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Voltei à livraria com o pensamento, com o receio, com a esperança de matar Calisser. Fui até à cozinha e tirei da gaveta dos talheres uma faca grande. Uma vez tinha visto um carniceiro perseguir um ladrão pelos corredores do Mercado Spinetto com uma faca semelhante. Apesar dos gritos e do avental manchado de sangue, as pessoas desviavam-se com um sorriso. As armas grandes pertencem à comédia, nunca à tragédia, que prefere os objetos mais íntimos, mais fáceis de esconder: um pequeno punhal, uma bebida envenenada, um lenço de seda.

Quanto mais brincava com a faca, numa finta imaginária, como se me tivesse transformado no derradeiro discípulo de Montiel, mais longínquo me parecia o crime: o ensaio de uma obra de teatro que vai revelando, a cada repetição, a sua inconsistência e a sua banalidade. A lâmina triangular era grande; o cabo, escuro. Uma vez tinha visto Calisser cortar uma laranja com esta lâmina afiada. Como pode matar uma faca que foi usada num ato tão trivial? Abandonei a faca ao seu destino doméstico: figos, laranjas, carne crua e restantes alimentos da dieta de um antiquário. Para o prato principal necessitavam-se instrumentos mais delicados.

***

Juntei todo o dinheiro que tinha. Esvaziei também a caixa da livraria: uma caixa de metal com divisões internas que se fechava com uma chavezinha da qual eu tinha uma cópia. Como se tivesse previsto a minha partida, Calisser tinha deixado, entre lapiseiras partidas e lápis pigmeus, grossos maços de notas, presos com elásticos. Levei também alguns livros que teria facilidade em vender nas tocas de bibliófilos. Uma primeira edição de Las fuerzas oscuras, de Lugones; uma Bíblia impressa em 1798 numa tipografia lendária de Subiaco, em Itália, e La sepultura de Miguel de Cervantes, do Marquês de Molins, escrito por encomenda da Academia Espanhola, em 1870. Também poderia vender o rubi do alfinete de ouro, se fosse verdadeiro.

Levei comigo algumas folhas de papel de carta com o monograma de La Fortaleza. Pensava usar o papel para escrever à minha mãe mas, nos dias seguintes, por mais que tivesse tentado, não encontrava as palavras. Tinha sentido muitas vezes este desassossego, esta incapacidade de escrever alguma coisa para além do cabeçalho, mas agora quase não conseguia escrever a data, como se tudo, até o nome da cidade, fosse uma mentira. Com um esforço enorme consegui escrever algumas linhas, com uma letra que já não parecia a minha, e deitei a carta num marco de correio. Foi essa a última vez que escrevi à minha mãe, Calle Belgrano 327, Los Álamos. No sobrescrito não pus o remetente.

 

 

Procurei uma pensão perto do Abasto. Não discuti o preço. Um quarto andar sem elevador. Estava calor, à noite não conseguia dormir apesar das janelas abertas. Passadas duas semanas mudei de sítio e, depois disso, as mudanças tornaram-se um hábito. Alugava um quarto por três semanas e deixava-o. Preferia que a minha cara não se tornasse muito familiar para ninguém. Nesse verão aprendi que os nomes das pensões revelavam indícios sobre a sua verdadeira natureza. Assim, as que tinham nomes de famílias ou de cidades sem pretensões (Pensão Ricotti, Pensão Lombardo, Salta, Azul, Tandil) eram para trabalhadores, às vezes para famílias, mas as que precisavam de fazer do seu nome uma promessa mundana («Paris», «Monte Carlo», «Nice», «Veneza») tinham um ambiente prostibular. Eram estas últimas que eu preferia.

 

 

Foi durante esses dias que passei longe da livraria que comecei a testar se também conseguia, tal como os outros antiquários, usar o carmen. Estava sozinho, tinha de saber de que armas dispunha. Ao princípio pensara que, para fazer com que alguém mergulhasse durante alguns minutos no passado – como Bruno Stazzi tinha feito comigo no Hotel Lucerna – seria necessário remeter-me a ensaios contínuos, ao longo dos anos; no entanto resultou, assim que comecei a usá-lo mais como uma fatalidade biológica que como uma arma psíquica. Lembro-me de que experimentei primeiro com uma mulher já velha, que andava com dificuldade. Pensei que com alguém mais fraco o carmen funcionaria melhor. Passando-lhe ao lado, na rua deserta, olhei-a nos olhos, sem pensamentos, quase sem vontade; vi como, quase de imediato, os olhos da mulher se enchiam de lágrimas. Ela vira alguma coisa, mas eu não conseguia saber que instante do seu passado tinha encarnado. Foram só alguns segundos e depressa recuperou. Nessa altura, eu já me tinha distanciado. Nos dias seguintes efetuei novos ensaios e todos eles deram bons resultados. No entanto, a experiência do carmen não deixava em mim nenhuma sensação de triunfo mas antes um vestígio de perda e de melancolia, como se esse passado que eu tinha encarnado para eles, e que era invisível para mim, me tivesse deixado também uma marca.

***

Dez dias depois de ter abandonado a livraria fui visitar o meu tio. Eram oito horas e lembrei-me de que podíamos ir jantar juntos. A campainha não funcionava e, apesar de o meu tio arranjar tudo, não se tinha dado ao trabalho de consertá-la. Estava quase a bater para que abrisse, mas não me atrevi. Olhei através da janela. No fundo da oficina, em camisola interior, como sempre, Emilio Lebrón consertava uma máquina, ouvia os resultados dos jogos, bebia mate de uma pequena chaleira pousada num fogareiro. Um grito bastaria, mas fiquei a observá-lo em silêncio. Até a pessoa mais comum, quando está sozinha, quando pensa que ninguém a observa, se transforma num enigma: ou faz um gesto inesperado, ou murmura alguma coisa, ou cobre a cara com desespero. O meu tio limitava-se a responder ao rádio e, de quando em vez, arrancava os pelos das sobrancelhas. Também o meu tio, o mais cordato dos homens, parecia um louco quando estava sozinho.

Vi o meu reflexo no vidro e achei-me pálido, extenuado, com as maçãs do rosto salientes. O meu tio far-me-ia muitas perguntas, dar-me-ia muitos conselhos. Quereria saber o que não corria bem, que falta escondia.

Em silêncio, despedi-me do tio Emilio, especialista em consertar tudo o que tinha conserto.

