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Só tinha encontrado cinco garrafas de elixir entre as coisas de Calisser. Decidi fazer uma visita ao padre Larra.

Fui recebido por Ismael, o duende severo que guardava aquele pavilhão vazio do velho mosteiro.

– Lembro-me de si. É amigo do padre Larra. Ele foi-se embora de improviso. Antes de sair disse que talvez alguém passasse por cá para buscar algumas garrafas. Suponho que esse alguém seja você.

Passámos ao lado de um dos jardins quadrangulares, que estava mais selvagem do que nunca. Tinha chovido na noite anterior e senti o cheiro da terra húmida. Era como cheirar a desordenada felicidade das plantas. Ismael levou-me a um quarto onde se acumulavam cadeiras partidas, genuflexórios, um confessionário desconjuntado. A um canto estavam as garrafas.

– Você gosta?

Disse que sim, com um ar de indiferença.

– Eu provei. É repulsivo.

– É um remédio. Um tónico.

– Preferia beber o meu próprio sangue a provar esse tónico. Até o óleo de rícino sabe melhor.

– Alguns de nós precisam disto. Quem o trazia?

– Ele não lhe disse? A modéstia é a primeira das virtudes. Ele próprio o fazia. Eu via-o sempre a trabalhar no jardim. Chamava aos seus cultivos «as minhas ervas daninhas». Esmagava as folhas num almofariz de madeira. Vi-o enterrar coisas oxidadas entre as raízes. Uma vez vi-o enterrar um pássaro.

As mãos começaram a tremer-me. Se conseguisse a fórmula para preparar o elixir já não dependeria das garrafas.

– E não deixou nenhum apontamento?

– Não. Queimou papéis e livros e depois pediu que déssemos quase toda a sua roupa aos pobres que estão à porta da igreja. E foi-se embora sem dizer para onde ia. Espero que me envie alguma carta. Pode achar que é uma coisa de crianças, mas eu coleciono selos.

 

 

Uma tarde, aproveitando a ausência de clientes, pus-me a ler, sentado à mesa, um livro que tinha de enviar pelo correio no dia seguinte, e não me apercebi de que a noite já tinha caído. Ergui os olhos e, de repente, vi que a rua estava escura. E vi Luisa que, de fora, olhava para mim. Quem sabe há quanto tempo ali estava. Eu vigiara-a tantas vezes e agora era ela quem o fazia. Levantei-me apressadamente, receando que ela se fosse embora. Entrou: o vestido azul, o cabelo mais curto, um sobretudo cinzento. Com amargura, apercebi-me de que o seu poder sobre mim continuava intacto e de que me faltava o ar só de olhar para ela. Tudo mudava, isso não.

Perguntou-me se podia sentar-se e eu aproximei uma cadeira.

– Como me encontraste?

– Andei a fazer perguntas. Há muito tempo que ando à tua procura.

– Desde quando?

– Desde que mataram um dos amigos de Montiel.

– E isso que tem que ver comigo?

– Era um dos cruzados do meu pai. Queria vingar a morte de Luciano. Esteve com o meu pai na noite do incêndio. Era advogado, vivia só. Apareceu no seu escritório, perto de Tribunales, com um tiro na cabeça. O assassino pôs-lhe moedas sobre as pálpebras, para que os olhos ficassem fechados.

Disse estas coisas num tom de voz indiferente, como se tudo isso tivesse acontecido há muito tempo, num lugar longínquo.

– Mais alguém?

– Não. Mas sei que hão de vir atrás do meu pai.

– O que diz o professor Balacco de tudo isso?

– Não diz nada. Protege-se. Anda armado.

– E os amigos?

– Já não lhe restam amigos. Depois do incêndio ninguém quer dar-se com ele. O meu pai é assim, congrega todos e condu-los à morte. Pensa que os seus contactos políticos continuam intactos, mas nunca lhe devolvem os telefonemas. Quando quiserem matá-lo, fá-lo-ão sem problemas. Quem faz tudo isto?

– Não sou eu.

– Isso já o sei.

