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Durante meses tinha-me sentido perseguido: interiormente, pela fome, e exteriormente, por inimigos de quem não conseguia imaginar o rosto. Agora exercia o meu ofício como uma rotina de escrivão. Entre o trabalho na livraria e as visitas aos clientes, passavam-se as horas. Deixava que a luz do Sol organizasse o meu dia; mesmo que usasse um Tissot de bolso, o meu verdadeiro relógio era solar. Se no inverno a luz fosse excessiva para os da nossa raça, acrescentava luvas, cachecol e chapéu, como se imitasse as personagens de O Sombra ou de O Homem Invisível, que nessa altura transmitiam na rádio. Às vezes, na silhueta de uma desconhecida, numas mãos nervosas que me davam o troco na bilheteira do comboio, ou numa voz que ouvia atrás de mim, parecia-me encontrar o eco ou o vislumbre de Celina, como se, depois da sua morte, a minha namorada louca tivesse aprendido um carmen capaz de revelar apenas, na enciclopédia desconjuntada do passado, a sua própria sombra. É uma arte que os mortos conhecem bem.

Da árvore da ciência pendiam duas maçãs proibidas: Luisa e o sangue. Nesse caso, o que restava? Que outros prazeres podia o mundo prometer-me? Andava pela rua com o coração morto. Às vezes até desejava sentir os passos dos meus perseguidores, para que me fizessem recordar que estava vivo. Camponeses com archotes, também vocês me abandonaram? No Cinema Galeón, onde ia muitas vezes, porque à quarta-feira passavam filmes antigos em sessão contínua, havia um pianista que tocava entre os filmes. Chamava-se Isidoro Luis Verone mas todos lhe chamavam Beethoven, porque era surdo. Para que a analogia fosse completa, os espectadores erguiam a mão com os dedos abertos e ele sabia então que estavam a pedir a Quinta Sinfonia. Com uma gentileza distraída, aceitava. De vez em quando algum engraçado subia ao palco e, sem que Beethoven se apercebesse, travava o pedal do piano, para que soasse em surdina. Enquanto o pianista executava os compassos mais famosos da sinfonia, o teatro em peso continha-se, explodindo finalmente em gargalhadas.

Era exatamente assim, como a peça do falso Beethoven, apagada e distante, que a música do mundo soava para mim. E é assim que continua a soar.

 

 

Foi nessa altura que voltei a pensar naquele livro de que Marengo falara, o Ars Amandi que tinha as páginas coladas, não por distração da guilhotina, mas pela antiga arte de selar os livros. Às vezes sonhava que o livro aparecia a meio de um lote de romances policiais mas que, assim que o abria, se transformava numa bola de fogo. Os sonhos às vezes empenham-se em mostrar-nos o fracasso que nos espera, como se nos fossem treinando para o futuro; os sonhos, onde abundam as surpresas, são, no fundo, inimigos da surpresa, querem que tudo o que façamos já o tenhamos feito, nem que seja adormecidos.

Há muito tempo que não sabia nada de Luisa mas não passava uma hora sem que pensasse nela. Tinha consciência de que a Luisa real devia ter mudado, como todos mudamos, enquanto a minha, aquela que eu imaginava, permanecia idêntica; mas não perdia a esperança de que as duas conservassem um ligeiro parentesco, um ar de família. Perguntei a Calisser pelo livro, como se me interessasse só como curiosidade bibliográfica, mas ele respondeu-me:

– Você acha que ela aceitaria voltar a vê-lo, mesmo que encontrasse esse livro secreto que talvez não exista? E se existisse, julga que esses antigos processos alquímicos para tornar o amor perdurável dariam algum resultado?