 

 

À noite andava durante horas, percorria o centro e as ruas do Sul; às vezes chegava até Puente Alsina. Vestia quase sempre um casaco azul, leve, uma camisa aberta, uns mocassins gastos. Uma noite dei comigo a seguir uma mulher de vestido verde; segui-a à distância, por uma avenida, depois por uma rua lateral, frondosa e escura. Ao levar a mão ao bolso, encontrei o alfinete de ouro. Não me lembrava de o ter posto aí. A mulher, ainda sem me ver, ouviu os meus passos, que repetiam com gravidade os seus, e apressou-se, assustada e agora frágil com os seus sapatos altos, sonoros, pouco estáveis. Perguntei a mim próprio se estaria de facto a persegui-la. Voltei com passos lentos à avenida.

Na quermesse de Los Álamos, quando não se ganhava nada nos jogos, davam um prémio de consolação, qualquer coisa pequena e gasta, usada, o que ninguém queria. Enquanto ouvia os ruídos vindos dos outros quartos (as mulheres que faziam o seu trabalho, algum casal a discutir, um homem que rezava o terço), bebi o meu prémio de consolação, as últimas gotas do elixir.

 

 

Em tardes e humilhações sucessivas, visitei Marengo, visitei Granier, visitei Lalika: nenhum deles me quis dar uma garrafa de elixir. Que falasse com Calisser, disseram. Decidi tentar com o padre Larra. Vira-o uma única vez, tinha-lhe levado alguns livros em latim. Vivia num prédio que fora um mosteiro, em Constitución; a ordem a que pertencia tinha abandonado o local e mudara-se para Córdova, e Larra tinha ficado sozinho no edifício, na companhia de um porteiro.

O Sol já se tinha escondido entre os prédios. Começava o verão, a estação mais odiada pelos antiquários. Bati numa pequena porta de metal. Espreitou o porteiro, um homem baixo, de orelhas grandes e pontiagudas. Quando lhe disse que vinha ver o padre, afastou-se para me deixar passar. Pôs-me à espera num corredor acabado de lavar. As paredes grossas conservavam o edifício fresco. O padre Larra apareceu imediatamente, vestido com uma espécie de velho pijama cinzento e com as mãos sujas de terra.

– Entre, entre, estava a fazer alguns trabalhos de jardinagem. É uma época boa para os enxertos. Não lhe pergunto pelo Francês porque sei que já não trabalha para ele.

Dirigimo-nos para um dos quatro jardins interiores que o edifício escondia. Eu não sabia a que tarefas se podia dedicar o padre, uma vez que as plantas pareciam crescer sem qualquer tipo de ordem. Ele olhava orgulhoso para as exuberantes ervas daninhas, como se houvesse um método por detrás daquelas plantas rasteiras que invadiam o corredor, daquelas árvores que cruzavam os seus ramos como se procurassem o nó perfeito, daqueles cardos cobertos de espinhos.

– Esta aqui é uma planta que os camponeses usavam para arrancar os espinhos das patas dos animais. Atribuíam-lhe poderes milagrosos. E aquela, a de flor violeta…

– O senhor continua a ser padre?

– A ordenação é um sacramento. Não pode ser desfeito. Nem sequer por isto que temos em comum.

– Mas continua a confessar e a dar missa?

– Não, evidentemente que não.

– Proibiram-no?

– Eu próprio renunciei a isso. A doença separa-nos dos outros. A compaixão exige o sentido da novidade e a repetição incessante anula o interesse pelo próximo. Acredite, tudo se repete, como se as pessoas obedecessem a uma série de padrões. A Igreja é universal, mas eu não posso dizer que a minha comunidade seja a de todos os homens. A minha comunidade agora é a daqueles que são como eu. Os outros são como pessoas que passam pela rua e que vejo através de uma janela. Estão aí, mas não estão totalmente.

– Mas continua a viver numa propriedade da Igreja.

– E isso significa que não sou um maldito? A doença é um sinal do sagrado ou da impossibilidade do sagrado. É isso que tenho de resolver, é isso que não consigo resolver. Uma pessoa passa toda a vida à procura de uma manifestação do sobrenatural para sustentar a sua fé. Que essa manifestação seja maligna, não deixa de ser uma prova desse outro mundo. Mas veio cá porquê? Para me perguntar estas coisas? Quer saber se pode ser ordenado sacerdote?

Larra sorria. Sabia porque estava ali.

– Deixei de ver os outros. Pensei que o senhor podia ajudar-me.

– Vá ter com Calisser. Ele ajudá-lo-á. É ele o responsável.

– Ele fez uma coisa imperdoável.

– Há coisas imperdoáveis, mas você está longe de as conceber e Calisser de as fazer.

Larra arrancou uma erva pela raiz.

– Agora acha que tudo é possível, mas nós não fomos feitos para estarmos completamente sós. Podemos acabar a caçar como animais. Nessa altura, sim, poderemos dizer que aquilo que nos aconteceu é uma maldição. Volte para a livraria. Volte para a comunidade dos antiquários. Por mais estranha e desviada que seja, uma comunidade tem normas. A sede daquele que está só é angústia e morte.

Quando já nos dirigíamos para a saída, acabei por dizer o que tinha vindo dizer:

– Preciso do elixir.

– Não lho posso dar – respondeu imediatamente, sem pensar.

– Vou acabar por fazer uma loucura.

– E nessa altura irão atrás de si. Mesmo que Calisser tentasse contê-los, condená-lo-iam.

Fez-me um sinal, pedindo silêncio. O seu ajudante, o homem minúsculo de grandes orelhas, passou perto de nós. Afastámo-nos.

– Este edifício tem uma acústica curiosa e não quero que o bom Ismael, sacristão e duende, oiça coisas que perturbem a sua fé. Não diga a Calisser que lhe falei disto, mas o Numismático cumpre algumas tarefas em troca de o deixarmos em paz. Encontrou-o alguma vez?

– Não, só ouvi falar dele. Pensava que era como todos os outros…

– Só ouviu falar dele. Vejo que Calisser lhe deu algumas lições, mas não lhe explicou o mais importante. Não, ele não é como todos os outros. Julga-se um guardião, um custódio extramuros. Eu tenho a certeza de que Calisser não o perde de vista, que comunica com ele. O Numismático é difícil de localizar porque nunca está um mês inteiro no mesmo sítio. Deveríamos aprender com ele: rodeámo-nos de móveis, de plantas exóticas, de livros… Ele tem apenas algumas moedas. Se fôssemos cautelosos, tudo o que temos de valor deveria caber-nos nos bolsos. Volte para a livraria.

Pensei no pescoço de Luisa, na gota de sangue, na joia imaginária que voltava a mim todas as noites, inesgotável.

– Não posso voltar para junto de Calisser. Até pensei em matá-lo.

– A mim ensinaram-me que há pecados de pensamento, obra, palavra e omissão. Mas eu não acredito no pecado do pensamento, por mais terrível que seja. Nem sequer no pecado da palavra. Só há mal no que fazemos e no que deixamos de fazer. Garanto-lhe que o seu pensamento não deixou feridas importantes em Calisser. Pode voltar.