– Não são muitos. É só um. Não sei o nome dele. Chamam-lhe o Numismático.

– O Numismático – disse, como se estivesse a provar o sabor da palavra.

– Não há maneira de o encontrar. Muda sempre de lugar. Se o teu pai quer uma oportunidade, que saia da cidade. Para bem longe. Para onde ninguém saiba.

– Vive fechado mas não partirá. Até em casa anda armado.

– O revólver não lhe vai servir de nada contra o Numismático.

– Se o convenceres a deixar o meu pai em paz, voltaremos a estar juntos. Esquecer-me-ei de tudo.

– Juntos, nós? Já é tarde para isso. O teu pai nunca o permitiria. Sabe quem e o que sou.

– Se o salvares, podemos partir juntos.

– Para onde?

– Para outra cidade.

Ela quis dar forma à sua mentira, quis mencionar alguma cidade, mas como se sofresse de uma amnésia repentina, não lhe veio à memória um único nome. Das cidades, só restava uma no mundo, e nela tudo era impossível.

– Não tenho a certeza de que o teu pai mereça viver.

– É meu pai. Tu também não mereces viver. E eu deixei-te viver. A vida funciona assim. Não é uma questão de mérito.

Pensei: procurar o Numismático. Procurar o único homem que nunca se deve procurar.

– Mataram-nos a todos. Tu sabias e não me disseste nada.

– Salvei-te a ti.

– Isso não era suficiente.

– Era suficiente para mim. O que lá vai, lá vai. Vais procurar esse assassino?

Disse-lhe que sim, como se dizem as coisas nestes momentos em que subitamente adquirimos consciência do abismo entre as coisas e as palavras: pode dizer-se qualquer coisa porque nenhuma palavra corresponde a coisa nenhuma. Ela não se deu conta de nada disto; suspirou, aliviada, como se as minhas palavras tivessem um poder mágico, como se prometer uma coisa fosse já cumpri-la. Levantou-se para sair e eu dei-lhe um beijo na cara. Durante esse segundo em que estivemos unidos, a minha cara unida à cara dela, acreditei em tudo, na possibilidade de encontrar o Numismático, de o convencer, na possibilidade de ela vir comigo, de partirmos juntos. Acreditei na possibilidade de lhe arrancar o livro, de dormirmos juntos noite após noite, sem a acordar, sem a ferir, sem procurar o seu sangue.

***

A partir dessa altura comecei a seguir o rasto do Numismático em leilões de moedas antigas, em casas de colecionadores, em galerias sombrias onde denários, dobrões e mexicanos de ouro se misturavam com vestígios de guerra e suásticas prateadas. Não sabia com que nome se apresentava, de modo que era obrigado a descrevê-lo. E nessa altura os meus interlocutores tentavam lembrar-se, achavam que tinham conhecido alguém assim, mas eram sempre lembranças imprecisas, como de alguém conhecido num sonho ou numa multidão. Ninguém conseguia lembrar-se dele com exatidão, como se uma zona de névoa o acompanhasse. Também lhe escrevi, mas a carta foi-me devolvida com uma nota que dizia: «Devolver ao remetente. Apartado postal fechado.»