Nessa noite mudei de assunto, mas no dia seguinte insisti. Calisser respondeu-me sem vontade, com aquela falta de entusiasmo na rejeição que torna o seu efeito mais consumado. Dizer não sem vontade é como dizer: eu não te nego nada, é a complexa máquina do mundo que to nega. Uma manhã falei-lhe da minha coleção de coisas encontradas nos livros e depois roguei-lhe que me deixasse ver o depósito de Stazzi, em cujas velhas páginas encontraria, com certeza, fotografias, cartas amareladas e bilhetes de comboio.

– Agradeço-lhe que tenha inventado essa desculpa. Mas a resposta continua a ser não.

– Empreste-me a chave de Stazzi por uma hora. Prometo deixar tudo como está.

Calisser riu-se.

– Você age sempre como se o mundo fosse de mármore, como se nada mudasse. Esteve muito tempo ausente. Esse depósito já foi totalmente esvaziado e a casa, demolida. Nesse lote estão agora a fazer um prédio moderno. Está interessado em investimentos imobiliários?

Deixei-me cair numa cadeira, desanimado. Calisser disse, como que de passagem:

– Se quiser saber mais sobre Stazzi, vá ver a mulher dele. Chama-se Rita… qualquer coisa, não me lembro do apelido. Trabalha como empregada num bar da Avenida de Mayo, junto do Hotel Metropol. Talvez ela tenha o livro e queira fazer negócio.

Essa possibilidade devolveu-me a esperança. Fui vê-la numa terça-feira fria, à hora em que a tarde começa a transformar-se em noite e a população dos bares se altera; saem os homens que trabalharam durante todo o dia nos escritórios do centro e aparecem aqueles de ocupação incerta, aqueles que nunca se veem de dia mas que saem ao pôr do Sol, acabados de barbear. Começam com um café ou com uma genebra o que será mais tarde um longo périplo que os reterá, em bares e restaurantes da Avenida de Mayo ou de Corrientes, até de madrugada. Havia três empregadas: uma que parecia muito velha e cansada; outra amável, risonha e gordinha; e uma muito magra, nervosa, que passeava entre as mesas como se não conseguisse ficar quieta. A boca e os olhos estavam demasiado pintados e o cabelo, tingido de um louro quase branco. Decidi-me por esta. Com um gesto de urgência, recolhia as moedas das mesas e metia-as num bolso do seu avental preto, amarrado sobre a saia, também ela preta. Quando veio à minha mesa, disse-lhe em voz baixa:

– Eu conheci Bruno.

– Sim? E o que quer?

– O que quero?

– Todos os que se aproximam de mim querem alguma coisa.

– Uma Hesperidina.

Olhou-me, aborrecida, e voltou pouco depois com o copo e a garrafa. Serviu uma medida muito pequena.

– Só isso? No Bar Billares do outro quarteirão enchem-me o copo.

– Se acha pouco, há um livro de reclamações.

– É outro o livro que procuro.

Olhou para trás, para ver se as outras empregadas ou se o homem da caixa a observavam. Nessa altura disse-me quase ao ouvido:

– Se quer falar comigo, pague-me. Deixaram-me sem nada, sem Bruno, sem os livros.

– Tem razão. Pago-lhe, se o que tiver valer a pena.

– Mas não aqui. Saio à meia-noite. Venha buscar-me a essa hora.

 

 

Voltei ao bar à meia-noite. A essa hora Corrientes continuava animada mas a Avenida de Mayo, mais prudente, estava vazia de transeuntes. Só os jogadores de bilhar permaneciam no fundo dos cafés, lentos e calados, absortos na sua combinação de fumo e geometria. Esperei na rua até a ver sair, envolta num sobretudo azul. Cumprimentou-me com uma inclinação de cabeça. Caminhámos juntos dois quarteirões, até que ela disse, «Tenho fome», e entrámos num restaurante que estava aberto 24 horas. Um empregado sonolento trouxe o pão, a manteiga, um jarro de vinho. Bebeu um copo inteiro antes de dizer uma palavra. Eu pedi um bife mal passado; ela, um esparguete com pesto.

– Pague-me – disse séria, cravando em mim os olhos, assim que o empregado virou costas.