– Dê-me uma garrafa. Farei com que dure o mais que puder.

– Não.

Que regulamento invisível me condenava à sede, às fantasias criminosas? Aproximei-me das plantas enleadas e agarrei num ramo cheio de espinhos. Puxei pela planta como se quisesse arrancá-la. Deixei que os espinhos me penetrassem na carne. Senti as raízes começarem a ceder…

– O que está a fazer? Espere, espere…

Não era a minha mão, que começava a sangrar, que o preocupava; preocupava-o a roseira silvestre que estava a arrancar. Foi-se embora, apressado, e pensei que ia pedir ajuda ao sacristão. Regressou com uma garrafa cheia até pouco mais do meio.

– Ouviu falar dos pessimistas que veem a garrafa meio vazia e dos otimistas, que a veem meio cheia? Tratando-se do elixir, a garrafa está sempre meio vazia. Não se esqueça disso.

Acompanhou-me até à saída. Passámos junto de uma pequena capela. Ismael, o porteiro minúsculo, estava de joelhos num dos genuflexórios. Tinha-me custado encontrar forças para procurar Larra e tudo o que levava era uma garrafa cheia até meio. Tê-la-ia partido na cabeça dele. Perguntei:

– Não me vai aconselhar uma oração, padre?

– Não há orações para nós.

– Pensei que o senhor rezava.

A porta estava aberta. O padre Larra encostou-se ao umbral. Do outro lado, na noite acabada de cair, passavam os camiões que rumavam ao sul.

– Há muitos anos fui a uma das nossas missões na China. Fiquei lá cinco anos. Havia um sacristão que me falava sempre de Confúcio. Passava o tempo a limpar as imagens e, cada vez que me via, punha-se a conversar. Eu pensava: há milhões e milhões de chineses, todos eles são calados, e o único charlatão calha-me precisamente a mim. Uma vez contou-me que, quando o sábio estava a morrer, os seus discípulos o rodearam, aflitos, perguntando-lhe se queria que lhe trouxessem uma coisa ou outra. Mas Confúcio não precisava de nada. Não queria água, arroz, vinho? Nada. Não queria flores no quarto ou que trouxessem a sua irmã? Nada. Na última noite perguntaram-lhe se queria que dissessem uma prece por ele. Confúcio respondeu: «A minha prece é a minha vida.»

– E a sua vida é a sua prece, padre?

O sacerdote começou a fechar a porta.

– Uma longa prece ou uma longa blasfémia. É isso que tento descobrir.

***

A garrafa que Larra me dera não ia durar para sempre. Era necessário fazer planos. Não queria que a sede me apanhasse de surpresa, não queria acabar a atacar às cegas, sem ter em conta os perigos. No tempo livre que o comércio de livros me deixava, comecei a ler um manual de anestesiologia e a estudar as características dos soporíferos. Na Pensão Tandil fiz uma certa amizade com um boticário chamado Marone, estudante de farmácia, que, quando lhe mencionei o meu interesse pelo assunto, se ofereceu para me vender os fármacos a preço baixo. Roubava-os de uma grande farmácia do centro, onde trabalhava. Eu justificava o meu interesse com insónias hipotéticas, que as minhas caminhadas noturnas tornavam verosímeis. A minha insistência, no entanto, fê-lo desconfiar:

– Se te queres matar, não confies nos soporíferos. O melhor é um tiro. Mas não na cabeça, na boca.

Arranjei uma malinha de médico para guardar os frascos que Marone me arranjava. Comprei três seringas de diversos tamanhos e comecei a praticar em laranjas. No entanto, não me atrevia a começar. Quanto mais aprendia, quanto mais desenvolvido estava o sistema que utilizaria, menos disposto estava a pô-lo em prática. Que perfeitos são sempre os planos, tão livres de pormenores desnecessários e das impurezas do acaso!

Durante dias, em caminhadas longas e rituais, planeei o meu primeiro ataque. Estava decidido. O melhor era escolher uma das mulheres que costumavam estar à espera nas esquinas. As mulheres sempre nas esquinas e os hotéis sempre a meio do quarteirão, onde a luz dos candeeiros não chegava. Não se davam bem com a polícia e era pouco provável que denunciassem o ataque. Decidi que a operação seria assim: um pano embebido em éter para os primeiros minutos; uma vez adormecida, o narcótico em forma intravenosa.

Demorei a eleger a primeira. Via-as esperar pelos clientes, sob os candeeiros, sem conseguir decidir-me por uma ou por outra, sentindo-me como um adolescente antes do seu primeiro baile. Por outro lado, uma espécie de consciência de pecado levava-me a preferir a mais impessoal, a que não me comovesse com as suas possíveis feridas, que julgava inevitáveis. Finalmente decidi-me por uma mulher alta, que trabalhava nos arredores do mercado das flores. O cabelo pintado de louro e a pele mais branca que as outras. Pediu-me um cigarro, eu não tinha; sem vontade, levou-me a um hotel que ficava a meio quarteirão de distância, sem cartaz que o identificasse. Fiz o possível para que o homem da receção não me visse a cara, mas eu próprio não queria ver nada, não queria ter recordações dessa noite. (Observo com frequência que as crianças, para serem invisíveis, tapam os olhos.) Oxalá algum dia desfrutasse do verdadeiro poder dos antiquários: o de modificar as recordações e apagar o passado. Nessa altura trabalharia até não deixar rasto dessa noite, da escada estreita que subia até ao quarto ruinoso, da madeira apodrecida do chão, da camada de pó que cobria a única cadeira.

Pendia do teto uma lâmpada de 40. A mulher parecia adormecida e isso ajudou-me: que o nosso fosse um pacto entre sonâmbulos. Queria fazê-lo antes que ela dissesse alguma coisa, antes que a aura da impessoalidade fosse quebrada por alguma palavra. Na rua somos sombras que passam, mas chega uma altura em que nos transformamos em pessoas. Quando falou, não saiu felizmente da sua monotonia e do seu vazio: enumerava uma litania de serviços, durações, tarifas. Não bastava para a tornar real. Eu queria esquecer-me de que estava com ela, queria fechar os olhos e reviver a cena preciosa e terrível da casa Balacco. Dei-lhe algumas notas para a distrair, quando ela abriu a carteira agarrei-a pela nuca e aproximei-lhe da cara o pano com éter. Ao princípio lutou e tive de comprimir o pano para que não gritasse. Estive quase a asfixiá-la. Que garantia tinha eu de que o éter funcionaria? Cravou-me as unhas no braço e agitou-se como uma possessa. Finalmente, quando estava prestes a bater-lhe e a fugir, caiu adormecida. O pano ficou manchado de batom.

