262.
A troca por vida

Manuel Gusmão

Para a Marta

Os vidros nada contam entre si, nenhuma

história de reflexos sequer. Não têm memória,

não transportam memórias, não recordam

os gestos das trocas, nem

a troca por vida. Apenas brilham os brilhos.

Fazem instável e movente uma constelação

acesa, por onde terão talvez passado os anjos: É como

uma casa dispersa e atravessada por um incêndio

negro, que teria murmurado a inquieta quietação

das coisas que anoitecem a tua vida.

Eis alguns: o pesa-papéis maciço, tosco e antigo

absorve o verde do caderno que guarda a lettera amorosa.

E então, no seu íntimo hialino, a flor carnívora

desaba em ondas, chove irisada

sobre o musgo de um jardim em miniatura dentro da noite.

Em frente e à esquerda, a taça azul escurece —

é assim que abre as cores dos restos que guarda

do mar; e a baixa altura voa contra a jarra: o castiçal

invertido? — dizias —, a pedra transparente e as suas três ondas

que verticais subissem esta noite branca.

Próximo, o copo alto que a Sara pintou

com os dedos da sua alegria forma um trio

com os outros vidros e canta alto

a brilhante dissonância das cores muito vivas.

Do outro lado do sol que nasce no candeeiro

se olhares quando vens da porta para esta mesa,

algo do céu de uma paisagem gravada

tinge no outro vidro a vaga nuvem que julgas

ver no cais gravado a negro e branco.

Como a lua no mar e os barcos na lua.

A nuvem azulada é um reflexo efémero

Aparece e desaparece no vidro e na gravura:

nuvem hesitante ou onda suspensa na noite

do caderno povoado. A Ana lê debruçada

sobre o medo desconhecido e a ternura

que espera a maravilha. Com estes vidros troca-se a vida

de quem os fez, pela vida de quem os deu ou

recebe. Há um ponto do mundo onde essas vidas

se poderiam encontrar. Aí os vidros fariam uma música:

tu. Recebe tu a música que eles fazem.

Voltas atrás. Ao princípio. Transcreves para

o caderno azul: — Não e sim: os vidros contam

uma história de reflexos na noite dos espelhos;

brilham um pequeno silêncio cintilante

coagulado na tinta que rapidamente seca.

As mãos que escrevem — cegas — cantam os vidros

os brilhos, as indecisas marcas da passagem dos anjos,

as pequenas ruínas das casas que habitaste,

os fósseis de uma teia de amores mortais.

E quando lêem a música, mudam de voz.