Introdução

Há várias maneiras possíveis de organizar e ordenar uma antologia, o que, evidentemente, se aplica também a uma antologia de poesia de amor. Pode, por exemplo, seguir-se um critério cronológico, por autores ou por épocas dos poemas; pode seguir-se um critério histórico e estilístico, ordenando-se os textos correspondentemente por épocas e por escolas; pode seguir-se um critério temático, surpreendendo as várias fases da relação amorosa, do avistamento e do enamoramento até à separação ou à morte, passando pela instância erótica e outras situações.

Todos estes métodos, e outros mais, têm sido utilizados e cada um tem os seus méritos. Mas aqui tratava-se de organizar um conjunto de 366 textos, conta cíclica, imediatamente relacionada com os dias do ano sem esquecer a bissextualidade. Já Petrarca assim fez, no seu Canzoniere. São também 366 os versículos do Livro do Amigo e do Amado, de Raimundo Lúlio. Por outro lado, o número 365 é relevante para a estrutura da Faerie Queen, de Spenser, e, como se sabe, para a das redondilhas «Sôbolos rios», de Camões. Quanto a estas últimas, Luciana Stegagno Picchio citava, aqui há uns anos, um passo de Gianfranco Folena sobre o Canzoniere petrarquiano, para caracterizá-las como «uma liturgia existencial do tempo circular, do eterno retorno sobre si mesmo, como um só ano feito de toda uma vida». Retenhamos esta ideia, porque ela interessa ao caso presente.

Muito mais recentemente, a Einaudi publicou o Lunario di fine millenio. 366 letture per il Duemila, em prosa e verso, organizado por Guido Davico Bonino (1999) e distribuindo os textos seleccionados pelos meses, de Janeiro a Dezembro.

Ou seja, também é possível organizar uma antologia que se estruture, não apenas segundo os meses e os dias, mas até em correlação com as estações do ano, o que, em se tratando de poesia de amor, seria mesmo mais uma possibilidade sugestiva…

Todavia, tendo assentado no número de 366 poemas, pareceu-me ser mais importante e mais interessante que o conjunto espelhasse o lado caleidoscópico e anarquicamente desmultiplicado da relação amorosa e das suas vicissitudes, dessa «explosão / de tantas sensações contraditórias», como David Mourão-Ferreira diz no seu «Soneto do cativo», independentemente de qualquer dos critérios que acima ficaram referidos.

A sequência dos poemas foi, antes, modelada caso a caso, de acordo com a ideia de que, em minha opinião e no meu gosto, «ficava bem assim». Este assumido impressionismo foi-se organizando sucessivamente por relações de contiguidade ou oposição, de semelhança ou de diferença de registo, de saltos no tempo ou de proximidade de gerações, de coincidência ou de alternância de perspectivas. Procurei chegar assim, a navegar mais ou menos à vista, a 366 variações sobre o tema do amor. Como justificação teórica, é frouxa, até porque isto não tem nada de… justificação teórica, mas sim e apenas de explicação de um processo. Mas, exactamente, eu quis apresentar o conjunto sem me preocupar com esquemas, teorias, classificações, sistematizações, agendas ou calendários hipotéticos, propostas de leitura orientada, ou coisa que o valha.

Parti do princípio de que, sempre ou quase sempre, cada poema de amor seduz por si e vale por si e em si, sem prejuízo das inúmeras relações que, como texto literário, ele possa estabelecer com outros textos, com outras áreas da criação artística e com a nossa própria experiência humana. Espero que o resultado seja eficaz e tenha o efeito de provocar uma leitura aberta, irisada e saudavelmente arbitrária, da poesia de amor aqui incluída, a partir de qualquer das suas páginas, em qualquer direcção e nos múltiplos percursos que assim ficam desencravados e desespartilhados ao longo do livro.

Aos textos seleccionados de poetas portugueses acrescentei alguns outros, de poetas brasileiros, e também uma série de poemas de vários autores que traduzi para português. São vozes de todas as épocas e de muitos lugares. Mas é evidente que muitas outras escolhas, ordenações e combinatórias seriam possíveis. Assim como «amor não há feito» (já dizia Alexandre O’Neill), antologias de poesia de amor, nesse sentido daquilo que a cada um dos leitores dá o prazer fascinado da leitura a partir de um elenco de preferências, também não. Podem sempre recomeçar-se e refazer-se como alternativas às já existentes. Só espero que, movendo-se no interior desta, o leitor possa criar também a sua própria antologia e que isso lhe seja ensejo activo para pensamentos e emoções, exaltações e divertimentos, e até, embora isso esteja completamente fora de moda, para qualquer coisa que ainda tenha a ver com lágrimas e suspiros.

Vasco Graça Moura