felpuda, que virara de barriga para cima e que, de algum modo, parecia sorrir enquanto eu a coçava.

— Deseje-me sorte, Miffy — pedi baixinho, ao me levantar para sair, mas tudo o que ele fez foi ficar de pé e me lançar um olhar de Não pare de fazer carinho, seu cretino preguiçoso. Mesmo assim, pulei a cerca, passei pela minha casa e saí. Deixei um bilhete, dizendo que talvez fosse à casa do Steve à noite, para que ninguém se preocupasse demais. (O provável era que eu acabasse mesmo passando por lá.)

Eu vestia o mesmo tipo de roupa de sempre. Jeans velhos, minha jaqueta impermeável preta, camiseta de time e meus sapatos surrados.

Antes de sair, fui ao banheiro e tentei impedir que meu cabelo ficasse arrepiado, mas isso é como tentar desafiar a gravidade. O cabelo fica espetado, haja o que houver. Volumoso como pelo de cachorro e sempre ligeiramente bagunçado. Nunca há muita coisa que eu possa fazer. E depois, pensei, devo procurar apenas ficar como estava ontem. Se ontem foi bom o bastante, deve ser bom o bastante hoje.

Estava resolvido. Eu estava a caminho.

Deixei a porta da entrada bater às minhas costas e a de tela chacoalhar. Foi como se elas me chutassem para fora da antiga vida que eu havia levado naquela casa. Eu estava sendo lançado no mundo, novo. O portão quebrado e torto rangeu ao se abrir, deixou que eu saísse, e depois eu o fechei delicadamente. Parti e, de um ponto mais adiante na rua, talvez a uns cinquenta metros de distância, olhei para trás por um segundo, para a casa onde morava. Não era mais a mesma. Nunca mais seria. Continuei a andar.

O trânsito da rua passou lentamente por mim e, em um dado momento, quando engarrafou de verdade, o passageiro de um táxi deu uma cusparada pela janela e o cuspe caiu perto dos meus pés.

— Caramba! — exclamou o sujeito. — Desculpe, companheiro.

Apenas sorri e retruquei:

— Não tem problema.

Não podia me dar ao luxo de me distrair. Não naquele dia. Eu havia farejado a pista de uma vida diferente e nada me desviaria dela. Eu a caçaria. Encontraria seu lugar dentro de mim. Iria achá-la, prová-la, devorá-la. O cara podia ter cuspido no meu rosto e eu limparia o cuspe e continuaria andando.

Não haveria distrações.

Nem arrependimentos.

A tarde ainda não havia caído quando cheguei à Estação Central, comprei meu bilhete e desci para o subsolo. Plataforma vinte e cinco.

Parado ali, esperei no fundo da plataforma até sentir o vento frio trazido pelo trem que avançava pelo túnel. Ele cercou meus ouvidos até o rugido me atravessar e se reduzir a um suspiro surdo, capenga.

Era um trem velho.

Um trem nojento.

No último vagão, na parte de baixo, um velho com um rádio escutava jazz. Sorriu para mim (evento raríssimo em qualquer forma de transporte público), e eu soube que tudo teria que correr bem naquele dia. Senti como se tivesse merecido isso.

Meus pensamentos deram guinadas junto com o trem.

Meu coração se conteve.

Ao chegar a Hurstville, levantei-me, saltei e, para meu espanto, encontrei a rua da Octavia sem o menor problema. Em geral, em matéria de senso de direção, sou um horror completo.

Caminhei.

Olhei para cada casa, tentando adivinhar qual delas era a de número treze na rua Howell.

Ao encontrá-la, descobri que era quase tão pequena quanto a minha casa, feita de tijolos vermelhos. Começava a escurecer e fiquei por ali, esperando e torcendo, com as mãos nos bolsos. Havia uma cerca e um portão, um gramado bem-aparado com um caminho. Comecei a me perguntar se ela sairia.

Vieram pessoas da estação.

Passaram por mim.

Por fim, quando a mesma escuridão da véspera apoderou-se da rua, dei as costas para a casa, me virei para a estrada e fiquei meio sentado, meio encostado na cerca. Minutos depois, ela veio.

Mal ouvi a porta da entrada se abrir ou os passos dela na minha direção, mas não houve dúvida quanto à sensação de sua presença às minhas costas quando Octavia parou perto de mim. Pude senti-la e imaginar seu coração batendo...

Ainda estremeço ao me lembrar da sensação de suas mãos frias no meu pescoço, e do toque de sua voz na minha pele.

— Oi, Cameron — cumprimentou ela, e eu me virei para olhá-la. — Obrigada por ter vindo.

— Tudo bem — retruquei, com a voz seca e rachada.