A primeira picadela não encontrou a veia; a segunda, sim. Tinha estudado cuidadosamente a dose necessária. Devido à altura da mulher, acrescentei um pouco mais. Uma vez deitada na cama, medi-lhe o pulso: normal. Fiquei ao seu lado, sentado na cadeira: a mulher adormecida era como uma obra laboriosamente conseguida através de uma meditada alucinação. Enterrei a ponta do alfinete de ouro no pescoço e a gota de sangue repetiu o rubi do alfinete.

 

 

Soube pelos antiquários mais experientes que, com o tempo, se dá uma separação entre os instintos sexuais e a sede primordial. Mas eu ainda não a vivera. Assim que sentia o sangue na boca, caía sobre as mulheres com um entusiasmo cego e um furor progressivo, impaciente por descobrir a inevitável deceção: que não fossem iguais a Luisa. Era um carmen imperfeito, uma transferência acidentada para o passado, em que tentava ignorar os pormenores que me separavam da noite primeira: fechava os olhos e concentrava-me no sabor do sangue para não sucumbir ao perfume barato, ao cheiro a desinfetante dos quartos, aos ruídos das tábuas que rangiam, ao rádio dos quartos vizinhos. Embora fosse adquirindo com o tempo um maior controlo, eram habituais as marcas de dentadas, as nódoas negras provocadas pela força das minhas mãos. Emergia de cada ataque com uma sensação de culpa e de náusea; e a mulher inerte, com as roupas rasgadas, já não apresentava qualquer sinal de semelhança com Luisa, como se o ataque não tivesse outra missão senão desmascará-la. Nessa altura lavava cuidadosamente a cara e as mãos e esgueirava-me até ao meu quarto de pensão. E prometia a mim próprio – a saciedade é irmã da culpa – não voltar a fazê-lo.

Às vezes, do sono, olhavam para mim. Uma ou outra chegou a bater-me ou a arranhar-me a cara sem chegar a acordar. Uma paraguaia começou a ter convulsões e tive de chamar uma ambulância, do telefone de um bar. Não me atrevi a averiguar o que lhe acontecera. Deixava-lhes sempre dinheiro como pagamento pelas feridas, pelo entorpecimento dos tranquilizantes, pelo medo, pela humilhação.

 

 

Calisser tinha sido um mestre refinado na arte de vender livros velhos, e eu fora um aluno atento. Tinha tentado evitar os bibliófilos e livreiros com quem Calisser trabalhava, mas resignei-me a ir aos leilões de Hilario Clausen. Gordo, de pele clara, imberbe, Clausen estava sempre a sorrir enquanto os seus olhos, vagamente aflitos, desmentiam o sorriso, como se anunciassem que também ele, apesar do seu interesse comercial, reservava um fundo de ensimesmamento e de angústia. Clausen instalava-se na casa de cuja biblioteca tinha de se desfazer e aí mesmo leiloava os livros com um ar de urgência, como se assuntos mais importantes esperassem por ele noutro sítio. O seu verdadeiro escritório era a sua pasta: maços de notas presos com elásticos, uma gravata azul já com nó que guardava até ao momento de dar início ao leilão e um caderno escolar onde anotava os resultados de cada lote. Na falta de um daqueles martelos que se veem nos leilões, e que dão ao leiloeiro um ar de juiz, usava um pequeno martelo de brincar, que tinha forrado com uma tira de borracha de pneu para que a pequena cabeça de metal não danificasse as secretárias onde tinha de trabalhar.

Quando herdeiros desconsolados queriam desfazer-se de alguma biblioteca, chamavam Clausen, que atribuía uma licitação base aos livros e depois convocava os seus contactos. Fazia as reuniões aos sábados. A mãe dele preparava alfajores de maisena ou bolachinhas de doce de batata e fornecia termos de chá, escuro e doce. Clausen afirmava que a mãe se dedicava à pastelaria alemã. Anunciava, por exemplo:

– Hoje a minha mãe preparou quittenbrote-strudel. – E algum livreiro, baixinho, esclarecia ao neófito: «Pastafrola3

Depois de cada reunião, enquanto guardava as suas exageradas comissões, Clausen comentava:

– Isto é mais uma reunião social que outra coisa. Os negócios são um pretexto para que aqueles que amam os livros se juntem.

Quando os livros a leiloar o justificavam, mandava imprimir pequenos catálogos onde exagerava a singularidade dos lotes. A essas reuniões nunca faltava um amigo de Clausen, um homem mirrado com braços compridos, que tratava de fazer subir as ofertas para aumentar o interesse. Estávamos todos a par de que não era nenhum livreiro, mas o facto de Clausen oferecer esse trabalho a alguém visivelmente inútil mostrava os bons sentimentos do leiloeiro.

Durante todo o verão de 52, Clausen não deu notícias de nenhum leilão, mas em abril regressou para exterminar a biblioteca do professor Alves Roca, abundante em tratados sobre mitologia. O seu próprio livro, O Reino de Plutão, tinha merecido na década de 20 um artigo de Georges Dumézil. No casarão dos Alves Roca, um petit hôtel de Barrio Norte, a quatro quarteirões da casa Balacco, tinha-se juntado mais gente do que o costume.

– O defunto também colecionava moedas – disse-me Clausen à entrada. – E os numismáticos não perdem uma.

Clausen estava feliz. Calculava as comissões que lhe deixariam aqueles ávidos assistentes. Sentou-se atrás de uma secretária e anunciou:

 

 

 

– A coleção de moedas do doutor Alves Roca será leiloada na próxima semana. – Ouviu-se um murmúrio de deceção. – Hoje trataremos do lote de mitologia e de uma parte dos livros de numismática – disse Clausen. Bibliófilos, livreiros e numismáticos, que tinham ocupado cadeiras e poltronas, entreolhavam-se com receio. – A afluência foi excecional, peço-vos desculpa por as delicatessen da minha mãe não terem sido suficientes. É a primeira vez que isto acontece.

Ao meu lado sentou-se um homem robusto, de óculos redondos, mal barbeado. Tirou o chapéu de coco que levava e pousou-o no colo. Sobre o casaco usava mangas de alpaca, que já tinham sido brancas e que agora, prestes a desfazerem-se, estavam remendadas e amareladas. Ao instalar-se na cadeira, uma moeda caiu-lhe do bolso. Começou a rolar e eu agarrei-a antes que desaparecesse sob os pés de madeira. Olhei para ela: a efígie de um rei barbudo, tão apagado como se reinasse num país de neblina.

– Deve valer bastante – disse-lhe, devolvendo-a.

– Oh, não, deram-ma de troco quando comprei umas maçãs. Nem olhei mais para ela. Sabe que se diz que, se virmos duas vezes no mesmo dia a mesma moeda, isso é sinal de má sorte? Ou de aviso, se preferir.