Mas numa galeria de Lavalle, intrincada e escura, um velho vendedor de moedas antigas olhou para mim através de um monóculo ainda posto e apontou para a porta. Pensei que estava a expulsar-me mas ouvi as palavras: «O homem do chapéu de coco acabou de sair.» O chapéu dele não era exatamente um chapéu de coco, mas soube que se referia a ele. Fui até à rua: vi ao longe, entre os transeuntes, o chapéu preto e amolgado do Numismático. Corri atrás dele. Os transeuntes que me impediam a passagem e impunham a sua pressa à minha urgência pertenciam a uma vasta conspiração que o Numismático dirigia. Chegou ao Bajo, virou à direita e desapareceu entre os empregados de escritório que enchiam as arcadas. Ao longe, vi que entrava num edifício de Alem. A porta da rua estava aberta e apressei-me a percorrer o longo corredor. O elevador tinha parado no terceiro andar. Subi pela escada. O corredor do terceiro andar estava às escuras. Ao fundo, uma porta entreaberta deixava passar alguma luz. Pensei ter encontrado finalmente a guarida do Numismático, mas quando entrei e vi a biblioteca com os seus livros de antropologia, os seus diplomas nas paredes e as fotografias onde se repetia a cara de Benjamín Balacco, soube que estava em casa de Rafael Ezcurra, o obediente amigo do professor. Não estava ninguém na sala. Na mesa da sala de jantar via-se um prato com cascas de laranja retorcidas e secas. Ao fundo, num quarto na penumbra, alguém estava deitado na cama. Tinha a cara coberta com um pano. Levantei a persiana só o suficiente, porque não queria ver de mais. O corpo estava deitado de costas e o que tinha na cara era um guardanapo de pano branco. Levantei-o: era o professor Ezcurra. O seu papel de personagem secundária, a sua timidez, tinham sido agora aperfeiçoados pela morte. Tinha duas moedas de cobre sobre os olhos e uma ferida no pescoço. Devia ter morrido há horas porque o sangue, que tinha manchado a camisa e os lençóis, já estava seco. Quando ouvi a sirene da polícia, pensei que o Numismático me atraíra até ali para que me encontrassem com o corpo. Mas quando fixei a vista no guardanapo que ainda tinha na mão, apercebi-me de que não era isso. Tinha-me chamado ali para me entregar uma mensagem complicada, escrita no idioma da morte. Na ourela, em letras desbotadas devido a tantas lavagens mas ainda azuis, lia-se: «Hotel Lucerna.»

 

 

Desci a escada aos saltos e saí do edifício um segundo antes de a polícia entrar. Fui a pé até à casa Balacco. Toquei à campainha, Luisa abriu a porta e veio até à cancela. Não tive tempo de lhe dar a má notícia porque ela se antecipou.

– O meu pai desapareceu. Saiu há horas. Disse à criada que ia comprar um livro.

– Eu sei onde está.

Estava descalça. Foi buscar uns sapatos. Demorou alguns minutos. Mesmo numa urgência, uma mulher há de sempre tentar que o vestido e os sapatos combinem. Apanhámos um táxi e fomos até ao hotel. Lembro-me de que o taxista insistia em comentar um jogo de futebol, apesar do nosso silêncio.

– Como sabes que está no hotel?

– Recebi um convite.

Tinha anoitecido. O centro já estava vazio de bancários e empregados de escritório. Na esquina havia um bar aberto e pedi-lhe que esperasse por mim aí. Disse-me que não, que iria comigo. Preocupou-me menos colocá-la em perigo que ter o prazer da sua companhia durante a incursão. Finalmente havia qualquer coisa que podíamos fazer os dois, nem que fosse pela última vez. A porta principal cedeu a um ligeiro empurrão e entrámos na escuridão do átrio. Tentei o interruptor: a corrente estava desligada. As poltronas de cabedal, cobertas com lençóis. Lembrei-me da rapariga de tranças azuis que me tinha recebido a primeira vez. «Professor Lebrón», chamara-me. Eu tinha mudado, mas continuava a não ser professor.

Às cegas, chegámos à cozinha. Eu levava-a pela mão. Luisa encontrou no aparador um candeeiro de vidro que conservava um pouco de querosene. Tirei do bolso uma caixa de fósforos de cera e acendi-o. Senti o cheiro adocicado do combustível a arder.

Voltámos ao átrio e começámos a subir a escada. Luisa ia à frente, com o candeeiro ao alto.

O hotel era enorme e imaginei uma longa busca, de quarto em quarto, de andar em andar, mas nada disso foi necessário. O Numismático estava no primeiro andar, no salão principal. Na mesa ovalada onde eu tinha visto o corpo de Stazzi, via-se agora um livro grosso, de capas azuis.

O Numismático estava numa das extremidades do salão, debruçado na janela e a olhar para a rua. Não tinha tirado o chapéu. Do exterior entrava a claridade dos candeeiros de iluminação pública e do letreiro intermitente de um bar. A rua estava tão silenciosa que se ouviu, ao longe, a sirene de um barco. Sentia-se uma brisa suave, vinda de leste.