Lembro-me de ter sorrido, e meu coração nadou no próprio sangue. Já não havia como parar. Na minha cabeça, eu tinha passado mil vezes por momentos como aquele e, agora que um deles estava realmente acontecendo, não havia como estragá-lo. Eu não me permitiria.

Caminhei ao longo da cerca, passei pelo portão e, ao chegar até Octavia, peguei sua mão e a segurei.

Levei sua mão à boca e a beijei. Beijei os dedos e o pulso, com toda a delicadeza que meus lábios desajeitados conseguiram, e, quando olhei para seu rosto, percebi que isso nunca lhe havia acontecido. Acho que ela só havia sido tomada à força, e minha gentileza deve tê-la surpreendido.

Seus olhos se arregalaram.

A expressão de seu rosto tornou-se um pouquinho mais íntima.

Sua boca fundiu-se em um sorriso.

— Venha — disse ela, conduzindo-me para depois do portão. — Hoje não temos muito tempo.

E, quase nos tocando, saímos pela trilha.

Descemos a rua e fomos até um antigo parque, onde procurei dentro de mim mesmo coisas a dizer.

Não encontrei nada.

Só consegui pensar nas porcarias mais idiotas, como o tempo e coisas do gênero, mas não me reduziria a isso. Octavia, porém, continuou a sorrir para mim, dizendo-me em silêncio que não havia problema em ficar quieto. Tudo bem se eu não a conquistasse com histórias ou elogios ou qualquer outra coisa que dissesse só para dizer alguma coisa. Ela apenas caminhou e sorriu, mais contente no silêncio.

No parque, passamos um longo tempo sentados.

Ofereci-lhe minha jaqueta e a ajudei a vesti-la, mas, depois disso, não houve nada.

Nenhuma palavra.

Nada de nada.

Não sei o que mais eu esperava, porque não tinha absolutamente a menor ideia de como enfrentar aquilo. Não fazia ideia de como agir perto de uma garota, porque, para mim, seus desejos estavam completamente envoltos em mistério. Eu não tinha mesmo nenhuma ideia. Só sabia que a queria. Essa era a parte simples. Mas e saber de verdade o que fazer? Como eu poderia sequer tentar enfrentar uma coisa dessas? Você sabe me dizer?

Meu problema, acho, vinha de eu ter passado tanto tempo dentro da solidão. Eu sempre observava as garotas de longe, mal me aproximando o bastante para sentir seu perfume. É claro que as desejava, mas, apesar de me sentir péssimo por não tê-las de verdade, isso também trazia certo alívio. Não havia pressão. Incômodo. De certo modo, era mais fácil apenas imaginar como seria, em vez de enfrentar a realidade da coisa. Eu podia criar situações ideais e maneiras de agir que me fariam conquistá-las.

A gente pode fazer qualquer coisa quando não é real.

Quando é real, não há nada para conter a queda. Nada entre você e o chão, e, naquela noite no parque, eu nunca me sentira tão real. Nunca me sentira tão sem controle. Parecia ser como era e como sempre seria.

Antes, a vida tinha a ver com conquistar garotas (ou torcer para conseguir).

Não com conhecê-las.

Agora era muito diferente.

Agora tinha a ver com uma garota, e com descobrir o que fazer.

Pensei um pouco, tentando alcançar mentalmente a solução fugidia para o que fazer. As ideias me aprisionavam, deixando-me ali para refletir. No fim, tentei me convencer de que tudo correria bem. Só que nada corre por si só.

Tudo bem, falei a mim mesmo, tentando manter a compostura. Comecei até a listar as coisas que de fato fizera direito.

Eu tinha ido atrás dela no trem, na véspera.

Falara com ela e dissera que ficaria diante da casa dela.

Caramba, eu havia até beijado a mão dela.

Mas agora eu precisava falar, e não tinha nada para dizer.

Por que você não tem nada para dizer, seu cretino idiota?, perguntei a mim mesmo.

Supliquei dentro de mim.

Várias vezes.

Foi amarga a decepção, sentado com ela em um banco de parque infestado de farpas, pensando no que fazer em seguida.

Em dado momento, abri a boca, mas nada saiu.

No fim, tudo o que pude fazer foi olhar para ela e dizer:

— Desculpe, Octavia. Desculpe por ser tão estupidamente inútil.

Ela balançou a cabeça e vi que discordava de mim.

— Você não tem que falar nada, Cameron — disse ela, baixinho, e olhou para dentro de mim. — Você poderia nunca falar coisa alguma, e mesmo assim eu saberia que você tem um grande coração.

Foi aí que a noite explodiu de repente e o céu despencou em pedaços à minha volta.