Estendeu-me a mão. Reconheci a pele fria dos antiquários. Calisser tê-lo-ia enviado?

– Se não veio pela coleção, veio pelos livros?

– Não sou adepto da leitura. Além disso, o que podem ensinar-nos de mitologia, a nós, que somos tão irreais como faunos e sátiros? Vim porque queria conhecê-lo.

– Porquê a mim?

– As caras novas não são habituais. Você é jovem e está num mundo de velhos.

– Como sabia que eu viria?

Encolheu os ombros. A sala começou a parecer-me asfixiante.

– Não se distraia por minha causa. Fique atento, fique atento. Um segundo de distração e perde uma pechincha.

Parecia-me que o outro falava aos gritos, que todos o ouviam, e, no entanto, ninguém reparava em nada. Levantei-me com a intenção de me ir embora, mas ele reteve-me.

– Espere, vai perder o lote? Ninguém sai a meio de um leilão. É um sinal de desinteresse, de desprezo. Espere pela pausa. Cumpra as regras.

Tornei a sentar-me. O homem disse:

– Mereço privilégios porque sou meticuloso, porque sou invisível. Se me enganasse, quanto tempo julga que demorariam a fazer-me uma visita de cortesia? Você, pelo contrário, abriu as portas ao escândalo.

– Não deixo marcas.

– Não leio livros, mas leio a página policial dos jornais. São as únicas notícias que me interessam: roubos, assassinatos, violações. Ainda não vi o seu nome, mas já vi as suas marcas.

– Acha que a polícia sabe de alguma coisa?

– Não pense na polícia. Pense nos antiquários. Podem avisar-me a mim. Podem fazê-lo eles próprios.

– A próxima vez que o vir, saberei o que me espera.

– Se lhe serve de consolo, dir-lhe-ei que não é coisa que me faça feliz. Mas os seus erros são tantos, que não será necessário fazer-lhe uma visita. Bastarão os camponeses com archotes.

– Quem?

– Eu chamo-lhes assim porque sou fã do cinematógrafo. Refiro-me aos homens comuns, aos homens normais. Não viu aqueles filmes do Frankenstein, do lobisomem? Não viu Karloff, Lugosi, Basil Rathbone? Há sempre um momento em que os camponeses com archotes se exaltam e rodeiam o castelo. Tenha cuidado com os camponeses com archotes.

Levantou-se, verificou se tinha a camisa dentro das calças, ajeitou o nó da gravata sobre a camisa suja e foi-se embora.

Clausen dirigia o leilão com entusiasmo. Apercebera-se de que os numismáticos eram mais generosos do que os livreiros. É mais fácil gastar moedas a comprar moedas que a comprar livros. Consegui a bom preço uma primeira edição de Los que pasaban, de Paul Groussac, e também me fui embora. Ao chegar à rua verifiquei se o Numismático não estava por perto.

Quando cheguei à pensão encontrei, em cima da cama, uma moeda antiga. Fiquei a olhar para a efígie do rei barbudo e apagado.

 

 

Dias inteiros sem falar com ninguém. Nas horas em que o trabalho não me distraía, permanecia deitado na cama ou andava sem parar. Tinha deixado de ler. Ligados uns aos outros através de subentendidos, de passagens obscuras, de parágrafos fora de contexto, os livros levavam-me a ter pensamentos malignos, tristes, destrutivos. Só prestava atenção aos detalhes dos livros que me caíam nas mãos: buraquinhos de traça, marcas dos cortes no papel, assinaturas desbotadas, anotações a lápis dos antigos donos. Apesar da minha apatia, as minhas transações comerciais eram cada vez mais bem-sucedidas; pedia valores altos e os outros aceitavam-nos. Quando calhava comprar uma biblioteca inteira, já não precisava de ir aos domingos às sete da tarde, como Calisser recomendava. Apercebia-me de que os parentes estavam dispostos a aceitar uma miséria desde que desaparecesse das suas vidas.

Comecei a desenvolver uma mania com a roupa. Quando uma mancha de sangue caía sobre alguma peça de roupa, não tentava removê-la. Desfazia-me dessa peça e ia a uma loja substituí-la. Escolhia as lojas do centro – grandes e anónimas – e depois deixava a minha roupa na rua, dobrada e embrulhada em papel de seda. Às vezes via os mendigos do bairro vestidos com a roupa abandonada, todos iguais, fardados, como que esfarrapados a dobrar. Vestia-me sempre de igual: um casaco leve azul, de um tecido que imitava o linho, uma camisa branca, uma gravata azul com riscas amarelas. Também usava um impermeável leve de cor cinzenta.

 

 

Os ataques depressa se transformaram numa rotina. E essa rotina, embora me desse alguma confiança, também ma tirava. Era fácil ver que o perigo era cumulativo: quanto mais vezes efetuasse o meu ritual, mais perigo havia de me descobrirem. Mudava de bairro, mudava de pensão, mas com o tempo ia esgotando as possibilidades. Por outro lado, e os especialistas sabem-no bem, em todos os atos criminosos, por mais que se queira escolher caminhos diferentes, tende-se a repetir certos padrões. Desta forma, o criminoso vê-se perante dois perigos simétricos: o da repetição, que pode deixar indícios acerca da sua identidade, e o da inovação. Nunca faças nada que já tenhas feito, nunca faças uma coisa pela primeira vez.