– Quero saber o que vou receber em troca.

– Pague-me para poder perguntar.

Dei-lhe algumas notas.

– Faça-o com mais delicadeza. Vão pensar que eu sou uma dessas, que estou a cobrar por um encontro.

– Se lhe pareço grosseiro, devolva-me o dinheiro.

Apertou as notas na mão fechada. Vi pela sua cara que era mais do que tinha esperado e no entanto disse:

– Isto é pouco.

– Nem sequer contou o dinheiro.

– Trabalhei como caixa. Consigo saber pelo tato o dinheiro que tenho aqui.

Acrescentei duas notas, apesar de o dinheiro não me sobrar. Quando abriu a carteira para guardar o dinheiro, caíram sobre a toalha de plástico um batom, umas chaves e um cartão de visita. Li aí o nome do doutor Spitzer.

– Conheço esse nome.

– É um médico muito importante. Todos pagam para que os médicos os ouçam; a mim, em vez disso, é ele quem me paga.

– Para quê?

– Não pense mal. Paga-me para que fale. Ele interessa-se muito pelo que tenho a dizer.

– Isso pode ser perigoso.

– Ele acha que estou louca, de modo que não há perigo nenhum. A mim não me interessa o que pensa, desde que me pague… Quero juntar dinheiro para voltar para Montevideu. Sou uruguaia, sabe? Odeio esta cidade.

Olhei para as suas mãos delicadas, para as unhas pintadas de um vermelho berrante. Com a maquilhagem excessiva e a cor indiscreta do cabelo, fazia o possível para se cobrir de vulgaridade, mas restava ainda um rasto de beleza melancólica. Compreendi o que Calisser não conseguira compreender: que o defunto Stazzi se tivesse apaixonado. Tirou da carteira um cigarro esmagado e eu aproximei-lhe um fósforo aceso. Durante alguns momentos, fumou em silêncio.

– Quero saber onde Bruno guardava esse livro.

– Não lhe chame Bruno, como se o tivesse conhecido. Já me dei conta de que não o conheceu. Chame-lhe senhor Stazzi.

– Stazzi, como queira.

– Ele estava convencido de que esse livro lhe permitiria viver comigo. Ele fazia tudo por amor.

– É você quem tem o livro?

– Não. Caso contrário, vendê-lo-ia por muito mais do que isto. Ele escondeu-o, tinha a certeza de que lho iam tirar. Só sei um nome. Não sei quem é, mas não tenho outra coisa para lhe dar.

– Qual é o nome?

– Leroy.

Apagou o cigarro no cinzeiro de vidro.

– Você já fez as perguntas, agora pergunto-lhe eu: foram vocês, os antiquários, que mataram Bruno? Foi esse Calisser? Foi por se ter apaixonado por mim?

– Você sabe que não, caso contrário não estaria aqui a falar comigo. Quem matou Stazzi foi um amigo do seu doutor Spitzer. Escolheram-no a ele porque era mais fácil de convencer, mas poderiam ter matado qualquer um. Seria melhor deixar de ver o seu psiquiatra. Também seria melhor voltar para Montevideu quanto antes.

Pareceu aceitar as minhas palavras ou, pelo menos, pensou nelas. Continuámos a comer em silêncio e depois despedimo-nos sem dizer uma palavra.

 

 

Tinha esse nome – Leroy – como quem tem uma palavra mágica. Deixava-a soar na minha mente mas adiava o momento de a pronunciar e de testar a sua eficácia. Era como um presente, com o seu papel brilhante e as suas fitas coloridas; fechado, podia ser qualquer coisa; uma vez aberto, seria apenas uma.

Finalmente disse de chofre a Calisser:

– Leroy.

Olhou para mim, aborrecido.

– Nem sequer mereço a formulação de uma pergunta?

– Leroy. Foi este o nome que a namorada de Stazzi disse.

– Ela conhecia Leroy?

