224.
O abraço
José Anastácio da Cunha
«Alta rocha, sustém-me, que esmoreço!
De amor não sei se estou para expirar…
Como me anseia!… Enquanto não faleço,
com a noite quero aqui desabafar.
Ó meu, ó meu amor, aonde fugiste,
onde estou eu agora e onde estava?…
A alma começa a conhecer que existe,
que até agora sabia só que amava.
Não estive no mar quase afogado,
de inefável, angélica ternura?…
Respiro apenas… inda estou cercado
de estranha, grossa nuvem de luz pura.
De amor prodígios, inda não ouvidos,
que absorto sinto e que entender não sei!…
Solta-se-me a alma dos mortais sentidos,
ou acordo de um sonho?… Ah! não sonhei.
Não, não sonhei; que estes teus braços vejo
inda na acção de te abraçar pasmados!
Não sonhei, não; que inda o celeste beijo
gozo nos beiços mais que namorados.
Sinto estalar-me docemente o peito
com ímpetos de um coração que é teu;
coração que em amor se viu desfeito,
na doce vizinhança desse meu.
Oh! guarda, mundo vão, tua riqueza.
Que vale o ouro e prata que conténs?
À vista da virtude e da beleza,
que vale o que da sorte chamam bens?
Mortais, que ou da fortuna os grossos mares
com risco vosso e alheio mal cortais,
ou do vão fanatismo nos altares
ensanguentado incenso vil queimais;
Interesseiro vulgo dos amantes,
só de si realmente namorados,
e quantos, ou de maus, ou de ignorantes,
atrás dos vícios correm desgarrados!
Se é certo que, só vista, a formosura
da virtude emendara os viciosos,
oh! do mundo e de vós para ventura,
vede o meu bem — e sede virtuosos!
O feio, o negro fumo, o leve vento
da glória, que cuidais no mundo achar,
vereis desvanecer-se num momento,
à vista da de ouvi-la e a contemplar.
Pompas do mundo, gostos tão buscados,
que recreio encontrar em vós podemos,
se um noutro sempre e sempre embelezados,
excepto nós, do mundo nada vemos?
Se aqueles que o sublime, o só louvável
gosto de gosto dar nunca sentiram,
de nossos castos mimos a inefável
suprema glória viram!… — ah!… se a viram!…
Mas não; porque debalde esperaria
nosso amor abrandar almas tão duras;
e aprovação completa encontraria
entre anjos só e inteligências puras.
E não crês tu que um coro de amorosos
serafins sempre nos rodeia e ouve,
com os gentis espíritos ditosos
de alguns amantes, como nós… se os houve?
Se os houve!… Oh! cuidas tu que se acharia,
ou no mundo ou do mundo nos anais,
quem milagrosamente saberia
tanto e tão gentilmente amar jamais?
Não vês inda, de gosto sufocados,
um noutro nossos peitos esculpidos?
Não sentes nossos rostos tão chegados
— e ainda mais os corações unidos?
Oh! mais, mais do que unidos! Tu fizeste,
doce encanto, que eu fosse mais que teu.
Lembra, lembra-te quando me disseste:
— Meu bem, eu não sou tu?… Tu não és eu?
Faz de duas vizinhas gotas de água
uma só a invencível atracção;
forma amor em celeste, ardente frágua
de nossos corações um coração:
Mesma vontade, mesmo pensamento,
mesmos desejos, mesmo terno ardor;
somos, enfim, (que glória! que portento!)
não dois amantes, mas um mesmo amor.
Ó glória incompreensível!… quem me dera
palavras dignas do que amor me influi!
Ou as tuas, meu bem!… e então dissera
quanto num breve abraço amor inclui.
Num breve abraço, oh céus!… e porquê breve?
Sois bons, e até à morte não durou?!…
Tudo podeis, e a opor-se há quem se atreve
à vossa mão, que as almas nos ligou?!…
Ímpias leis e costumes dos humanos,
que um inocente abraço embaraçais,
tão diverso dos gostos vis, mundanos,
como de pejo as faces não corais?
Se de abraçar-te a glória aos céus e ao fado
peço, para antes e depois que expire,
no seio da virtude reclinado,
a que mais glórias quererão que aspire?
Sim, do terrestre corpo libertados,
Viver, enfim, (que amor, que o diz, não mente)
de Deus no seio iremos abraçados
doce, estreita, contínua, eternamente!»
Isto dizia um tão perfeito amante,
que num tempo presente nem passado,
não mostraram ainda semelhante
fábulas de poeta namorado.
No golfão de tão grata eternidade
com a contemplação se submergiu,
embebido na quase realidade,
até que a aurora ao sol a porta abriu.
O misérrimo, o amante mal sonhava
que, de dentro da horrenda escuridão
de uma nuvem infernal, já levantava
sobre ele a desventura a cruel mão.
Todo o seu gosto, que empregado tinha
no agrado do seu bem, todo o perdeu;
perdeu a glória de dizer: — é minha;
só se aviventa com dizer: — sou seu.