Numa quarta-feira à noite entrei num hotel de Constitución com uma mulher de cabelo ruivo que não parava de falar. Foi um alívio aproximar-lhe da cara o lenço embebido em clorofórmio (tinha verificado que funcionava melhor que o éter). Quase não resistiu. Com muita frequência, as coisas que correm mal começam bem e, um segundo antes de cair na armadilha, dizemos a nós próprios que fácil é a vida. Estendi-a na cama e pus-me a preparar a injeção, para garantir o seu sono. Nisto ela deu um grito. Um guincho agudo, capaz de atravessar as paredes e de percorrer os corredores. Caiu adormecida de imediato mas, segundos depois do grito, bateram à porta. Escondi o lenço e a seringa e permaneci junto da porta, à espera de que as pancadas cessassem. Mas repetiram-se, idênticas, calmas. Abri um pouco a porta e vi o que em princípio me pareceu (havia pouca luz) uma criança de camisa e gravata. Abri mais um pouco para ver o que o miúdo queria e nessa altura vi que me apontava uma navalha de ponta e mola. Aquele que tinha tomado por uma criança era um homem baixo e mirrado a quem tinham cortado uma orelha nalguma rixa antiga; parecia um tanto definhado para o seu ofício de chulo, mas a mutilação que sofrera dava-lhe um ar perigoso. Alheio à sua limitada corpulência, avançou com o punhal na mão, repetindo o nome da mulher. Eu retrocedi até ao outro aposento, murmurando que a mulher tinha desmaiado e que convinha chamar um médico. As minhas palavras não tiveram qualquer efeito e o homenzinho perscrutava-me com os seus olhos fundos. Finalmente afastou-os de mim e olhou para a mulher, estendida sobre uma colcha de flores amarelas e cor-de-rosa, e tornou a chamá-la pelo nome com preocupação e angústia. Quis aproveitar essa pequena distração mas, assim que me lancei na direção da porta, atirou-me uma navalhada que me acertou no ombro. Dei um grito de dor e de fúria e desatei a correr pelos corredores do hotel até à saída. Desci aos saltos uma escada alcatifada de vermelho. Deparei com a porta fechada. Diante dela, o porteiro esperava de pé, transformado em guardião. Empunhava uma faca de carniceiro. Ele e o anão deviam estar habituados aos problemas. Recuei e subi a escada. Agora não era perseguido só pelo pequeno proxeneta. Atrás de mim ouvi uma gritaria monstruosa, as vozes primárias e cheias de ódio dos meus caçadores e compreendi perfeitamente o que eram os camponeses com archotes de que o Numismático me tinha falado. Rodei a cabeça e vi, no fundo do corredor, o meu perseguidor original, com a navalha aberta, a cortar o ar, como se um matagal invisível nos separasse. No fim do corredor havia uma janela aberta e eu saltei, sem calcular a altura ou o local da queda.

Caí entre a erva alta de um terreno baldio repleto de latas oxidadas e de garrafas partidas. Olhei para cima: o meu perseguidor estava à janela, sem se atrever a saltar. Poderia ter-me insultado ou ameaçado mas olhava para mim com um ar solene, como se reconhecesse que o meu ataque não tinha qualquer relação com os clientes bêbedos ou valentões que lhe tinham dado problemas no passado. Abri caminho entre urtigas e lixo. Uma cadeira desconjuntada ajudou-me a trepar o muro que me separava da rua.

 

 

Desde essa altura comecei a olhar continuamente para trás quando fazia as minhas caminhadas noturnas; tinha a sensação de que me seguiam. No bolso, trazia sempre a navalha com que me barbeava. Numa terça-feira às dez da noite, ao atravessar a Plaza Miserere, descobri que passos alheios rimavam com os meus. Pareciam os sapatos de uma mulher, mas às vezes os tacões dos polícias soavam da mesma forma. Abri discretamente a navalha. Aproximei-me do mausoléu de Rivadavia, no centro da praça. Esperei que o meu perseguidor surgisse na zona de luz. Era uma rapariga miúda, de vestido avermelhado com bolas brancas.

Devia ter uns vinte e quatro ou vinte e cinco anos. Não fugia, não se escondia, sustinha o meu olhar, vinha na minha direção. Uma carteira pequena, preta, pendia-lhe do braço. Ri-me ao vê-la aparecer, magra e frágil, ri-me da navalha que brilhava na minha mão.

– Como o faz? É mágico? Trabalha para um circo?

– O quê?

– Fez-me ver alguém. Foi na quinta-feira da semana passada. Estava a segui-lo, você apercebeu-se e, nessa altura, enfeitiçou-me.

– Porque me seguia?

– Para saber quem é. Como faz. Vi como fazia o mesmo a outros.

Devia ser uma louca. O que estava a fazer àquela hora na praça?

– Agora não posso conversar. Tenho de me levantar cedo. No escritório…

– Não, você não tem escritórios. Nem horários, nem filas nos bancos, nem comboios a abarrotar, nem madrugadas, nem pequeno-almoço a correr. Você tem os seus próprios assuntos.

– É verdade. E são assuntos urgentes.

Ia pôr-me ao largo em direção a Rivadavia, quando a rapariga perguntou:

– O seu assunto urgente são as mulheres?

Aproximava-se muito de mim ao falar, conseguia cheirar o seu hálito a rebuçado de mentol. Receei que se pusesse a gritar, que chamasse a polícia. Tinha a pele branca, os braços magros, as pestanas compridas; quando andava parecia flutuar no ar. Usava uma cruz dourada sobre o pescoço de porcelana.

– Que mulheres?

Fez-me sinal de que a seguisse. Atravessámos Rivadavia, entrámos em La Perla del Once. Escolhemos uma mesa junto da janela. Só estavam ocupadas duas ou três mesas. Ela pediu um café; eu, um copo de vinho.

– Antes trabalhava para a florista San Blas, mas despediram-me. Foi melhor assim. O cheiro das flores dava-me náuseas. As flores não lhe lembram os mortos? Há uma semana que trabalho no Palácio da Justiça, na cave.

Era uma rapariga linda e os empregados e clientes das outras mesas olhavam para ela. Todos a desejavam. Eu desejava tê-la longe. Tinha vindo de Tandil. Na sua cidade tinha feito um curso de secretariado. «Instituto Newman», acrescentou com orgulho. Sabia escrever à máquina, estenografia e datilografia.

A sua única falta: nada de inglês. Tinha tentado estudar sozinha, com uns discos, sem resultado. Não tinha ninguém na cidade, nem familiares nem amigas, e pensava que ia enlouquecer de tanto andar. Como tinha insónias, às vezes fazia caminhadas muito tardias.

– Uma noite vi-o e soube que você era um solitário, tal como eu. Comecei a segui-lo. Tinha medo de que me dececionasse, de que a dada altura revelasse ser trivial, comum, de que fosse como os outros. Mas a cada passo tornava-se mais extraordinário. Tomei-o como um guia. Imaginava as nossas conversas. Imaginava que você, pacientemente, respondia às minhas perguntas, não diretamente mas de uma forma estranha, como se quisesse deixar sempre alguma coisa na escuridão. Cada rua que você pisava passava a ser importante para mim. Aponto-as num bloco.

Sentia-me cansado. De todas as armadilhas em que podia cair, calhara-me a mais insólita. Quem teria mandado esta rapariga atrás de mim? Ouvia-a falar sem parar, contando-me as suas aventuras, e fui-me sentindo possuído pelo abatimento de quem já não tem escapatória. Não fora vencido pelos polícias, pelas mulheres maltratadas ou pelos seus chulos enganados, nem pelos antiquários ou pelo Numismático: fora vencido pela minúscula e alucinada Celina Ortiz.

Saímos de La Perla. Percorremos juntos alguns quarteirões, em direção a oeste. Começava o outono, às vezes agradável, às vezes com um vento frio ou com um calor excessivo. Ela deu-me a mão. Respondi àquela confiança tratando-a por tu.

– O que queres de mim? Dinheiro?

– Não sejas malcriado. Quero que nos encontremos.

– Para quê?