– Não. O senhor conhece-o?

– Espero que essa mulher não se habitue a ir dizendo nomes por aí, só porque lhe apetece.

– Porque lhe apetece, não. Porque lhe paguei. O nome custou-me cem pesos e um jantar.

– Aqueles que procuram os nossos nomes pagariam muito mais do que isso. – Calisser pôs cola num ex libris de La Fortaleza e colocou-o na página de título de um volume grosso. – Leroy é um pouco ermitão. É o encarregado do Cemitério de Estátuas.

– Diga-me onde o encontro.

Atirou-me um roteiro usado, que apanhei no ar.

– Pergunte ao senhor Peuser.

 

 

Atravessei o jardim zoológico e contornei um dos lagos de Palermo até chegar ao Depósito Municipal de Estátuas e Monumentos. O átrio tinha qualquer coisa de catedral. Os vidros do telhado estavam partidos ou rachados e por aí entrava a luz, como se procurasse às cegas um buraco por onde descer à terra. Pombas atordoadas voavam sobre as estátuas à procura de uma saída. Eu avançava por um itinerário caprichoso que tentava evitar as zonas inundadas; às vezes as estátuas não estavam em pé mas caídas, de modo que era preciso passar-lhes por cima. Outras vezes estavam tão perto umas das outras que formavam uma parede intransponível. Os monumentos equestres sobressaíam entre as outras estátuas, como se os generais estivessem a cumprimentar-se uns aos outros à distância. Passei junto de um anjo com a asa quebrada, de uma pantera de bronze, de um centauro sem cabeça. O chão estava coberto de mãos cerceadas e de cabeças de cavalos.

No fundo do depósito via-se um escritório iluminado pela luz de umas lâmpadas fluorescentes. Havia três secretárias, mas só uma estava ocupada. Um homem bem abrigado e com um chapéu enfiado na cabeça acrescentava palavras a uma lista; molhava a pena no tinteiro e desenhava cada letra com cuidado. O bigode fino, a camisa com goma, a exatidão do nó da gravata, davam-lhe um ar de contabilista ou de escriturário. Ao seu lado brilhava um aquecedor a querosene. Atrás dele, as caixas de cartão trepavam até ao teto, todas elas com a sua etiqueta: Equestres, Bustos, General San Martín, Mitologia, Fontes, Tudo o Resto. A secretária estava cheia de papéis ordenados em montes.

Bati na porta de vidro e o homem não me ouviu ou fingiu não me ouvir; abri a porta e entrei. Quando ele ergueu os olhos do papel, apercebi-me de que era zarolho. Em vez do olho direito, tinha uma bola de mármore, uma representação tão exata do olho que tinha uma íris feita com uma pedra azul e uma pupila preta.

– Está fechado – disse, voltando os olhos para o papel.

– Procuro Leroy. Venho falar de Stazzi.

Olhou para mim com o seu único olho.

– Não conheço nenhum Stazzi. Tenho muito que fazer.

– Respeito o seu trabalho mas tenho de falar um minuto consigo. Sou amigo de Calisser. Trabalho em La Fortaleza.

Mostrou-me o caderno, as linhas que tinha completado com a sua letra de Melhor Aluno.

– Listas de estátuas. De estátuas que chegam, de estátuas que desaparecem. Muitos empregados municipais vêm aqui e roubam. Vendem mãos, cabeças, para que os ricos as ponham nos seus jardins e olhem para elas nas tardes de chuva. Eu tenho de fazer o inventário do cemitério, caso contrário tudo desaparecerá. – Como viu que eu me tinha sentado, resignou-se a perguntar: – O que quer?

– O senhor conhecia Stazzi… Estou à procura de um livro que ele guardou nalgum lado. Não quero que caia nas mãos daqueles que o mataram.

– Como sei que você vem da parte de Calisser?

– Telefone para ele. – Disse-lhe o número de telefone de La Fortaleza.