– Você, Lebrón, queria este livro. Pode levá-lo, já não me serve.

– Porque não mo deu antes? Para que podia servir-lhe?

– Para atrair o professor até aqui. Foi um trabalho de meses. Levou-me quase tanto tempo como a eles a caçar Stazzi. Nunca compreendi essa loucura pelos livros.

Nessa altura ouvi o gemido de Luisa e vi o que ela vira antes de mim. A um canto da grande sala estava Balacco, no chão, com a cara voltada para a parede e um braço torcido atrás das costas. A filha correu para junto dele. Agachou-se e pegou na cabeça ensanguentada do pai. Começou a falar com ele em voz baixa, como se as palavras pudessem transmitir-lhe vida. Eu não conseguia decifrar o seu murmúrio.

O Numismático dirigiu-se a mim com tranquilidade:

– Ela também tem de desaparecer. Todos eles. São uma raça de assassinos. Não podemos deixar vestígios. Caso contrário, voltarão, vezes sem conta.

– Ela não, já lhe disse.

– Não há finais felizes. Ela vai culpá-lo pela morte do pai. Vai culpá-lo de tudo. Vai acabar por denunciá-lo. Quando você cair, cairão os poucos que restam.

– Ela não é culpada pelos pecados do pai.

– Não é culpada? Sem ela, Montiel não teria matado Stazzi. As mulheres governam o coração dos homens. São elas quem lhes põe o veneno nos ouvidos.

Luisa pareceu compreender finalmente que o pai estava morto. Deixou de lhe falar. Tínhamo-nos habituado ao seu murmúrio, e o seu silêncio soou como um som singular, e ambos, o Numismático e eu, olhámos para ela. Nessa altura, levantou-se e ergueu o candeeiro, como se quisesse mostrar-nos o corpo do pai. De imediato, sem um grito, sem uma palavra, atirou o candeeiro contra o Numismático. O vidro partiu-se contra o ombro direito dele. O candeeiro brilhou por instantes e apagou-se. O Numismático esticou um pé e pisou os restos de vidro do candeeiro.

– Agora pegue no livro e saia – disse-me. – Vou fazer a única coisa que me falta.

Dirigiu-se para Luisa e eu tive esperança de que ela se afastasse e saísse da sala a correr, até chegar à escada. Mas ela tinha ficado paralisada. Era o carmen, e ela já não via o homem gordo e grotesco mas alguém mais familiar que avançava para ela com as mãos estendidas. O recém-chegado vinha reclamar alguma coisa, nos sonhos os mortos vêm sempre com alguma exigência. O Numismático tirou do bolso uma espécie de estilete, um cabo de madeira pintado de vermelho com uma ponta de quinze centímetros. Fê-lo aparecer com um gesto rápido e gracioso, como se fosse um truque de magia. Ao andar, as moedas tilintavam-lhe nos bolsos.

Aproximei-me da mesa e agarrei no livro. Era pouca a luz da sala, agora que o candeeiro se tinha apagado. Custou-me separar as folhas coladas. Imprudente como todas as lembranças, veio-me à memória a biblioteca de Los Álamos, com as suas paredes húmidas e as suas estantes desengonçadas. Toda a minha vida tinha decorrido entre livros com as folhas coladas. Eram horas de ver o que havia lá dentro.