– Vi aquelas mulheres. Aquelas mulheres horríveis, com as caras pintadas, as meias de rede, sempre rotas. Quando têm tempo livre escrevem cartas mentirosas, dizendo que trabalham em casas de família ou que são secretárias num escritório. Fumam na escuridão e dizem palavrões. E invejo-as.

– Pelo seu sono? Posso dar-te pastilhas…

Tive esperança de que alguns soporíferos bastassem para a afastar do meu caminho.

– Invejo-as pelo resto.

Foi assim que começámos a ver-nos. Não era necessário marcarmos encontro: ela encontrava-me sempre, em qualquer parte. Às vezes tinha a sensação de que ela conseguia estar em mais de um lugar ao mesmo tempo. O seu passatempo favorito era descrever-me os meus próprios passeios, durante os últimos dias. Mas descrevia-os como se se tratasse de acontecimentos com um significado profundo; como se, nos meus encontros noturnos, nas minhas caminhadas, nas minhas experiências com narcóticos, se jogasse o destino de uma civilização.

– Quero ser a próxima – disse-me. – Quero que não haja outra.

Era uma louca, seria informadora da polícia? Cansado da sua insistência, levei-a comigo. Atacá-la-ia uma vez, depois ela ir-se-ia embora para sempre, ferida e humilhada. Teria atingido, finalmente, a compreensão do jogo. Bebeu com avidez um copo de água onde eu tinha pulverizado os narcóticos (tinha preferido não injetá-la). Antes de adormecer, disse-me:

– Na próxima vez fá-lo-ei acordada.

 

 

E assim foi: na vez seguinte, fê-lo acordada. Marcou encontro comigo no local onde trabalhava, no Palácio da Justiça. Eu ia muitas vezes ver os livros que havia na praça, entre os quais abundavam os livros de direito (Calisser recusava-se a negociar com semelhante mercadoria), mas havia também velhos romances e livros de curiosidades científicas. Subi a escadaria, passei pelo grande átrio e, a seguir a um corredor, desci por uma escada de mármore. Lá em baixo havia uma sala enorme repleta de máquinas de escrever (a maior parte Remington e Universal). Devia haver, calculei, umas cem. Diante delas, umas setenta datilógrafas de todas as idades e alguns homens, ou muito novos ou muito velhos, escreviam a toda a velocidade. Quando precisavam de apresentar um requerimento à última hora, sem tempo para passarem pelos seus escritórios, os advogados desciam até àquela sala barulhenta e subterrânea e davam às datilógrafas as folhas que precisavam de transcrever e o dinheiro pelo trabalho. O requerimento ficava pronto em poucos minutos, uma vez que aquelas mulheres datilografavam a uma velocidade surpreendente. Noutra sala de entrada condicionada estavam os estenógrafos, que bebiam café enquanto esperavam pelo momento de serem chamados aos tribunais.

Quando Celina Ortiz me viu, veio na minha direção com um sorriso e com os dedos manchados de tinta.

– Malditas máquinas. Todo o dia a bater naquelas teclas. É um trabalho infernal. Gostaria de matar todos os advogados.

Levei-a à minha pensão e aguentou, acordada, as leves picadelas, sem um queixume. Assim, começámos a ver-nos todos os dias. Transformámo-nos num casal de namorados possessos. Passado um mês de caminhadas, mudámo-nos juntos para a pensão de Frau Frida, na Calle Talcahuano. Dormíamos de dia, de noite entregávamo-nos às caminhadas insensatas; preso pelos mecanismos da sua devoção, eu levava-a a observar a minha vida, a preencher os vazios. Dava-lhe todas as informações de que necessitava para me condenar. Esperava que de um momento para o outro se afastasse de mim e entrasse numa esquadra, para indicar onde se situava a guarida do monstro. Mas não fez nada disso. Como se seguíssemos as peripécias de um herói morto e sombrio, passeávamos pelas pensões onde eu tinha vivido, pelo Lucerna deserto, por La Fortaleza. Cheguei a levá-la até à casa de Balacco e mostrei-lhe a mulher na janela iluminada. Depois das caminhadas pedia-me que bebesse, como se se tratasse de um chamariz, e eu praticava no pescoço dela, nas coxas, nas costas, as picadas e às vezes os cortes, num pacto de sangue que precisava de ser incessantemente renovado.

***

Embora fosse eu quem bebia o sangue, não conseguia deixar de pensar que era ela quem, na realidade, me mantinha prisioneiro, que era ela a lampreia que me sugava a força de que teria necessitado para fugir. Mas, ao mesmo tempo, não conseguia evitar o facto de, por acaso, ter encontrado uma forma de tornar a minha vida segura longe do elixir. Se evitasse os ataques ocasionais, e o tumulto subsequente, os antiquários não teriam qualquer razão para vir atrás de mim. Eu podia receber, tal como o Numismático, a suspensão da pena. Talvez o Numismático tivesse encontrado um remédio similar. Desde a primeira vez que vi Celina, não voltei a visitar outras mulheres.

Às vezes a dona da pensão – Frau Frida, gentil na sua maneira de ser um pouco brusca – comentava comigo a fraqueza daquela a quem chamava minha «mulher».

– A sua mulher não estará doente? Acho-a um pouco mais pálida do que na semana passada. Devia levá-la a um médico.

Mas eu dizia que ela já fora vista por um médico, que estava em tratamento, que lhe tinham dado vitaminas. Frida falava comigo, mas não se aproximava de Celina, pensando que ela tinha tuberculose.

– Porque não a leva às serras de Córdova? Disseram-me que perto de Los Cocos há uma casa de saúde de onde os doentes saem como novos.

Outras vezes sugeria-me mudanças na alimentação:

– Recomendaram-me o tónico La Brasileña. Além disso, lembre-se: tomates, lentilhas, leite de burra, óleo de fígado de bacalhau.

Dizia-o só porque as situações sem saída desesperam as pessoas. Eu não queria que Frau Frida se alarmasse demasiado, por isso levava muitas vezes livros em alemão que arranjava nas minhas transações. Apesar do seu aspeto marcial, ela preferia os livros românticos.

Calisser tinha-me avisado de que o amor levava à morte; que a sede, exacerbada pela paixão, bebia até a última gota de vida. Eu não amava Celina, mas a anemia amava-a, cortejava-a através dos seus adornos: a palidez sobrenatural, as sombras sob os olhos, as veias que emergiam como braceletes azuis. Eu tratava de alimentá-la, obrigava-a a partilhar a minha dieta de frutas e carne quase crua, de mel e amêndoas, mas ela quase não provava a comida, emagrecia e consumia-se.