– Sei o número de cor. Mas este telefone funciona dia sim, dia não. E hoje é dia não.

Tirei da minha pasta um livro que lhe tinha trazido. Era um catálogo das praças de Buenos Aires, publicado por ocasião do Centenário.

– É para si. É Calisser quem o manda.

Deu-lhe um olhar de aprovação, enquanto limpava a pena com um pano que tinha sido usado tantas vezes que estava completamente azul. Levantou-se com grande parcimónia e saiu do escritório, arrastando os pés. Segui-o.

Dirigimo-nos para uma das portas laterais e saímos do depósito. Lá fora o desfile de estátuas não tinha acabado, mas agora as peças de mármore ou bronze alternavam com cavalos de carrossel sem cabeça ou sem patas, com carrinhos de choque de parques de diversão e com cariátides já livres de varandas. Um dragão de gesso, que em vida tinha aberto as suas goelas na escuridão de um comboio fantasma, apodrecia à intempérie. Havia mesmo carrosséis inteiros, cujos espelhos manchados repetiam os tigres e os cisnes de gesso que os habitavam. Tropecei num unicórnio, que jazia estendido e semienterrado. Chegámos finalmente junto de um sábio de mármore sentado numa cadeira; sob a cadeira cresciam livros de poesia, empilhados uns sobre os outros. Mesmo em mármore, os sábios tinham fama de ser desordenados.

– Há muito tempo que está aqui.

– Quem é?

– Burmeister, o grande naturalista. Propôs-se fazer uma descrição total da Argentina, com toda a flora, fauna, geografia, geologia… Chegou a publicar alguns tomos da sua obra, mas morreu ao cair de uma escada, quando trabalhava no Museu de Ciências Naturais. A morte frustra sempre os planos infinitos. A estátua estava aqui simplesmente, nos bosques de Palermo. Dizem que vão transferi-la para o museu, mas demoram. É preciso preencher muitos papéis antes de conseguir mover uma estátua. Há anos, mostrei-a a Stazzi e contei-lhe que um destes livros, como acontece com quase todos os livros de mármore que se veem nas praças, é um cofre escondido. Agradou-lhe a ideia e veio cá guardar alguma coisa no seu interior. Foi um mês ou dois antes de desaparecer.

Toquei nos livros gelados.

– Não se abrem.

– Não? Você sabe lá. A técnica é antiga. Se as pessoas soubessem quantas estátuas têm partes móveis, passariam a vida a tentar abri-las. Isto é um segredo. Espero que fique entre nós.

Esforçou-se a empurrar um dos livros. Achei que a tarefa era impossível, mas Leroy não esmoreceu até que o milagre se deu e o livro se deslocou com um ruído de porta de casa abandonada. Parecia menos um livro que um pequeno sepulcro. As mãos enormes de Leroy arrancaram o cofre da estátua. Estendeu-mo.

– Posso abri-lo?

– Veio para isso, ou não? Abra-o e deixe-me continuar com o meu trabalho.

Tinha ferragens minúsculas e brancas. Levantei a tampa. Leroy viu a minha cara de deceção.

– Parece que alguém se antecipou. Quando procuramos tesouros escondidos, há sempre alguém que chega primeiro, não é?

Na caixa de madeira não havia nenhum livro, só uma antiga moeda romana.

 

 

Perguntei a Calisser onde poderia encontrar o Numismático.

– Para que quer procurá-lo? O Numismático podia tê-lo matado quando você andava perdido e, no entanto, perdoou-lhe a vida. Conforme-se com isso. Não é alguém a quem se possa pedir uma segunda oportunidade.

– Quero perguntar-lhe uma coisa.

– Não há forma de lhe seguir o rasto.

– Você comunica com ele.

– Chamá-lo é chamar a desgraça. Não tem telefone. E, se tivesse, eu não conservaria o seu número.

Deu-me o braço.