Procurei outra página. Consegui ver um diagrama complicado que mostrava uma silhueta do corpo humano invadido por figuras geométricas. Abri outra, mais à frente, e vi palavras em latim, uma mão aberta que parecia o mapa de uma cidade e um coração. Teria encontrado entre aqueles enigmas as respostas de que necessitava? A última página ofereceu resistência: quando a ponte se partiu, do livro saiu uma espécie de psst, como se estivesse a pedir silêncio à sala silenciosa, e vi crepitar uma pequena chama azul. A luz, viva e quente, aumentou, e depressa todo o livro estava a arder nas minhas mãos. O Numismático, que já agarrava o pescoço de Luisa, voltou-se para mim e eu vi nos seus olhos angústia e surpresa, como quem se apercebe da traição de um discípulo. Ao atingi-lo, o livro arrancou-lhe o chapéu da cabeça. Em vez de afastar o fogo de si, fez um gesto estranho, como se quisesse agarrá-lo, como que esquecido do querosene que lhe empapava o sobretudo. Imediatamente ficou vestido com um fato de fogo. Permaneceu no mesmo sítio, com os braços afastados do corpo, como se a sua missão secreta, desde o início, fosse iluminar-nos. Sem um gemido, começou lentamente a girar, como se quisesse que a luz chegasse a toda a sala. À medida que o fogo lhe chegava aos bolsos, as moedas caíam no chão de madeira e rolavam com estrépito para os cantos da sala. Quando a última caiu, o Numismático avançou a crepitar em direção à escada e desapareceu da nossa vista.

 

 

Balacco foi sepultado na Recoleta, no jazigo familiar, e antigos alunos e colegas desfilaram incessantemente e encheram com despedidas e discursos o estreito corredor do cemitério. Eu olhava para tudo de longe, não querendo que ninguém me reconhecesse. Luisa usava um vestido cinzento, quase preto, umas luvas escuras até ao cotovelo e uma capelina, que voou. Passou como um pássaro sobre as cabeças e eu, que era o último, agarrei-a e enviei-a de volta, de mão em mão, até ela. Os lábios pintados de vermelho magoavam-me, mesmo ao longe, com o feitiço de tudo o que era proibido.

Dois dias mais tarde visitei-a e dormimos juntos, mas pude ver crescer em mim essa sede que o amor tornava intolerável e que o livro poderia ter diminuído ou adiado. O livro e a esperança eram agora uma mesma cinza. De manhã levantou-se pálida, observou com indiferença as suas feridas e depois olhou para mim com os seus grandes olhos escuros. Disse-lhe que tinha de fugir.

– Do Numismático?

– De mim.

Tinha correspondido com carícias às minhas carícias, com beijos aos meus beijos, mas eu sabia que, para ela, eu era mais um símbolo de fatalidade que um homem. Fui despedir-me dela ao porto, numa manhã nublada. O barco enorme e branco movia-se com tanta lentidão que nunca mais acabava de partir, e por momentos pensei que ia ficar ali, inatingível mas simultaneamente à vista, para sempre. Do barco ela escreveu-me uma única carta, a que nunca fui capaz de responder. Guardei-a entre as páginas de um livro. Um dia alguém a encontrará e talvez a junte à sua própria coleção de imagens de santos, bilhetes de comboio e entradas de cinema. De coisas esquecidas nos livros. Eu prefiro deixá-la fora da minha ferrugenta lata de chá.

Desde que ela se foi embora, evito passar pela casa Balacco para não ver as plantas a crescerem desordenadamente ou a secarem sem esperança; as telhas cinzentas que começam a faltar; as janelas que só se abrem para arejar uma vez por mês e depois são trancadas novamente. Parecia que a casa se empenhava em representar, com os seus sinais de abandono e deterioração, qualquer coisa que estava no fundo da minha mente. Para quem ficou sem palavras, tudo se torna correspondência e metáfora.

 

 

Em vão procurei a fórmula do elixir; em vão procurei outros como eu. Nunca mais voltei a ver Larra ou o Numismático, se é que este sobreviveu. Sou o único antiquário de toda a cidade e não sei distinguir a cidade do mundo.

Restam poucas garrafas. Bebo-as o mais devagar que posso. Mas por mais que simulem abundância, um dia acabarão. Não necessito de nenhuma sibila: sei que, quando o cálice estiver vazio, recuperarei a sede perdida, a antiga dor, o único «Conhece-te a ti próprio» que está reservado aos da nossa espécie. Nessa altura sairei para caçar, até os archotes me iluminarem.

 

 

Escrevi estes papéis com a velha Hermes de Calisser. Ponho o ponto final com um alfinete de ouro.