Às vezes Frau Frida ficava a olhar para mim de uma maneira que não me agradava; partilhávamos alguns comentários sobre a fatalidade da vida, mas ela no fundo sabia que essa fatalidade era eu. Tinha medo de que me denunciasse à polícia; nessa altura mostrava-me desconsolado e dizia-lhe:

– No hospital mandam-na de volta.

Culpar os médicos, ou os funcionários públicos, dá sempre resultado e as pessoas mostram-se invariavelmente de acordo. Não podia levá-la ao hospital. Os médicos chamariam a polícia, a polícia viria atrás de mim, sentiriam curiosidade pelas marcas vermelhas na pele branca de Celina.

Como se quisesse imitar cada um dos meus passos, ela também se escondia do sol.

– Celina, se continuarmos assim…

– Vamos chegar a um ponto de não retorno. Nessa altura não terás outra solução senão contagiar-me.

– Não posso. Não sei que efeitos terá…

Mas ela insistia, e eu, como se tivesse começado a partilhar a alucinação que a rodeava, aceitei tentar o contágio. Esse tinha sido, desde o início, o seu plano secreto. Com uma das seringas, injetei-lhe no braço direito um centímetro do meu sangue. Tentava repetir o procedimento efetuado pela doutora Baletti. O ensaio não deu resultado. Depois experimentei aumentar os centímetros de sangue. Também não deu resultado. Talvez o pacto tivesse cláusulas secretas, com rituais, com predisposição congénita. Como sabê-lo? Eu tinha estado inconsciente durante esses procedimentos. Ávida, Celina pedia-me mais sangue. Como se fosse um veneno, este mergulhava-a mais ainda na sua anemia. Estava tão pálida, tão definhada, que não podia levá-la para fora da pensão. Frau Frida já não se deixaria convencer pelos livros em alemão, nem sequer pela coleção de novelas românticas com rosas amarelas na capa, que eram as suas favoritas. Se chegasse a ver Celina, com os ossos da cara marcados, os olhos enormes e as pálpebras translúcidas, chamaria a polícia. Celina aceitou a reclusão, submissa. Mas não era minha prisioneira. Do seu isolamento, da sua anemia e das suas exigências, era a minha carcereira e cada uma das minhas saídas era analisada através de interrogatórios minuciosos.

 

 

Uma manhã disse-lhe que já não conseguia continuar com aquilo, que acabaria por matá-la. Não num prazo distante, mas nos dias seguintes. Tinha refletido com todo o cuidado: levá-la-ia a um hospital, desaparecendo antes que houvesse tempo para perguntas. Nas urgências tratariam dela. Teríamos de nos separar durante algum tempo.

– Quanto tempo?

– Até recuperares totalmente. Uma temporada com a tua família far-te-á bem.

Olhou para mim perplexa, como se estivesse a falar-lhe de uma viagem a Marte.

– Haverá outras mulheres, ou não?

Disse-lhe que não, se conseguisse evitá-lo. Mas não sabia quanto tempo conseguiria aguentar antes de voltar a caçar.

Pensava levá-la ao hospital à hora da sesta, para não me cruzar com Frau Frida na escada. Aproveitando o dia nublado, fui vender um livro que tinha comprado. Era uma descrição da conquista do deserto. Vendi-o ao Bode Barbera, que me deu o suficiente para pagar a pensão durante quinze dias. Estávamos no primeiro dia do mês. Entrei no prédio com as notas na mão, disposto a pagar a Frau Frida. Bati à porta dela e não a encontrei. Nessa altura subi até ao terceiro andar. A porta do meu quarto estava aberta e a alemã estava a meio do aposento. Descobriu-a, pensei, mas quando vi que Celina não estava senti-me aliviado. A janela estava aberta, a cortina ondulava e aquele ar pareceu-me vivificante. Frau Frida, como se fosse a guia de um museu que quisesse mostrar a sua peça mais importante, fez um gesto para que a seguisse até à janela. Relacionamo-nos com pessoas durante anos sem que sejam totalmente reais para nós, só se tornando verdadeiras quando realizam com a palavra ou com o gesto aquilo a que estavam destinadas desde o início. Foi o que aconteceu com Frau Frida: tinha falado com ela muitas vezes, tinha-a observado, mas só se me revelou como uma totalidade quando apontou para a janela aberta. Esperaria da minha parte aflição, lágrimas, gritos? Eu pertencia a outra raça. Espreitei: Celina estava estendida na vereda e um grupo de curiosos rodeava-a, com o entusiasmo que as tragédias alheias despertam. Tinha caído de frente sobre os ladrilhos da vereda. Estava tão anémica que me pareceu um milagre poder ainda sangrar. Notei que tinha voltado a pôr o vestido vermelho com bolas brancas do nosso primeiro encontro. O vestido tinha-se levantado e viam-se as pernas magras e as marcas dos cortes. Uma mulher compôs-lhe a saia. Um dos sapatos tinha-se soltado na queda e desaparecera entre as pessoas.

Ouvi Frau Frida dizer que seria preciso chamar um médico, a polícia. Dizia-o mecanicamente e com uma certa lentidão pastosa, como se num instante tivesse perdido o uso da língua. O único telefone da pensão estava no rés do chão. (Só se podiam receber telefonemas até às oito da noite, avisara-nos Frau Frida quando alugámos o quarto.) Imaginei as formalidades e os interrogatórios policiais, a curiosidade dos médicos-legistas pelas picadelas e cortes do corpo, a declaração de Frau Frida. Reuni a bagagem que podia levar comigo.

– Onde vai? – perguntou a dona da pensão, com mais surpresa que indignação. – Não pode ir-se embora.

Deixei as notas em cima da mesa. Frau Frida guardou-as no bolso e seguiu-me escadas abaixo mas, quando abri a porta da rua, não se atreveu a sair. Estava demasiado aflita para enfrentar as pessoas que se tinham juntado no exterior e que pareciam esperar uma resposta. Por momentos receei que me denunciasse à multidão. Enquanto abria caminho, o coro dizia em voz baixa: «Matou-se por amor, caiu por acidente, morreu de tristeza pela morte de Eva Perón.» Teria gostado de esclarecer que nós vivíamos uma história paralela, que as notícias dos jornais não nos tocavam. Poucos metros andados, encontrei o sapato de Celina, que tinha querido fugir. Diante da morte, até o inanimado parece ter vida.

Fui a pé até à livraria. Calisser abriu-me a porta, estendeu-me a mão como se eu tivesse acabado de sair, como se voltasse de algum recado que me ocupara a manhã. Fez um gesto vago em direção ao fundo: o meu quarto esperava por mim. Deixei-me cair na cama e dormi longas horas. Tinha voltado para casa e tudo me era perdoado. Ao acordar encontrei, sobre a mesa da cozinha, uma garrafa de elixir.

3 Pastafrola: tarte típica da Argentina e Uruguai. (N. da T.)