– Deixei que procurasse o livro, que fosse procurar a mulher de Stazzi, disse-lhe onde podia encontrar Leroy. Não lhe basta. Quer ir à guarida do monstro. Não serei eu a guiá-lo. Se o Numismático ficou com esse livro, é porque precisa dele para alguma coisa.

Mas eu era ainda jovem. Não estava preparado para a cautela. Já tinha conhecido o Numismático, o que poderia recear? Passaram-se semanas e só me continha o facto de não saber por onde começar a procurar. Tudo mudou quando na casa de um viúvo onde fui comprar livros encontrei uma coleção de penas venezianas. Algumas eram de vidro; outras eram tão compridas e aguçadas que pareciam pequenos punhais. As penas tinham pertencido à mulher e o viúvo ignorava por completo o seu valor. À primeira oferta, fiquei com tudo.

Fui ver imediatamente o antiquário Granier, que vivia perto da estação Pacífico. Recebeu-me numa sala escura e estreita, com as paredes cheias de vitrinas a abarrotar de instrumentos de escrita e de frascos de tinta. Passou um comboio e a casa inteira vibrou com tanta força que julguei que as vitrinas se iam desfazer sobre nós. Granier gritou por cima do ruído:

– Dizem que quando passa um comboio por cima de uma pessoa, deve-se pedir um desejo. Eu peço sempre o mesmo: que a casa não me caia em cima.

Tinha trazido as penas embrulhadas num pano, que ele abriu sobre uma mesa escolar de meados do século XIX, onde abundavam as inscrições com corta-penas.

– E quanto terei de pagar por tudo isto? Você deve ter ouvido dizer que eu vivo de rendas avultadas, mas fica já a saber que é mentira.

– Deixo-as a bom preço, mas com uma condição. Quero saber como entregar uma mensagem ao Numismático.

– Ah, o risco agrada-lhe. Porque não vai ao jardim zoológico, que fica aqui perto, desce ao fosso e mete a cabeça na boca do leão? Sair-se-á melhor que com o Numismático.

– Com ele tenho um negócio pendente.

Ele olhou para as penas, para aqueles insetos de aço e vidro.

– Nesse caso fechemos o nosso negócio. Assim pode ocupar-se do outro. – Disse uma cifra, maior do que eu esperava, e aceitei. Apressado, embrulhou as penas no pano e fê-las desaparecer da minha vista, como se receasse que eu me arrependesse. Entregou-me as notas e depois levou-me pelo braço até à saída.

– Não se está a esquecer de nada? – perguntei.

– Ah, claro. Escreva para o apartado de correios 1535. E depois rogue para que a carta se perca pelo caminho. Os correios funcionam mal, mas nem sequer na sua ineficácia se pode confiar.

Ao chegar à livraria, escrevi num papel uma única frase e meti-o num sobrescrito.

 

 

Passaram-se duas semanas. Nessa noite estava sozinho na livraria. Tinha sido um dia com pouco movimento e a ausência de clientes permitira-me ler sem interrupções. Sem que me apercebesse, o dia fora-se apagando e a noite tinha caído. Já eram horas de a livraria estar fechada, mas a porta de vidro continuava a mostrar o seu pequeno cartaz que dizia «Aberto». Não ouvi o ruído da porta, mas senti a rajada fria que entrou e nessa altura ergui os olhos, disposto a enfrentar o último cliente do dia. À minha frente estava o Numismático, com o seu chapéu de coco. Trazia ao ombro um saco enorme de serapilheira. Devia ser pesado, porque pousou o volume no chão e limpou o suor da testa. Sentou-se num banco de madeira – um banco que se transformava numa escada com cinco degraus – e limpou os óculos redondos com um lenço nojento.

– Estou a ver que agora se dedica ao negócio de livros – disse-lhe, mas notei na minha voz um tremor, como se a voz adivinhasse alguma coisa que eu ainda não tinha descoberto.

– Não olhe para mim com essa surpresa que é quase indignação, como se não soubesse porque vim. Você chamou-me. Tenho a sua carta no bolso. Era muito breve, concisa. Eu gosto de longas cartas. Sou à moda antiga.

– Quero o livro de Stazzi.

– Não lho posso dar.

– Posso comprá-lo.

– Dinheiro é uma coisa que você não tem e que a mim não me interessa. Eu tenho os bolsos rotos e as moedas vão-me caindo por aí. Se o dinheiro me preocupasse, coseria os meus bolsos.

– Veio dizer-me que não?

Mas eu sabia que não tinha vindo por isso. O saco esperava entre os livros da entrada.

– Preciso que você se encarregue disto. Fiz muitos favores aos antiquários. Agora sou eu quem necessita de um favor.

– Não sei de que favor se trata, mas Calisser não está.

– Isso não me interessa. Calisser, você, é a mesma coisa. Importante é que se encarregue do trabalho.

Levantou-se. Tirou o chapéu, endireitou uma amolgadela e voltou a pô-lo.

– Alegro-me que tenha voltado à comunidade. Não queria ter de me encarregar de si. Com os anos estou a ficar um sentimental.

E o Numismático foi-se embora. Uma moeda rolou perto da porta.

Fiquei a olhar para o volume de serapilheira. O saco tinha servido para transportar açúcar; em letras pretas lia-se o nome da Compañia La Dulce. O saco de serapilheira era o testemunho de que realmente me tinha enganado; de que, como Calisser me avisara vezes sem conta, não se devia chamar o Numismático. Ganhei coragem, aproximei-me e agachei-me. O saco estava atado com uma corda fina. Tentei desfazer o nó, mas era tão forte que tive de usar o abre-cartas de Calisser para o cortar. Assim que o fiz, o cabelo louro, quase branco, espalhou-se sobre as minhas mãos. Afastei-me do saco com repulsa. Quando tornei a ganhar coragem, destapei a cabeça: a pele branca como cera, os lábios sem cor, as pálpebras inchadas. No pescoço abria-se uma ferida como uma flor escura.

 

 

Quando Calisser chegou, já eu tinha arrastado o corpo até à cozinha, para que ninguém conseguisse vê-lo da rua. Calisser ficou a olhar para a cara da mulher. Pensei que ia censurar-me por ter convocado o Numismático, mas ficou calado. Se estava impressionado ou se sentia medo, não se notava.

– É a mulher de Stazzi, Rita – disse.

– Já sei. Conhecia-a. Vi-a uma vez.

– Porque é que ninguém se encarregou do Numismático até agora? Porque é que continuam a permitir-lhe que faça estas coisas?

– Porque precisamos dele. Ele protege-nos.

– Protege-os?

– Protege-nos. A todos nós. A si também. Mas à sua maneira.

– Esta pobre mulher era uma ameaça para quem?

– Falava com o doutor Spitzer. Por detrás de Spitzer está Balacco. Não sabemos quanto sabia ela sobre nós. Stazzi sempre foi um imprudente.

– Não lhe deixou uma gota de sangue.

– Inveja-o? Teria gostado de fazer o mesmo?

Atirou-me as chaves do Hudson.

– Traga o carro até à porta. Eu vou buscar uns tijolos que tenho no pátio.

Disse-o com naturalidade, como se se ocupasse de tarefas semelhantes todos os dias.

Às três da manhã, quando não se via ninguém na rua, metemos o corpo na mala do carro. Depois fomos até à Costanera. Passámos diante do Clube de Pescadores, quase escondido pela neblina, e continuámos por mais alguns quarteirões. Não se via ninguém por perto. Pusemos os tijolos no saco de serapilheira e atámo-lo com a mesma corda. Contámos até três e deitámo-lo à água. Ao longe soou a sirene de um barco, como se fizesse parte de um ritual fúnebre. Sem pressas, Calisser ficou a olhar para o rio.

– Está feito – disse depois. – Tenho frio. Voltemos.